Filosofia do Direito

Breves apontamentos sobre o positivismo jurídico

RESUMO: O presente estudo tem por objetivo analisar aspectos relevantes para a compreensão do positivismo jurídico, desvendando-se, inicialmente, a melhor configuração terminológica e a formação histórica desta corrente de pensamento, para, ao depois, deduzir os seus principais propósitos científicos. Sem prejuízo, no entanto, de adequada crítica e apreciação dos argumentos favoráveis e contrários.

SUMÁRIO 1) Introdução: significado da expressão “positivismo jurídico”; 2) origens do positivismo jurídico;  3) propósitos do positivismo jurídico; 4) o positivismo jurídico como ideologia do direito; 5) “redutio ad hitlerum”; 6) Conclusão; 7) Referências bibliográficas

1 – INTRODUÇÃO: O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO “POSITIVISMO JURÍDICO”

Ao se tratar do positivismo jurídico, a primeira questão a ser enfrentada diz respeito ao significado do termo. Trata-se de controvérsia objeto de inúmeras divergências, especialmente em virtude de sua polissemia no ambiente das humanidades.

Nesse sentido, como Fábio Ulhoa Coelho bem destaca, “essa expressão – positivismo – tem sentidos diferentes na filosofia geral e na filosofia jurídica, além de expressar ambiguidades em cada uma dessas áreas”[1].

Note-se que a expressão “positivismo” é utilizada, para além do âmbito do direito, também da filosofia e da criminologia.

O positivismo criminológico, escola cujo expoente mais conhecido é o italiano Cesare Lombroso (1835-1909), pressupõe o determinismo no âmbito do comportamento humano, circunstância que implicaria numa predisposição de determinadas pessoas ao cometimento de condutas criminosas. Tem como postulado a negação do livre-arbítrio[2].

O positivismo filosófico, por sua vez, tem como figura de destaque o francês Augusto Comte (1998-1857), que buscou conferir maior caráter de cientificidade às humanidades, aproximando a filosofia e a sociologia das ciências exatas.

Comte classifica o desenvolvimento científico de acordo com três estados, que corresponderiam à progressiva evolução do pensamento humano.

O primeiro destes estados seria o teológico, período marcado pelo obscurantismo, onde se buscava alcançar respostas às indagações existenciais por intermédio exclusivo da crença na religião[3].

No segundo estado, denominado metafísico, o homem se afasta das crenças mais primitivas, apegando-se à racionalidade. Nesse segunda etapa, é possível vincular o pensamento científico aos ideais divulgados no período iluminista, onde o racionalismo abstrato preponderava[4].

Por derradeiro, o terceiro estágio da evolução científica desencadearia o denominado estado do positivismo, onde o conhecimento seria alcançado pela experiência prática, obtida a partir da observação dos fatos, aproximando a filosofia das ciências exatas, pois os comportamentos seriam esclarecidos de forma similar aos métodos usados pelas ciências físico-naturais. Atingido este patamar, a humanidade encontrar-se-ia em elevado estado de evolução, de forma a se estabelecer convivência harmônica e pacífica entre os povos[5].

Conforme consigna Fábio Konder Comparato, a corrente de pensamento positivista, encabeçada primordialmente por Augusto Comte, é traçada conforme os seguintes princípios metodológicos:

“1) o conhecimento humano só pode ter por objeto fatos apreendidos pela experiência sensível; 2) fora do mundo dos fatos, a razão só pode ocupar-se, validamente, de lógica e de matemática. O saber fundado nesses dois princípios – o único que pode ser considerado científico – foi denominado por Comte um saber positivo, por oposição ao falso saber, tido metafísico”[6].

Há quem relacione o positivismo filosófico com o positivismo jurídico, e não há como se negar que a teoria kelseniana, ao buscar a pureza metodológica, afastando-se de elementos valorativos na análise do sistema normativo, se aproxima do positivismo propugnado por Augusto Comte, que tem como pressuposto o distanciamento das teses metafísicas.

Nesse sentido, diversos doutrinadores se manifestam, dentre os quais o próprio Fábio Konder Comparato, já mencionado, que ao tratar do positivismo jurídico em capítulo de seu livro, introduz a questão trazendo à tona as bases do pensamento de Augusto Comte.

Nessa mesma esteira, Dimitri Dimoulis admite a existência de pontos de contato, mas, não obstante, explicita ressalvas:

“É inegável que os partidários do PJ (positivismo jurídico) foram influenciados pelo positivismo filosófico, como se percebe na tendência de rejeitar teses metafísicas e/ou idealistas sobre a natureza do direito, concentrando-se em fatos demonstráveis, tais como a criação de normas jurídicas pelo legislador político. Mas isso não significa que os partidários do PJ (positivismo jurídico) aceitem todas as ideias historicamente designadas como positivistas. Isso seria impossível em razão da multiplicidade das abordagens positivistas tanto no direito como em âmbito científico e/ou filosófico”[7].

Norberto Bobbio, entretanto, acaba por rejeitar esta relação, atribuindo à expressão “positivismo jurídico” mera contraposição ao direito natural[8]. Na visão de Bobbio, a acepção do positivismo no âmbito do direito estaria distanciada do sentido utilizado na filosofia, até porque as referências jurídicas do positivismo foram constatadas em datas muito anteriores ao período de vida de Augusto Comte (1793-1857), sendo detectadas em diversos textos da Idade Média[9].

Realizada, portanto, esta prévia distinção entre os diversos “positivismos”, a análise do problema aqui tratado deve focar-se no positivismo estritamente jurídico, que tem como fundamento o estudo do direito positivo.

Pode-se dizer que o direito positivo é assim denominado por ser estabelecido mediante prévia convenção ou imposição, ou seja, o direito criado pelos homens por intermédio do Estado (direito posto).

Em seu detrimento, o direito natural seria um direito ideal, que precederia qualquer lei estatal, e decorreria da própria natureza humana. Um direito considerado perfeito, o ideal de justiça, em contraste com o direito dos homens, considerado repleto de falhas.

Para Hans Kelsen:

“A chamada doutrina direito natural é uma doutrina idealista-dualista do direito. Ela distingue, ao lado do direito real, isto é, o direito positivo, posto pelos homens e, portanto, mutável, um direito ideal, natural, imutável, que identifica com a justiça. É, portanto, uma doutrina jurídica idealista, mas não “a” doutrina jurídica idealista. Distingue-se das outras doutrinas jurídicas idealistas-dualistas pelo fato de- como o seu nome indica – considerar a “natureza” como a fonte da qual se originam as normas de direito ideal, do direito justo”[10].

A dicotomia entre juspositivistas e jusnaturalistas tem como enfoque, portanto, a negativa de reconhecimento pelos primeiros deste direito “superior” e antecedente, universal e imutável, denominado “direito natural”. Para os juspositivistas, o único direito  existente é o direito posto, estabelecido pelos homens e passível de revogação pelos próprios homens.

Na visão dos juspositivistas, a defesa da existência de um direito natural teria fundamento, em síntese, em um idealismo pouco palpável, baseado em teses metafísico-religiosas, e que resultaria numa multiplicidade de imprecisões e critérios divergentes de aferição.

Dimitri Dimoulis, ao criticar o jusnaturalismo e defender a sua derrota histórica para a visão positivista, assim exprime seu ponto de vista:

“O dualismo jurídico é típico de sociedades teocráticas e comunitaristas, como era o caso dos ordenamentos jurídicos da Europa Medieval fortemente influenciados pela religião católica. Em um mundo secularizado que reconhece a primazia do indivíduo e a legitimidade da ação política organizada, como ocorre nas atuais sociedades capitalistas, é impossível continuar afirmando que, além do direito socialmente criado, existe um outro direito, melhor e potencialmente superior, como pretende ser o direito natural. Essa mudança cultural determinou a derrota histórica da teoria do direito natural, comprovando, inclusive, que essa teoria não possuía nada de “natural”[11].

2 – ORIGENS DO POSITIVISMO JURÍDICO

Como é sabido, o período da Idade Média na Europa ocidental, compreendido entre os anos de 476 D.C. e 1453, foi marcado pela multiplicidade de instituições autônomas, dentre as quais corporações de ofícios, feudos, principados, reinos, e em destaque a igreja católica.

Diante de tal circunstância, existiam inúmeros “direitos” regulatórios de cada uma destas instituições, como por exemplo, o Direito Canônico, regulador das condutas no âmbito da igreja.

Disso deflui que apenas com a formação do Estado Moderno foi possível cogitar-se de centralização política, com o consequente processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado[12].

Antes de tal centralização no processo de produção das leis pelo Estado, o direito consistia em algo difuso e pouco preciso.

Teórico do absolutismo, o britânico Thomas Hobbes (1588-1679) pode ser considerado o grande precursor do positivismo jurídico, ao defender o monopólio do poder político nas mãos de um governante forte, com capacidade para dirimir as controvérsias e estabelecer a paz social.

Hobbes faz referência ao que denomina “estado de natureza”, fase da evolução humana marcada pela liberdade de decisão do homem e ausência de limites às suas ações, circunstância implicadora na completa instabilidade e insegurança, diante da prevalência da “lei do mais forte” na defesa de interesses particulares.

Para Hobbes, somente um pacto social permitiria a passagem deste “estado de natureza” para o denominado “estado civil”, a exigir a concentração de poderes nas mãos de um soberano, para a transformação da anarquia em ordem.

Na seguinte passagem de “Leviatã”, Thomas Hobbes assim explana suas ideias acerca de um estado de natureza marcado pela insegurança e sensação de permanente sobressalto, frisando em especial a insuficiência e precariedade das leis da natureza, que seriam, em outras palavras, o denominado “direito natural”:

“Porque as leis da natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmos, na ausência do temor de algum poder capaz de leva-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis da natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros”[13].

Dimitri Dimoulis destaca bem esta posição de Hobbes em defesa da legalidade como instrumento para se estabelecer a ordem social:

“Hobbes submete o direito natural a fortes críticas em razão de sua incapacidade para garantir a segurança individual e a paz social. Em paralelo, sustenta a superioridade qualitativa e a primazia normativa das normas criadas e impostas coativamente pelos detentores do poder político”[14].

Sabe-se que o modelo absolutista de Estado, defendido por Hobbes, embora tivesse o mérito de propiciar a centralização do poder e monopolização da produção do direito, trouxe consigo os malefícios do autoritarismo e arbitrariedade, já que a concentração de poderes nas mãos de um soberano, de forma ilimitada, implicava na inevitável consequência do abuso.

Uma diversificada gama de causas pode justificar o combate ao absolutismo, sejam fundamentos econômicos, sejam filosóficos. A emergente classe social burguesa, para o desenvolvimento de seus negócios e ampliação das riquezas no modo capitalista de produção, necessitava de segurança jurídica e liberdade, a exigir menos intervenção e limitação do poder estatal. As ideias iluministas, por sua vez, pressupunham o fim das regalias das classes aristocráticas, a impor tratamento igualitário a todos os cidadãos.

Diante de tal quadro, o modelo de Estado Absolutista acabou por ser substituído pelo Estado Liberal, ocorrendo a consagração dos ideais iluministas, tendo como símbolo mais importante desta ruptura histórica a Revolução Francesa (1789).

Para o presente estudo, importa destacar que, no tocante ao positivismo jurídico, essa ruptura entre modelos de estado (do absolutismo ao liberalismo) não trouxe reflexos drásticos, tendo em vista que a ideia de monopólio da produção do direito pelo estado, com criação das normas pela autoridade competente foi acatada pelo modelo de Estado liberal, mantendo-se o dogma da onipotência do legislador[15], adotando-se, no entanto, expedientes hábeis a promover a garantia do cidadão contra arbitrariedades do Estado, tais como a separação de poderes e a representatividade do poder legislativo[16].

Ou seja, tanto no Estado Absoluto quanto no Estado Liberal, não houve mudança de paradigma no que se refere à imprescindibilidade do monopólio da produção legislativa pelo Estado. O modelo liberal apenas incrementou o sistema de funcionamento do Estado, mediante instrumentos aptos a evitar o abuso, com a separação das funções legislativa, executiva e judiciária, num complexo sistema de auto-controle denominado “freios e contrapesos”.

Inquestionavelmente, o valor primordial buscado pelo Estado Liberal era o da segurança jurídica. Esse valor, tão almejado pelos ideais iluministas que desencadearam a revolução francesa, acabou por ser consagrado definitivamente com a edição do Código de Napoleão, de 1804.

A sistematização e unificação legislativas eram imperativos buscados pelo racionalismo então vigente, com o prestígio da ideia de igualdade de todos perante a lei. E o Código Civil Napoleônico desempenhou tal missão, que tinha por escopo criar um direito amplo, uniforme, e que regulamentasse de modo completo as relações sociais[17].

Miguel Reale, ao tratar do entendimento doutrinário prevalente à época da edição do Código Napoleônico, assim observa:

“Não se admitia que o Direito Positivo tivesse lacunas, porquanto bastaria um trabalho de interpretação, conduzido segundo regras determinadas, para obter-se a resposta conveniente a todas as lides e demandas. Não existia, segundo pensavam, qualquer fato social para o qual se não encontrasse solução possível e previsível na totalidade da ordem jurídica positiva. É a ideia, portanto, de que o Direito Positivo não tem lacunas e que, através de um trabalho de interpretação, tornada extensiva graças à analogia e aos princípios gerais do direito, é sempre possível resolver todos os problemas jurídicos. Daí a força de postulados da ordem jurídica atribuída a estes dois preceitos: – ninguém se escusa alegando ignorar a lei; o juiz não se exime de sentenciar a pretexto de lacuna ou obscuridade legal”[18].

Tais fundamentos foram os propagados por uma linha de pensamento jurídico denominado Escola da Exegese, que nasceu nesse período inaugural de codificação, e buscou racionalizar e dar cientificidade ao direito.

Esta escola ostentou grande influência e prestígio por longo lapso temporal, mas sucumbiu às críticas decorrentes impossibilidade de evolução dos diplomas codificados no mesmo ritmo das relações sociais, especialmente na era tecnológica vivenciada no período pós-moderno, circunstância que fragilizou o ideal de completude legislativa.

Como bem pondera Miguel Reale, ao comentar o declínio da Escola de Exegese:

“É claro que essa concepção, de repassado otimismo, prevaleceu enquanto perdurou um equilíbrio relativo entre os Códigos e a vida social e econômica. Quanto mais esta se renovava, sob o impacto da Técnica e da nova Ciência, quanto mais se aprofundavam abismos no mundo dos interesses econômicos, mais se sentia a necessidade de recorrer ao subterfúgio ou ao expediente da “intenção presumida” do legislador. Por essa brecha, relações de fato, forças econômicas e morais irrompiam no plano da cogitação do jurista, dando conteúdo à regra insuficiente em sua abstração: – a Escola da Exegese encontrava em si mesma o princípio de sua negação, revelando-se a “unilateralidade” de suas concepções, que puderam prevalecer até e enquanto o mundo das normas constituiu a expressão técnica de uma realidade histórico-social, não dizemos subjacente, mas sim implícita em seu conteúdo”[19].

Portanto, o período das codificações pode ser considerado o momento áureo do positivismo jurídico, tendo como marco a promulgação do Código de Napoleão em 1804. Em tal época, a ideia da lei escrita, organizada de modo racional e tratando detalhadamente cada uma das relações sociais, tornou-se o grande paradigma para o direito.

Mas a estabilidade pretendida pelos códigos não se alinhou ao dinâmico processo de transformação cultural decorrente da urbanização e desenvolvimento das técnicas de produção, o que propiciou, consequentemente, o anacronismo das regras fixadas nas leis codificadas.

Enfim, este tópico teve por escopo trazer, em breves linhas, os primórdios do positivismo jurídico, descrevendo sua evolução e consolidação até sua consagração máxima, com a elaboração do Código de Napoleão em 1804, quando a partir de então suportou uma fase de declínio.

No mais, dentre os grandes expoentes do positivismo jurídico pode-se mencionar Jeremy Bentham, de linha utilitarista, John Austin, fundador da chamada Escola Analítica, e Hans Kelsen, criador da Teoria Pura do Direito.

A consagrada Teoria Pura do Direito teve grande mérito de conferir cientificidade ao estudo do direito, mediante o denominado “corte epistemológico”, que buscou afastar os elementos valorativos da análise do sistema jurídico.

O positivismo jurídico passou a sofrer insistentes críticas a partir da segunda metade do século XX, especialmente a doutrina formulada por Kelsen, acusada de legitimar o sistema totalitário implantado pelo Estado Nazista na Alemanha, o que será analisado de forma mais detida em tópicos posteriores.

3 – PROPÓSITOS DO POSITIVISMO JURÍDICO.

Analisados alguns aspectos históricos do positivismo jurídico, importa trazer ao debate questões de relevância atual que podem justificar a discussão sobre o tema no ambiente acadêmico.

Como foi observado em tópico anterior, o positivismo jurídico surgiu como corrente de pensamento oposta à dos que defendiam a existência de um direito natural, ou seja, os jusnaturalistas.

Na concepção jusnaturalista, o direito, para ser considerado válido, não bastaria ter sido produzido pela autoridade competente e estar em conformidade com os requisitos previamente estabelecidos nas normas de processo legislativo. Deveria, também, ser justo.

Como bem observa Hans Kelsen:

“É sobretudo do ponto de vista da doutrina do direito natural, por força da qual o direito positivo apenas é válido quando corresponde ao direito natural constitutivo de um valor de justiça absoluto, que se opera um juízo de apreciação do direito positivo como justo ou injusto.  Se pressupomos um tal direito natural, então uma norma do direito positivo que o contradiga não pode ser considerada válida. Somente podem valer as normas do direito positivo que estejam de acordo com o direito natural. E, se a norma de um direito positivo vale apenas na medida em que corresponde ao direito natural, então o que vale na norma do direito positivo é apenas o direito natural. É esta efetivamente a consequência da doutrina jusnaturalista que, ao lado ou por cima do direito positivo, afirma a validade de um direito natural e, ao proceder assim, vê neste direito natural o fundamento de validade do direito positivo.  Isto, porém, significa que, de acordo com esta teoria, só o direito natural pode, na verdade, ser considerado válido, e não o direito positivo como tal”[20].

Portanto, na visão jusnaturalista, o direito positivo não ostenta qualquer autonomia, pois depende de prévia comparação com as regras de direito natural, para então ser considerado válido. Apenas superada a análise de compatibilidade entre o direito positivo em face do direito natural, e reconhecido o primeiro em conformidade com o critério de “justiça”, ostentará a necessária legitimidade no sistema. E, não há dúvida, esse critério para se definir o que é justo ou injusto baseia-se em fundamentos metafísicos ou teológicos, cujos pressupostos mostraram-se variáveis de acordo com a época, a denotar carência de precisão.

Na visão positivista, por sua vez, a validade de uma norma jurídica não se vincula ao seu caráter valoroso, ou justo. Adota-se, no positivismo jurídico, o critério formal de validade da norma jurídica. Não se analisa o seu conteúdo para aferição da validade, bastando, para tanto, a adequação de determinada norma com o procedimento estabelecido previamente em normas hierarquicamente superiores.

Cada Estado detém autonomia para criar suas normas jurídicas e, a depender da complexidade da respectiva estrutura, haverá normas hierarquicamente superiores definindo os processos de produção das normas inferiores, bem como as autoridades competentes para produzi-las.

Estas normas estruturais, que definem os processos de produção das demais normas, compõem as denominadas Constituições, cujos ditames servirão de fundamento de validade para as demais espécies normativas integrantes do ordenamento jurídico. Sob a perspectiva positivista, o cotejo entre as normas jurídicas hierarquicamente inferiores e superiores e, sobretudo, a Constituição de determinado Estado, é medida suficiente para aferição da validade da norma jurídica objeto de questionamento.

Conforme bem pontua Norberto Bobbio:

“a concepção formal do direito define portanto o direito exclusivamente em função da sua estrutura formal, prescindindo completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o direito se produz e não o que ele estabelece”[21].

Essa é, portanto, a dicotomia existente entre o jusnaturalismo, que se fundamenta no conteúdo justo da norma jurídica, e o juspositivismo, que se apega essencialmente à forma.

Dimitri Dimoulis, numa visão mais atualizada do problema, considera a contraposição entre juspositivismo e jusnaturalismo anacrônica[22]. Referido doutrinador desvincula o positivismo jurídico em seu sentido mais estrito não somente do jusnaturalismo, mas também do que denomina “moralismo jurídico”.

Sustenta existir correntes de pensamento que, malgrado se afastem do jusnaturalismo, vinculam-se a elementos valorativos e éticos, razão pela qual o autor as enquadra no que considera “positivismo jurídico latu sensu”, em detrimento de um positivismo “strictu sensu”, este sim distanciado da conexão entre o direito positivo e os elementos éticos que o permeiam.

Para Dimoulis, o “moralismo jurídico” constitui corrente de pensamento que impõe ao aplicador do direito a flexibilização hermenêutica da norma jurídica, para fins de corrigir o seu sentido, caso esteja em descompasso com os ditames morais prevalentes em determinado momento histórico[23], de forma a se permitir a criação da “solução inédita justa”[24].

Segundo Dimoulis,

“o moralismo jurídico faz depender o reconhecimento da validade das normas jurídicas e sua interpretação de elementos vinculados a valores e correspondentes mandamentos) de origem moral. Admite-se, assim, a tese da necessária conexão (junção, articulação) entre direito e moral”[25].

Inclusive, Dimitri Dimoulis considera enquadrarem-se nesta concepção de moralismo jurídico os juristas defensores do intitulado “neoconstitucionalismo”, corrente de pensamento de grande influência no Brasil, e que se considera pós-positivista, portanto, inserida num patamar de superação do positivismo jurídico clássico. Atribui Dimoulis a esta corrente a denominação de “moralismo da interpretação”[26].

O neoconstitucionalismo, em apertada síntese, busca seja flexibilizada a aplicação das normas jurídicas positivadas, considerando o ordenamento jurídico como um sistema “aberto”, onde se prestigiam os valores primordiais da constituição, revelados implícita ou explicitamente pelos princípios. E ao se deparar com hipótese de conflito interpretativo, deve o aplicador desvendar a melhor solução por intermédio do critério da “ponderação”. (barroso, 328/329)

Dentre os expoentes do neoconstitucionalismo brasileiro, Luis Roberto Barroso sustenta que “o constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito”[27].

Evidentemente, não cabe neste estudo tratamento mais aprofundado das bases do chamado “neoconstitucionalismo”, cumprindo apenas destacar, numa análise que se pretende precisa, que tal movimento se afasta do positivismo jurídico “stricto sensu”, conforme proposta de Dimitri Dimoulis, por vincular-se a elementos éticos.

De qualquer sorte, superadas tais abordagens, independentemente da análise da questão pela perspectiva da divisão clássica entre juspositivismo e jusnaturalismo, ou da adoção de um ponto de vista mais atualizado, conforme posição de Dimitri Dimoulis, que busca distinguir o positivismo jurídico do que denomina moralismo jurídico, é certo que o positivismo tem por objetivo, essencialmente, afastar do estudo e interpretação do direito os elementos valorativos, ou juízos de valor.

Essa pretensão do positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira ciência, com características similares às ciências da natureza[28].

Aqui, para se compreender o sentido de ciência da natureza, cabe promover a distinção entre mundo da natureza e mundo da cultura.

O mundo da natureza é o mundo do “ser”, onde os acontecimentos se desenrolam através de conexões mecânicas que se repetem de maneira automática, regendo-se pelas denominadas leis físicas, que se explicam por relações de causa e efeito.

Essas leis físicas, também denominadas leis naturais, portanto, representam meras descrições de fatos, ou como afirma MIGUEL REALE, “súmulas estatísticas de fato”[29]. Tais leis são hábeis a explicar aspectos do mundo da natureza, e compõem as denominadas ciências naturais, ou ciências exatas, que ao menos em tese podem ser consideradas neutras.

Observe-se que as ciências da natureza (ou exatas), ao contrário das ciências culturais, baseiam-se em juízos de realidade, o que significa, em síntese, a descrição objetiva da realidade, contrapondo-se aos juízos de valor.

Sob outro prisma, as denominadas ciências culturais têm por objeto o estudo e a compreensão do mundo da cultura, e não ostentam essa característica de neutralidade.

Pelo contrário, o mundo da cultura tem como pressuposto a liberdade, ou seja, a livre tomada de decisões pelo homem, que assim constrói o arcabouço de valores que fundamentam suas ações. A tomada de posição, por si só, resulta em contradição com a ideia de neutralidade.

Nessa esteira, as ciências culturais, que estudam e buscam compreender o mundo da cultura, são inquestionavelmente elaboradas com base na emissão de juízos de valor.

Pois bem, apresentada tal dicotomia entre mundo da natureza (ser) e mundo da cultura (dever ser), cumpre estabelecer o propósito central do positivismo jurídico, que consiste exatamente em retirar os elementos valorativos do direito, transferindo-o da zona da cultura para a zona da natureza. Busca-se estudar o direito como um “ser”, e não como um “dever-ser”.

Como bem esclarece Fábio Konder Comparato:

“Compete à “ciência do direito”, segundo a concepção positivista, tão só dizer o que o direito é, sem cuidar minimamente de dizer o que o direito deve ser. Em outras palavras, os juízos próprios de uma teoria “científica” do direito não são juízos de valor; são silogismos, ou então  puros juízos de fato: tal norma é jurídica porque vem expressa numa proposição de dever-ser (gênero próximo), contendo a previsão de uma sanção coativa (diferença específica em relação às demais normas da ordem social); tal lei é válida porque foi editada pela autoridade competente, segundo o procedimento para tal fim estabelecido”[30].

No mesmo sentido, Norberto Bobbio, ao comentar o “modo de abordar” o direito pela perspectiva do positivismo jurídico, assim expõe:

“O direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural; o jurista, portanto, deve estudar o direito do mesmo modo que um cientista estuda a realidade natural, isto é, abstendo-se absolutamente de formular juízos de valor. Na linguagem juspositivista o termo “direito” é então absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou ressonância emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de ser bom ou mau, de ser um valor ou um desvalor”[31].

4 – O POSITIVISMO JURÍDICO COMO IDEOLOGIA DO DIREITO

Como foi observado, a missão primordial do positivismo jurídico consiste em conferir caráter científico e neutro ao direito, de forma a se estudá-lo do modo como é de fato, e não como deveria ser [32]. A pretensão almejada seria transferir o direito do plano das ciências culturais, de caráter valorativo e prescritivo, para o âmbito das ciências naturais, de perfil avalorativo e descritivo.

No entanto, inegavelmente o positivismo não conseguiu atingir de maneira plena suas ambições, pois acabou se transformando não apenas num método de estudo e análise do direito, mas também numa forma de se querer o direito, com pretensões transformadoras de seu conteúdo, visando adequá-lo a determinada concepção ético-política[33].

A pretendida neutralidade do positivismo jurídico, tornou-se, portanto ilusória, e a cientificidade transmudou-se no que se pode chamar de ideologia. Ideologia, aqui, pode ser entendida como uma visão de mundo onde são agregados juízos de valor, ou seja, como “expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade”[34].

A ideologia no positivismo jurídico pode ser detectada desde seus primórdios, nas ideias divulgadas por Thomas Hobbes, que ao defender na obra “Leviatã” o Estado forte e com poderes ilimitados, já compreendia o direito posto pelo Estado como um valor em si mesmo, cujas benesses trazidas à sociedade independeriam de justificação. De fato, para Hobbes a paz social seria alcançada apenas por intermédio de um pacto, onde todos transfeririam poderes a um determinado homem ou assembleia de homens, que detendo autoridade, estabeleceriam as diretrizes a se tomar, e tais diretrizes estariam acima de qualquer questionamento, constituiriam, portanto, as melhores decisões apenas e tão somente por serem provenientes da autoridade destacada para tomá-las.

Não é outro o sentido das seguintes assertivas constantes do Leviatã:

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defende-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas , considerando-se e reconhecendo-se  cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão”[35].

Essa visão “hobbesiana” do direito é tratada por Bobbio como uma versão extremista da ideologia juspositivista, por consistir em um incondicionalismo de obediência à lei, que caracterizaria não apenas um dever jurídico, mas também um dever moral. Em outras palavras, segundo esta concepção “extremada” do positivismo ideológico, a obediência à lei não se justifica apenas e tão somente pelo elemento coercitivo, ou seja, pelo receio de sofrimento de uma sanção em caso de descumprimento, mas também pela convicção de que a lei, independentemente do conteúdo, é boa por natureza[36].

A versão extremista do positivismo jurídico, segundo Bobbio, é sustentada principalmente pelos próprios opositores de tal corrente jusfilosófica, tendo em vista que os argumentos ali delineados permitem o encaminhamento da polêmica para um campo fácil de combate. Ou seja, como Bobbio mesmo afirma, “um alvo conveniente”[37], especialmente por conduzir o debate a um ponto onde se vincula do positivismo jurídico às atrocidades praticadas pelo regime nazista (a denominada “redutio ad hitlerum”).

Com efeito, a adoção deste ponto de vista extremado do positivismo jurídico pode não fazer sentido na atualidade, mas deve ser analisado de acordo com o período histórico em que foi defendido, especialmente porque, no momento de formação do Estado moderno, o direito estatal tornou-se o único paradigma para a valoração do comportamento social do homem[38], inclusive desautorizando e substituindo a Igreja, que no período medieval era porta-voz primordial dos valores morais na Idade Média.

Mas para além dessa visão extremada do positivismo jurídico em seu viés ideológico, há uma versão considerada moderada.

E a versão moderada da ideologia positivista não prega que o direito seja sempre e necessariamente bom e justo porque emanado da autoridade competente, independentemente de qualquer questionamento. Pelo contrário, entende que o direito não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas como o instrumento mais eficiente para se alcançar segurança jurídica, e consequentemente, a paz social.

Portanto, tem-se aqui o caráter instrumental do direito como meio hábil a se conquistar a ordem[39], por intermédio de normas gerais e abstratas.

Vê-se, aqui, que a ideia de generalidade e abstração da lei relaciona-se com o estabelecimento de comandos padronizados, cujas consequências possam ser previsíveis. Pretende-se, assim, sejam todos tratados de maneira igualitária, evitando-se concessões de privilégios ou perseguições. Ou seja, a conhecida determinação “todos são iguais perante a lei”, corolário do iluminismo, cujos princípios influenciaram o modelo de estado liberal.

E o modelo liberal tem como pressuposto um Estado com poderes restritos, num sistema pautado por regras claras, precisas, e passíveis de conhecimento prévio para se evitar surpresas (irretroatividade), garantindo-se a liberdade do indivíduo para agir conforme bem entender nas hipóteses em que não existe restrição legal (princípio da legalidade).

Tal perspectiva do direito positivo é informada pelas seguintes características, conforme propugnado por Dimitri Dimoulis:

“- criação de normas que regulamentam da forma semelhante todas as situações semelhantes (generalidade, que decorre do princípio da igualdade);

– descrição concreta das condutas e de suas consequências (taxatividade);

– criação de normas sem efeito retroativo, evitando surpresas (não retroatividade);

– previsão de procedimentos que garantem o respeito da constitucionalidade-legalidade (controle);

– criação de normas duráveis no tempo, graças à rigidez constitucional e à promulgação de Códigos (estabilidade)”[40].

Este modelo foi formatado num contexto de modernização do sistema econômico capitalista, já que o mercantilismo burguês necessitava de liberdade contratual e segurança jurídica. E esse formato deu ensejo ao que se pode entender por Estado de Direito, em seu sentido substancial e não meramente formal. Explicita-se, aqui, o sentido substancial do Estado de Direito, para se esclarecer que não se restringe a um Estado constituído por aglomerado de normas jurídicas postas pela autoridade competente, mas agregam-se os valores das liberdades públicas e da separação de poderes, valores estes estampados numa lei de hierarquia superior denominada Constituição.

Inegável, portanto, o caráter ideológico desta visão do positivismo jurídico, consistindo em  idealização evidente, ou seja, nada mais do que uma proposta acerca de qual seria a melhor forma de positivação o direito.

Trata-se, portanto, de um modo de se querer o direito, e não de análise do direito conforme ele realmente é, até porque, conforme alerta Norberto Bobbio, a ideia de abstração e generalidade nem sempre é característica da lei, que pode ser editada de molde a emanar comandos individuais e concretos[41].

Dimitri Dimoulis apresenta, para fins meramente exemplificativos, uma hipótese caricaturada de lei, cujo teor em nada contribuiria para a segurança jurídica. Tal exemplo seria um dispositivo do Código Penal com a seguinte redação: “Violar preceitos morais. Pena infamante a ser estabelecida pelo julgador”[42]. Evidentemente que uma norma com esta previsão, malgrado não deixe de ser uma norma jurídica, em nada contribui para se proporcionar previsibilidade das ações estatais e evitar o arbítrio, o que desmistifica a ideologia aqui lançada.

Enfim, demonstra-se, com isso, que um direito que promove a segurança jurídica constitui um ideal, um objetivo a ser perseguido, mas nem sempre representa de forma verossímil o direito tal como foi positivado.

Logo, esta visão foge dos propósitos científicos que o positivismo jurídico almeja alcançar.

5. “REDUTIO AD HITLERUM”

Superadas diversas questões atinentes ao positivismo jurídico, cumpre analisar um ponto objeto de incontáveis polêmicas. Tal debate envolve o argumento utilizado por críticos do positivismo jurídico, no sentido de que suas bases teóricas contribuíram para a justificação de estados ditatoriais, em especial, a referência corriqueira ao Estado Nazista (“redutio ad hitlerum”).

Essa ideia, no sentido de que o positivismo jurídico veio a legitimar as barbaridades do Estado Nazista é amplamente divulgada na doutrina brasileira.

Fábio Konder Comparato sintetiza bem esta posição crítica:

“Ora, com a afirmação da simples legalidade formal como fator de legitimidade política, e pela redução da Constituição ao nível de mero ordenamento dos órgãos estatais, inegável que os positivistas do direito contribuíram, decisivamente, para o surgimento, no século XX, de um dos piores monstros que a humanidade jamais conheceu em toda a sua longa históra: o Estado Totalitário”[43].

Luis Roberto Barroso, por sua vez, complementa tal entendimento:

“Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência às ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido”[44].

Segundo este ponto de vista, destacado por dois importantes doutrinadores nacionais, a pretendida neutralidade do positivismo jurídico, que propugna a análise de seu objeto de estudo, ou seja, do ordenamento jurídico positivado, sob uma perspectiva avalorativa, teria por resultado a referendação do modelo nazista como Estado legitimamente constituído. Consequentemente, as normas produzidas dentro da estrutura estatal nazista também seriam aceitas como direito legítimo, passíveis, portanto, de reconhecimento na ordem internacional.

Tal conclusão não se mostra de todo consistente, porque, como bem questiona Dimitri Dimoulis, “como uma teoria sobre a validade do direito pode permitir a imposição de um regime político?”[45]

De fato, tratando-se o positivismo jurídico de uma teoria de análise abstrata do direito positivo, não tem por escopo defender a legitimidade ou ilegitimidade de quaisquer regimes políticos existentes. Pelo contrário, a legitimidade de determinado regime se dá por sustentação política, que pressupõe certa dose de apoio popular, conjugada com imposição de interesses de determinados grupos sociais sobre outros, agregando-se táticas de propaganda, além de outros tantos fatores, que certamente não incluem o acolhimento de teorias jurídicas em nada próximas à realidade do povo[46].

Somente seria possível compreender o positivismo jurídico como instrumento justificador de determinado regime político a partir de uma linha de raciocínio impregnada de ideologia.

Sob este prisma, consoante tratado no tópico anterior, o positivismo ideológico apresenta uma versão extremada e uma moderada.

Ainda que se observe o positivismo sob este panorama, apenas a mencionada versão extremada do positivismo, ou melhor, “hobbesiana”, poderia dar margem à sustentação ditatorial. No entanto, trata-se de uma ideia de Estado criada em período de formação do Estado moderno, e que portanto deve ser apreciada de acordo com contexto pertinente.

A maciça gama dos defensores do positivismo no plano ideológico, muito ao contrário da visão “hobbesiana”, busca dar suporte e prestigiar a ideia de Estado de Direito e promoção das liberdades fundamentais, em conformidade com a posição ideológica liberal já analisada, de cunho moderado.

Aliás, Norberto Bobbio esclarece esse aspecto trazendo a seguinte assertiva:

“a versão moderada da ideologia juspositivista  não leva em absoluto à estatologia e ao totalitarismo político. Pelo contrário, estas acusações podem ser invertidas, visto que considerar a ordem, a igualdade formal  e a certeza como os valores próprios do direito representa uma sustentação ideológica a favor do Estado liberal e não do Estado totalitário ou, de qualquer maneira, tirânico. Estes valores foram reivindicados pelo movimento iluminista contra o Estado totalitário do Ancien Regime, e foram  realizados pelo Estado liberal-democrático do século XIX”[47].

No mais, de se destacar que o regime nazista mostrava-se avesso à ideia de respeito à legalidade como elemento limitador da ação do Estado, em especial na seara criminal, onde o princípio “nullun crimen, nullun poena sine lege” era desconsiderado, o  que se contrapõe ao fundamento mais relevante do positivismo, qual seja, o apego à lei [48].

Dimitri Dimoulis, ao reforçar tal argumento, arremata:

“O nazismo queria instituir um “Estado de justiça” (Gerechigkeitsstaat), abandonando o modelo de Estado de direito (Rechtsstaat) que era criticado como formalista e individualista. Os juristas próximo ao nazismo criticavam os ideais de segurança jurídica e as formalidades jurídicas; exaltavam os valores do povo alemão, exigindo “eticização” da aplicação do direito que os juízes deveruam impor, distanciando-se do “pensamento com base na lei” (Gesetzesdenken). O positivismo era visto como negação do ideal de justiça e o próprio Hitler declarou que, no Terceiro Reich, o direito coincide com a moralidade. Os responsáveis políticos pressionavam os juízes para aplicar penas acima do máximo previsto e para interpretar de forma flexível as normas jurídicas em nome do interesse do povo alemão”[49].

CONCLUSÕES

Muito longe de buscar exaurir os pontos de relevância da corrente de pensamento denominada “positivismo jurídico”, o presente estudo intentou trazer alguns “apontamentos”, como o próprio título denota.

A primeira questão abordada referiu-se à nomenclatura, dado que a imprecisão do significado de “positivismo” precisava ser sanada, como elemento necessário à introdução do tema. Dentre as diversas concepções de positivismo, seja no plano jurídico, filosófico ou criminológico, imprescindível a delimitação do objeto de estudo, o que pressupunha, logicamente, a conceituação adequada.

Num segundo momento, definido o teor da nomenclatura, importou a análise das origens e evolução histórica do positivismo, desde o período da formação do Estado moderno até o auge, atingido através das codificações, com a superação do absolutismo rumo ao Estado liberal, consagrado após a Revolução Francesa. A denominada Escola da Exegese simbolizou esse período áureo da consagração do positivismo jurídico.

Ponto central da abordagem, tratou-se das pretensões científicas do positivismo jurídico: a neutralidade por intermédio de análise puramente descritiva e avalorativa.

Evidentemente, muitos dos que se intitulavam positivistas, afastaram-se desta pretendida neutralidade, num processo de degeneração rumo à ideologia, que como foi visto, ostenta um viés extremado e outro moderado.

Mas ainda que se estude o positivismo sob esta perspectiva degenerada da ideologia, vinculá-lo aos horrores do regime nazista não se mostra adequado, incidindo em exagero o argumento da “redutio ad hitlerum”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição, Saraiva, 2008.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – lições de filosofia do direito. Ícone Editora, 2006.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. Max Limonad, 1995.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. 3ª reimpressão. Companhia das Letras, 2006.

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico – introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. Editora Método, 2006.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção “Os Pensadores”. 1ª Edição. Abril Cultural, 1974.

KELSEN, Hans. O problema da justiça. 4ª Edição, Martins Fontes, 2003.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, 1º Volume, 2ª Edição, Saraiva, 1964.

MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito, 2ª Edição, Quartier Latin, 2009.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20ª Edição, Saraiva, 2002.

– Lições Preliminares de Direito, 24ª Edição, Saraiva, 1999.

Autor:

Rafael da Cruz Gouveia Linardi

Mestrando pela PUC/SP. Juiz de Direito.



[1] Para entender Kelsen, p. 32.

[2] Marques,  José Frederico. Tratado de Direito Penal, p. 79.

[3] Mascaro, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito, p. 69.

[4] Mascaro, Alysson Leandro. Op. cit, p. 69.

[5] Mascaro, Alysson Leandro, op. cit, p. 70.

[6] Ética, direito, moral e religião no mundo moderno, p. 351.

[7] Positivismo jurídico, p. 66.

[8] O Positivismo jurídico, p. 15.

[9] Op cit, p 15.

[10] O Problema da Justiça, p. 71

[11] Op. cit., p. 83.

[12] Bobbio, Norberto. Op. cit, p. 27.

[13] O Leviatã, p. 108.

[14] Op. cit., p. 69.

[15] Bobbio, Norberto. Op. Cit., p. 38.

[16] Bobbio, Norberto. Op. Cit. P. 38.

[17] Reale, Miguel. Filosofia do Direito, p. 401.

[18] Filosofia do Direito, p. 402.

[19] Op. cit., p. 405.

[20] Op. cit., p. 06/07.

[21] Op. cit. p. 145.

[22] Op. cit. p. 97.

[23] Op. cit. p. 89/90.

[24] Op. cit. p. 91.

[25] Op. cit. p. 87.

[26] Op. cit. p 91.

[27] Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 326.

[28] Bobbio, Norberto, op. cit. p. 135.

[29] Lições Preliminares de Direito,. p. 28.

[30] Op. cit. p. 353.

[31] Op. cit. p. 131.

[32] Bobbio, Norberto. Op. cit. p. 223.

[33] Bobbio, Norberto. Op. cit. p. 224.

[34]Bobbio, Norberto. Op. cit. p. 223.

[35] Op. cit. p. 109.

[36] Bobbio, Norberto, op. cit. p.226.

[37] Op. cit. p. 230.

[38] Bobbio, Norberto, op. cit. p. 226,

[39] Bobbio, Norberto. Op. cit. p. 230.

[40] Op. cit. p. 199.

[41] Bobbio, Norberto. Op. cit. p. 232.

[42] Op. cit. p. 200.

[43] Op. cit. p. 363.

[44] Op. cit. P. 325.

[45] Op. cit. p. 260.

[46] Op. cit. p. 260.

[47] Op. cit. p. 236.

[48] Op. cit. p. 236.

[49] Op. cit. p. 261.

Como citar e referenciar este artigo:
LINARDI, Rafael da Cruz Gouveia. Breves apontamentos sobre o positivismo jurídico. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/breves-apontamentos-sobre-o-positivismo-juridico/ Acesso em: 18 abr. 2024