Filosofia do Direito

A perspectiva do “outro”: indivíduo, liberdade e dignidade

A perspectiva do “outro”: indivíduo, liberdade e dignidade

 

 

Atahualpa Fernandez *

Atahualpa Fernandez Bisneto **

 

 

                                                           Não existe uma liberdade e dignidade humana lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe.

 

 

Para lograr, dentro da filogênese humana, um conjunto mente/cérebro capaz de produzir, entender e utilizar o universo normativo ético-jurídico como ferramenta para a adaptação individual dentro do grupo e do próprio grupo dentro de seu entorno há um elemento de fundamental importância que merece uma detalhada análise: o da compreensão e antecipação das reações do “outro”. É o que trataremos de fazer.

 

E começaremos recordando o óbvio: que vivemos sempre graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura; que pertencemos a dois mundos, o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem; e que dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Isso somos.

 

De fato, nada disso deveria surpreender uma vez que são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e transmissão de nosso universo normativo: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o raciocínio ou juízo social – insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar ( é o que se denomina metacognição ou capacidade de possuir uma “teoria da mente” [1]).

 

A combinação dessas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer abstrações e deduções causais e para inferir intenções não percibidas. Dessa forma, o direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão – de nossos cérebros de subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades nos permitem gerar complexas idéias culturais que vão desde pôr multas aos condutores por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a justiça. E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não só torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida,  faz com  que  quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito poderá atingir seus propósitos.

 

Mas não somente isso: a existência secular e o intercâmbio recíproco com nossos congêneres produzem indivíduos. É com o outro e por meio do outro que o indivíduo se constitui: o reconhecimento do outro implica o reconhecimento do “eu”. A capacidade para  autointerpretar-nos está  direta e indissociavelmente vinculada à aquisição da capacidade para interpretar os outros, para  “ler” suas mentes, para entendê-los, e para  entender-nos a nós mesmos, como seres intencionais: é inata a nossa  necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição,  já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Marcados por uma incompletude constitutiva da espécie, devemos ao outro nossa própria existência, individualidade e dignidade. Em verdade, é somente no trato de uns com outros quando temos que pensar, sentir, recordar, calcular e sopesar as coisas, , ou seja, em que a empatia, a cooperação (e desde logo o egoísmo) e o altruísmo fluem com maior naturalidade[2].

 

Essa inteligência social requer até a última gota do poder cerebral que possuímos. Os seres humanos não podem sobreviver, em nenhum lugar da terra, à margem da sociedade: não podem sobreviver, queremos dizer, em nenhum lugar da terra, de forma autônoma e separada, se carecem de uma profunda sensibilidade e capacidade de compreensão do  “outro”. Assim como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos conforma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. O homem (cujo cérebro é capaz de viver em um universo não percebido) sem alteridade humana não pode desenvolver suas promessas genéticas.

 

Na falta desse reconhecimento, o recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou, como Tarzan, busca o outro a qualquer custo na cara de uma macaca); e poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos houvessem decidido não olhar-nos jamais ou comportar-se como se não existíssemos: seríamos, por certo, como uma espécie de Adão bestial, solitário e  sem consciência, que  não viveria em sua “existência”  o  significado  da relação sexual,  o prazer do diálogo e do consenso, o amor pelos filhos e a dor da perda de uma pessoa amada ( Eco).

 

Esta capacidade de auto-observação através do espelho alheio é uma das bases da vida social humana e a essência do que significa em verdade autodenominarmos “seres sociais”. Também constitui um ponto crucial em alguns dos modelos matemáticos refinados da evolução dos agentes sociais. Por exemplo, Nowak e Sigmund ofereceram um modelo de simulação do desenvolvimento de grupos cooperativos em  que a reciprocidade indireta nas ajudas se obtinha não tanto mediante  a cooperação efetiva como graças ao fato de contar com uma  “imagem”  de cooperador (Wedekind). Voltaremos de imediato sobre este ponto.

 

A maneira como foi possível fixar-se na evolução dos hominídeos a faculdade mental de identificação do “outro” como ser intencional somente pode ser esboçada de forma especulativa, mas já se há assinalado que a necessidade de adaptar-se aos novos  hábitats abertos da savana africana mediante o uso de instrumentos de pedra em tarefas de caça poderia haver suposto uma pressão seletiva suficiente para estabelecer fortes tendências sociais e favorecer o ulterior avanço das capacidades cognitivas relacionadas com a comunicação e associação simbólica (Atahualpa Fernandez). Isso é tanto como dizer que as bases neurofisiológicas para a linguagem, o pensamento, a intercomunicação proposicional e a leitura da mente poderia haver-se iniciado não na etapa final da hominização, com Homo sapiens, senão nos momentos iniciais dentro da espécie Homo habilis (Tobias).

 

À margem do acertado que possa ser o modelo da aquisição recente no gênero Homo de capacidades cognitivas próprias e distintivas, o certo é que dentro desse gênero e a partir, sobretudo, do Homo erectus, se produzem incrementos extra-alométricos do cérebro (superiores ao do próprio aumento do tamanho do corpo). Terrence Deacon  precisou ainda mais a hipótese apontando a certos câmbios no córtex frontal – já dentro do Homo sapiens – como responsáveis da aparição das complexas capacidades cognitivas humanas. A vida em grupos cada vez maiores contribuiu para o desenvolvimento de mais inteligência social, evoluindo os hominídeos como verdadeiros leitores de mente.

 

São muitas as teorias acerca do excessivo tamanho de nosso misterioso cérebro que, ademais de evolutivamente custoso e de ser o mais complexo dos objetos que se conhecem no universo (quer dizer, conhecido por si mesmo), não descansa nunca, nem sequer durante o sono, e cuja principal função consiste em recolher informação do entorno externo e do meio interno do animal, e processá-la de tal maneira que resultem respostas motoras adequadas e, em geral, condutas apropriadas para a sobrevivência e reprodução do indivíduo[3].

 

Grande parte das teorias sugere que os avanços tecnológicos e a fabricação de ferramentas impulsionaram a necessidade de um cérebro grande (Wynn; Tobias)[4]. A pressão exercida pelo processo de seleção, segundo estas teorias, provém do entorno físico e de outros animais, sustentando que o cérebro humano necessitava ser mais sagaz que o de seus predadores e mais apto para enfrentar as dificuldades de um entorno particularmente adverso.

 

Decerto que as ferramentas representaram uma grande vantagem para acometer o inimigo e um cérebro maior poderia fabricar utensílios melhores ou facilitar a recoleção de alimentos, mas daí sustentar e concluir que o cérebro deva ser tão desmesuradamente grande como para levar a cabo este tipo de cometido vai uma grande distância. Depois, se a complexidade cerebral é uma função da complexidade instrumental, então os modelos de evolução do conjunto cérebro/inteligência técnica não estão tratando de descrever a filogênese da inteligência senão a evolução dos próprios instrumentos líticos[5].

 

Por conseguinte, parece razoável supor que algo distinto motivou o aumento do tamanho de nossa arquitetura cerebral, uma vez que a correlação inteligência/capacidade de fabricação não está demonstrada mais além de qualquer dúvida razoável. Na verdade, essas dúvidas existem e persistem. O tecido cerebral é, para dizer com uma expressão afortunada de Leslie Aiello, muito custoso . São muitos os recursos biológicos e energéticos que há que investir para obter os grandes cérebros que a pressão seletiva impôs no Homo.

 

Agora, se não é a complexidade instrumental a responsável de manter essa pressão, quer dizer, tendo por acertada a hipótese de que a inteligência operativa, por si só, não é suficiente para justificar o alto custo da evolução de nosso cérebro (e que também sequer cabe pensar que o mesmo ocorrera de forma acidental), o problema então passa a ser o seguinte: a que tarefa cognitiva há que atribuir o êxito adaptativo dos cérebros que aumentam de tamanho e, segundo cremos, de complexidade, um êxito mais que necessário para justificar o incremento de um tecido cerebral tão custoso?

 

Várias teorias modernas da evolução do cérebro humano mantém que o principal estímulo ambiental seletivo para seu rápido crescimento pode haver sido as exigências de ter que tratar com a complexidade da vida social. Em vez de pensar que o cérebro humano se desenvolveu simplesmente para solventar os problemas do entorno material, temos que considerá-lo mais bem como um órgão  social desenvolvido no interior do espírito coletivo de uma comunidade. Não como uma máquina calculadora generalizada, senão como provisto de módulos para tratar com os distintos aspectos da vida social, ao igual que tem também módulos para a aquisição da linguagem ou para o reconhecimento facial.

 

Daí que uma possível resposta à pergunta antes formulada tenha sido antecipada por Nicholas Humphrey há algum tempo: os cérebros se tornaram grandes e complicados para poder entender as regras muito complexas de convivência social. Com um detalhe a mais: a aparição na filogênese de inteligências capazes de entender tais regras deve ter sucedido antes da separação das linhagens que conduzem respectivamente ao Pan e Homo. De fato, nada nos autoriza a supor que a vida social dos chimpanzés seja simples.

 

O córtex frontal alberga funções como a planificação e a tomada de decisões que parecem derivadas mais da necessidade de interagir com os membros de um grupo social complexo que da resolução de outros problemas relacionados com o meio ambiente. Pode-se dizer, portanto, que uma das principais pressões que conduziram aos humanos a evolucionar na forma em que o fizeram foram os próprios humanos em sua dimensão social, isto é, que foi a necessidade de afrontar o complexo mundo social em que viviam o que os levou a desenvolver cérebros mais grandes (Dunbar). É deveras mais difícil, desde logo, poder predizer o comportamento do próximo que o calendário anual que, por si mesmo, se repete sistematicamente com o passo dos séculos. As mesmas razões às que aludíamos antes a respeito da necessidade de justificar o aparecimento do tecido cerebral custoso se aplicam em maior medida ainda no que se refere  a última expansão do córtex nos seres humanos  de aspecto moderno.

 

Dito de outro modo,  da vida em grupo dos primatas resultou a necessidade (evolutiva e adaptativa)  de processos cognitivos especializados  para competir com êxito na complexidade de nosso estilo de vida social :  as relações sociais implicam  na construção e verificação de hipóteses e conjecturas, algo muito distinto à tomada de decisões sobre a busca e provisão de alimentos  dos chimpanzés , que é simples memória rotinária    se  maltratamos, por exemplo, a  um cachorro, seguramente da próxima vez reagirá com agressividade, mas jamais conspirará para tirar-nos um posto de trabalho, uma companheira ou qualquer outra coisa que apreciamos muito. Aquí residiria a função biológica da consciência.

 

E foi precisamente Nicholas Humphrey  quem avançou uma elegante explicação de tipo evolucionista referida a um módulo da teoria da mente. Em realidade, foi este psicólogo de Cambridge quem introduziu a psicologia da evolução no mundo acadêmico. Em um original e inteligente trabalho intitulado  “ A função social do intelecto”, Humphrey  defende a sofisticada hipótese de que  quando  os indivíduos vivem  no  seio de um grupo e estabelecem  múltiplas relações  de cooperação, competição e reciprocidade, os indivíduos com capacidade para predizer o comportamento dos demais alcançam  maior êxito reprodutivo. O núcleo da tese de Humphrey  radica na idéia de que a  consciência  permite-nos  utilizar   nossa própria mente como  modelo da mente dos demais indivíduos : pensar que outras pessoas pensam da mesma maneira como pensamos foi de um valor imenso em termos de evolução. 

 

A consciência evoluiu para permitir-nos utilizar nossa mente como  modelo para compreender a mente de outras pessoas e, graças a ela , possuímos a capacidade de  tomar nossas mentes  como medida de todas as coisas. Ou seja, em algum momento de nosso passado evolutivo foi possível  encerrar-nos  em nossos próprios pensamentos  e sentimentos , e  perguntar-nos a nós mesmos  como nos comportaríamos  em tal ou qual situação fictícia. É a essa capacidade de representação interior cuja função é permitir que cada ser humano se entenda e se relacione com os demais que Humphrey denomina  de  conciência  – esse truque engenhoso de que nos valemos para ler o conteúdo da mente de outras pessoas. E  havendo  a consciência ( e também o cérebro) evoluído como parte da inteligência social (isto é, da capacidade estritamente vinculada à interação com os membros da mesma espécie, podendo essa interação ser violenta, cooperativa, ou algo a meio caminho entre essas características ) , como qualquer outra faculdade e estrutura natural, deve ter chegado a existir porque conferia às criaturas que  a possuíssem algum tipo de vantagem biológica.

 

Dessa forma, os primeiros hominídeos teriam avançado de forma muito notável em relação com seus ancestrais quando começaram a indagar dentro de suas mentes para entender a conduta de seu entorno. Esta introspecção deu origem ao que Humphrey denominou  Homo psychologicus” , aos humanos ( psicólogos naturais inatos) capazes de compreender seus congêneres e, em última instância, a si mesmos. À medida que os  primatas foram desenvolvendo suas complexas estruturas sociais, sua sobrevivência começou a depender de  argúcias mais sofisticadas para predizer o comportamento de outros indivíduos de sua espécie.

 

Imaginemos , por exemplo,  um macho que pretendesse apoderar-se de uma fêmea de seu grupo rival ou de uma porção de comida maior da que lhe correspondesse. Antecipar-se aos movimentos do outro lhe seria seguramente de grande ajuda  e, um modo de  consegui-lo,  implica na necessidade de  observar  os próprios processos interiores. O que Humphrey sugere é que um sistema social complexo torna aconselhável dispor de  certo sentido do  “eu interior” para  sobreviver nos intercâmbios recíprocos e  para desenvolver uma “teoria da mente”, isto é, a certeza de que os outros também têm intenções e preferências (desde logo de primeira e de segunda ordem) , crenças , pontos de vista e desejos. De fato , parece que não há dúvidas de que podemos aprender  muito com a só observação  inteligente do que ocorre  em nosso entorno, e seguramente o fazemos. Mas uma coisa é dar-se conta  dos fatos externos  e outra muito distinta é ler o que há sob a  superfície e dar sentido ao que vemos.

 

E dar sentido aos fatos externos  é, precisamente , o que constantemente (consciente ou inconscientemente) estamos fazendo, circunstância que se relaciona como nossa inata capacidade para inventar explicações de fatos e fenômenos, estados de ânimo e emoções, para encontrar uma história plausível que explique tudo o que os demais ( e também nós mesmos) fazem ou sentem. É da natureza do existir humano que quando observamos o comportamento de nossos congêneres, raras vezes,  pode até que nunca, observamos um mero mosaico de atos incidentais; o que vemos detrás  deles é uma estrutura causal mais profunda, a presença oculta de planos, intenções, emoções, recordações etc., e, partindo dessa base, podemos tratar de compreender o que fazem os demais. Estamos desenhados[6] pela seleção natural para ter uma capacidade de prever ou de ter uma imagem, uma espécie de modelo conceitual da mente humana, sem a qual  uma espécie essencialmente  social como a nossa não  teria podido  sequer prosperar biologicamente[7].

 

Em resumo, a função própria do fabuloso desenvolvimento neocortical do  homo sapiens  é precisamente a de facilitar a interpretação própria e alheia, a inteligência social. A origem biológica de nossas mais extraordinárias capacidades cognitivas – como em todos os grandes hominídeos – é de todo ponto social. Daí que seja muito provável que a melhor razão existente do grande desenvolvimento neocortical do Homo sapiens deva referir-se a um fenômeno cognitivo ligado ao reconhecimento do outro e à valoração de sua conduta: o tratamento da reciprocidade entendido como “função própria” dos seres humanos.

 

Pois bem, a noção de “função própria” foi cunhada por Ruth Millikan em 1984 e se refere aos constituintes essenciais e exclusivos da forma de atuar de nossa espécie, que se considera ligada à natureza própria de qualquer ser humano  a despeito e à margem de diferenças temporais ou geográficas[8]. Segundo Domènech , o último Hayek se mostrou muito preocupado pelas implicações de um conceito assim, já que via na existência de funções próprias de nossas intuições morais uma ameaça e uma fonte inamovível de descontentamento e oposição à ordem capitalista ultraliberal que era de seu gosto: “Os instintos inatos do homem não são a propósito para uma sociedade como a que vivemos. Os instintos estavam adaptados à vida em pequenos grupos (…). Só a civilização trouxe individualização e diferenciação. O pensamento primitivo consiste fundamentalmente em sentimentos comuns dos membros dos pequenos grupos. O coletivismo moderno é uma recaída nesse estado selvagem, um intento de reconstruir esses fortes vínculos que se dão nos grupos limitados…”.

 

Mas a incomodidade que possa produzir um conceito assim não é o verdadeiro problema. A questão essencial é a de saber em que medida podem detectar-se e documentar-se funções próprias nas origens da socialização humana e até que ponto continuam essas funções marcando o terreno das intuições morais como sistema de convivência. Porque, de ser assim, o intento de retomar o “estado selvagem” – leia-se “natural” – poderia converter-se não somente em algo errôneo senão muito perigoso.

 

É possível documentar tais “funções próprias” do ser humano?

 

Inferir e predizer o comportamento dos demais, manter a coesão social e a cooperação intragrupal e resolver problemas rotinários de sobrevivência, de reprodução, de intercâmbio social na vida em grupo são necessidades que, em nossa espécie, conduziram à fixação de mecanismos muito sutis para a avaliação das atitudes cooperativas. Os problemas que levanta para  um grupo de cooperadores a existência de egoístas camuflados de altruístas, e a necessidade de identificar e castigar a quem se supõe uma carga social assim, é um aspecto que a sociobilogia e a etologia tem tratado com freqüência. De fato, os estudos realizados por Cosmides e seus colaboradores sugerem que a seleção natural poderia haver fixado no cérebro humano certos circuitos especializados na análise dos intercâmbios sociais, capazes de detectar as condutas enganosas .

 

De tal sorte, o estabelecimento de “contratos” cooperativos seria mais que uma propensão cultural universal: suporia um traço humano característico de nossa espécie, uma atividade tão estendida no comportamento social humano como a linguagem e o pensamento abstrato. Significaria de fato o principal fator de condicionamento e desenvolvimento das capacidades cognitivas das pessoas, das relações, dos motivos, das emoções e das intenções que se manifestam no entorno social.De acordo com esta hipótese, a proposta de Cosmides e colaboradores parecem fazer referência a uma parte do cérebro humano que funciona como uma máquina de calcular implacável e arrasadora. Ele trata cada problema como um contrato social firmado por duas pessoas e fiscaliza aquelas que podem burlar o contrato. É um órgão de troca que tudo o que faz é empregar módulos especiais de dedução projetados pela seleção natural para descobrir violações de contratos firmados por duas partes.

 

Em realidade, como espécie, em qualquer entorno que vivamos, seja qual for a cultura, não somente parece que somos excepcionalmente conscientes da relação custo-benefício existentes nas trocas, como inventamos a troca ou o contrato social mesmo nas situações mais impróprias. O tecido inteiro de nossa sociedade e economia está baseado em uma imensa rede de relações de reciprocidade. Os cidadãos respeitam a vida e propriedade dos demais, à condição de que os demais respeitem a sua. O cozinheiro do restaurante prepara a comida para mim supondo que eu pagarei a conta. Em geral, as transações baseadas na divisão social do trabalho pressupõe uma grande rede de obrigações recíprocas, à qual coincide com nossas intuições morais, isto é, com nossa tendência inata à reciprocidade.

 

 Nas palavras de Ridley e Haidt, a reciprocidade pende, como a espada de Dâmocles, sobre a cabeça de cada ser humano: obrigação, dever, dívida, favor, ajuste, contrato, troca, negócio… O que não falta em nossa linguagem e em nossa vida são idéias de reciprocidade, de contrato e de troca social. O que os demais fazem conosco (e por nós) e pensam de nossos comportamentos tem uma grande importância para nossas atitudes morais.

 

Graças ao princípio de reciprocidade e do raciocínio em termos de contrato social as relações cooperativas se converteram em uma base prática da vida social. O sentido de endividamento, da necessidade de devolver um presente ou um favor, parece ser universal e corresponder provavelmente a uma predisposição inata evolucionada em uma linhagem, o do gênero  Homo , cujos vínculos sociais relacionais se estabeleceram em um mundo de caçadores-recoletores para os quais a sobrevivência diária não dependia do dinheiro guardado em um banco senão do grau de intercâmbio social e da força de coesão dos vínculos sociais criados e estabelecidos entre os membros do grupo.

 

Em realidade, uma das consequências mais importantes dos experimentos pioneiros de Cosmides e colaboradores aos que aludíamos antes – e seguramente hoje um dos melhores trabalhos de psicologia darwiniana (Dennett) – é o fato de que se obtiveram indícios firmes de que a formação de um contrato não é simplesmente o produto de uma única faculdade racional que opera por igual através de todos os acordos estabelecidos  entre as partes que negociam. O processo inclui uma capacidade, a detecção do engano, que se desenvolveu até níveis excepcionais de agudeza e cálculo rápido. A detecção do “trapaceiro” destaca em agudeza da detecção do mero erro e alcança a questão básica do estabelecimento das relações sociais, altruístas ou não. Um contrato, assim, é uma implicação da forma “se queres obter um benefício, tens que satisfazer um requisito”. Os indivíduos que pretendem levar-se o benefício sem satisfazer o requisito devem poder ser detectados (Pinker) [9].

 

A capacidade de detecção é desencadeada como um procedimento computacional somente quando se especificam os custos e os benefícios de um contrato social. Mais que o erro, mais que as boas razões, e mais inclusive que a margem de benefício, o que atrai a atenção é a possibilidade de que outros nos enganem: algo assim ativa nossas intuições e emoções morais e serve como fonte principal para o aparecimento de atitudes hostis. Em suma, o engano desequilibra os quatro vínculos sociais relacionais – comunidade, autoridade, proporcionalidade e igualdade – presentes em nossos intercâmbios sociais (Atahualpa Fernandez).De tal maneira, a mente parece dispor de um detector de mentiras com uma lógica própria: quando a referência standard de “jogo limpo” e o resultado do detector de mentiras coincidem, as pessoas atuam de forma geral (ainda que nem sempre) seguindo a lógica racional estabelecida pelo modelo do Homo oeconomicus;  quando as referências e as detecções se separam, aparece outra ordem de pensamento destinado a castigar quem fez a  trapaça[10]. 

 

O conceito de trapaça pode alcançar inclusive cotas muito sutis. Consideremos, pr exemplo, o chamado jogo do ultimatum – ideado por Werner Gütz e seus colaboradores- , no qual um primeiro ator A1 deve oferecer a um segundo A2 uma parte da quantidade de dinheiro que se lhe oferece ao primeiro, de forma que se o segundo aceita o oferecido ambos obtêm seu prêmio e, se o rechaça, ambos ficam sem nada. Uma idéia da lógica racional humana levaria a entender que A2 deve aceitar qualquer quantidade que A1 lhe ofereça; ao fim e ao cabo sempre será mais que nada. Mas não sucede assim; por debaixo de um determinado percentual de reparto, os sujeitos dos experimentos rechaçam o acordo[11]. Talvez o mais  interessante ao respeito seja a identificação, por parte de Sanfey e colaboradores, das áreas cerebrais  implicadas nessa decisão de raiz estritamente ligada a um sentido da justiça: resultam ser as mesmas que, no modelo de Damasio do marcador somático, formam parte da rede neuronal de interconexão fronto-límbica[12].

 

Com efeito, uma conduta desse estilo põe de manifesto alguma que outra chave interessante acerca do componente emotivo da inteligência e seu peso nos processos de tomada de decisões e das ações que levamos ao cabo. Coloca-nos diante do fato, por exemplo, que já vai sendo hora de rever os modelos matemáticos que descrevem o comportamento humano em termos de cálculo e decisão, com o fim de introduzir neles a variável emotiva. Mas pelo momento não sabemos como fazê-lo, provavelmente porque tão pouco pareça possível dizer-se que saibamos demasiado acerca da maneira como nossos cérebros relacionam sentimentos e juízos.

 

Nossas mentes, dizem Sober e Wilson, foram formadas por mecanismos psicológicos que evolucionaram por seleção natural para favorecer comportamentos adaptativos, entre os quais se encontra um interesse remoto pelo bem estar dos demais e as predisposições típicas de uma espécie desenhada para ser social, fidedigna e cooperadora. Os seres humanos estão imersos nos instintos sociais: vêm ao mundo equipados com predisposições para aprender a cooperar, a distinguir ao justo e virtuoso do traiçoeiro, a ser leais, a conquistar boa reputação, a intercambiar produtos e informações, a dividir o trabalho e a modelar sua individualidade e seus vínculos sociais a partir das reações do outro. Nisso, somos únicos. E em uma medida essencial o somos graças à maneira como funcionam nossos cérebros.

 

 Espécie alguma avançou tanto em sua caminhada evolutiva, pois nenhuma outra construiu uma sociedade tão integrada, à exceção dos parentes dentro de uma grande família, como a colônia de formigas. Devemos nosso êxito como espécie aos instintos sociais que possuímos; eles nos permitiram colher benefícios inimagináveis de nossa entranhável vida social (por exemplo, ao nascer com um cérebro imaturo, que leva certo tempo para desenvolver-se, jamais poderíamos sobreviver, como espécie, se não dispuséssemos de intensas emoções morais e de rígidos códigos de ética compartidos pelo grupo ao qual pertencemos).

 

São eles os responsáveis pela rápida expansão do nosso cérebro nos últimos dois milhões de anos e, conseqüentemente, por nossa criatividade e sobrevivência social. A sociedade e a mente humana evoluíram juntas, uma reforçando tendências da outra. Longe de ser uma característica universal da vida animal, a tendência a cooperar e a raciocinar em termos de contrato social, sempre a partir do “outro”, é a marca de qualidade e legitimidade do ser humano, aquilo que nos distingue de outros animais. Depois, a própria idéia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana – não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal.

 

A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros : a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a – e se vê afetada por –  os demais seres humanos .

 

Daí a razão pela qual E. Levinas adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro[13]. Não existe uma liberdade e dignidade humana lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe.  Desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial[14].

 

Por conseguinte, a mera existência do “outro” vem a converter-se em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do seu reconhecimento como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária, em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pelo “outro”, por sua dignidade, o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre livre e igual.

 

Dito de outro modo, a presença e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social e qualquer coisa que destrua ou limite a presença e a aceitação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou limita o fato de se dar o fenômeno social – e, portanto, humano-, porque destrói o processo biológico que o gera e o sentimento de que estamos desenhados pela seleção natural para entender-nos uns aos outros (Maturana)[15].

 

 

 

* Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular-Unama/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado); Advogado.

 

** Advogado(OAB/SP), Doutorando em Direito Público (Ciências Criminais)/Universitat de les Illes Balears/UIB, Doutorando em Humanidades y Ciencias Sociales (Evolución y Cognición Humana)/UIB ; Research Scholar do Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.

 

 

Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

 

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[1] “Teoria da mente” (expressão atribuída a Premack e Woodruff) significa a capacidade de reconhecer que os outros tem mente com pensamentos e sentimentos como os nossos. Esta característica do cérebro é essencial para a estrutura social complexa que os humanos criaram. Trata-se de uma capacidade que constitui um traço notável e crucial da psicologia humana e que aparece mais ou menos a partir dos quatro anos e meio idade ( até a idade de quatro anos uma criança ainda não é capaz de distinguir entre seu próprio conhecimento do mundo e o conhecimento que outros indivíduos tem da realidade). A partir dessa idade (já que as crianças não nascem com esta capacidade mental)  uma criança é capaz de reconhecer que outros indivíduos podem ter uma crença sobre o mundo distinta da sua própria: uma crença que sabe (ou, ao menos, que considera falsa); é então – afirma Dunbar -, quando se diz que a criança adquiriu a capacidade de imaginar um mundo que não está fisicamente presente e uma “teoria da mente”: instintivamente compreende que os demais tem mentes próprias, não muito distintas do que ele experimenta como sua própria mente. O modelo de atribuição de estados mentais a outros seres para valorar suas atitudes e suas possíveis reações a nossas respostas motoras, quer dizer, a chamada teoria dos sistemas intencionais que enunciou o filósofo Daniel Dennett , indica que certos primatas entre os que nos encontramos – mas não somente –  alcançam estágios muito complexos de ordem intencional. Seguindo o modelo de Dennett , as estratégias que mantém qualquer indivíduo pertencente a uma comunidade na qual se encontra congêneres seus – ou, em geral, qualquer indivíduo A que interaja com outro B – dependem da maneira como A considera que sua própria conduta influirá no que faça B. Os cálculos podem chegar a ser tão complicados no vaivém das expectativas como os que realiza um jogador de xadrez antecipando os movimentos. Está claro, pois, que se alguns primatas são capazes de avaliar o mundo e seu papel nele dessa maneira, as doses de “inteligência” que necessitam com respeito a essas tarefas cognitivas são notáveis. O conceito de inteligência maquiavélica intenta expressar o rango de processamentos cognitivos necessários para toda espécie que alcance o sistema intencional de terceira ordem proposto por Dennett, em que o indivíduo A atribuiria a aquele outro B com o qual interage a possessão de uma mente o bastante complexa como para albergar desejos e crenças acerca do próprio A. De tal maneira, se supõe que A atuará da melhor maneira possível para lograr que B interprete sua conduta – a de A –  da forma que A prefere. Somos agentes sociais, viria a ser a conclusão, e desejamos manipular aos outros. Ora, uma conduta desse estilo põe de manifesto alguma que outra chave interessante acerca do componente emotivo da inteligência e seu peso nos processos de tomada de decisões e das ações que levamos a cabo. Coloca-nos diante do fato, por exemplo, que já vai sendo hora de cambiar os modelos matemáticos que descrevem o comportamento humano em termos de cálculo e decisão, com o fim de introduzir neles a variável emotiva. Mas pelo momento não sabemos como fazê-lo, provavelmente porque tampouco pareça possível dizer-se que saibamos demasiado acerca da maneira como nossos cérebros relacionam sentimentos e juízos. Sem embargo, por fortuna as ciências cognitivas têm vindo a suprir essas deficiências e, pouco a pouco, começamos a entender como são os correlatos cerebrais de nossos processos cognitivos/emocionais. Note-se, por fim, que as especializações cognitivas domínio-específicas são ainda mais necessárias nesta área, não somente porque as outras mentes constituem a força de seleção mais importante à que se enfrentam os indivíduos humanos, senão ademais porque estados humanos tais como as crenças, os desejos, as intenções e as emoções não se podem observar diretamente. Para que um ser humano possa representar-se sequer uma parte dos estados mentais que geram  o comportamento dos outros, deve estar dotado de sistemas inferenciais especiais, capazes de atravessar a brecha existente entre o observável e o não observável. Por exemplo, se existe uma relação fiável e duradora ao largo da evolução entre os movimentos dos músculos faciais humanos e os estados emocionais ou as intenções condutuais, então a evolução pode haver originado mecanismos especializados que permitam inferir o estado mental de uma pessoa a partir dos movimentos de seus músculos faciais (Ekman; Fridlund). Em realidade, as evidências provenientes da neurociência cognitiva indicam que realmente contamos com mecanismos especializados que nos permitem “ler” as expressões faciais de emoções (Morgado). E isso é coerente com as novas descobertas neurocientíficas relativas ao que Gazzaniga  denomina “intérprete do hemisfério esquerdo”: de que existe uma zona do hemisfério esquerdo do cérebro que fabrica nossas crenças e que intenta compreender o significado ou o modelo de nossas próprias ações ou estados anímicos, assim como o significado das ações e estados anímicos dos demais. Assim que se os seres humanos organizam sua compreensão mútua invocando o funcionamento de entidades não observáveis, tais como crenças, desejos e intenções, sem dúvida não podem fazê-lo baseando-se na pura percepção (Cosmides e Tooby). Dito de outro modo, existem evidências que sugerem que os seres humanos chegam ao mundo com uma tendência a organizar sua compreensão das ações dos demais em termos de crenças, desejos e outras entidades mentais – isto é, de que estamos desenhados e configurados para formarnos crenças baseadas em nossas influências culturais, em nosso entorno (Gazzaniga)- , do mesmo modo que organizam padrões em um conjunto retinal de duas dimensões, supondo que o mundo é tridimensional e que os objetos são permanentes, integrados e sólidos: as pessoas que pertencem a culturas diferentes desenvolvem sua psicologia de sentido comum (“folk psychology”) de modos diferentes, mas a maquinaria cerebral que guia o desenvolvimento desta classe de noções seria a mesma e daria origem a muitas representações semelhantes. 

[2] O problema do altruísmo, tanto em seu marco evolutivo como no psicológico, resulta fascinante em vários níveis. Trata das experiências vitais que todos possuímos, o que sentimos pelos demais e o que os outros sentem por nós. O argumento para o altruísmo  psicológico ou moral requer demonstrar que entre os mecanismos psicológicos que evolucionaram para motivar o comportamento adaptativo, se encontra um interesse remoto pelo bem estar dos demais: o ato de ajudar a outros não se considera altruísta (em termos psicológicos), a menos que o agente pense no bem estar dos demais como um objetivo remoto, isto é, a hipótese do altruísmo mantém que algumas pessoas, ao menos durante um tempo, se preocupam ou consideram o bem estar de outras como um fim em si mesmo (os altruístas possuem objetivos inflexíveis dirigidos a outros). Pois bem, os conceitos de egoísmo e altruísmo psicológicos concernem aos motivos que tem as pessoas que atuar de uma determinada maneira. O hedonismo é uma versão concreta de uma teoria mais geral, o egoísmo psicológico, que afirma que o objetivo final, que os únicos objetivos remotos de todo indivíduo estão dirigidos a si mesmo, a seu próprio benefício: o que nos importa, em última instância, está limitado aos estados de nossa própria consciência; o que ocorre no mundo mais além da mente somente possui valor instrumental. O egoísmo mantêm que quando nos importa o que lhes sucede aos demais, somente o fazemos como um meio (uma forma instrumental) para aumentar nosso próprio bem estar. Esta opinião afirma que as pessoas jamais tem motivos remotos altruístas. O egoísmo não indica se devemos alegrar-nos ou deseperar-nos por esta característica da mente humana; só pretende descrever como são os fatos em realidade. Em todas as nossas interações sociais somente nos move uma pergunta: “Que posso obter?”. Em termos humanos, esta interpretação significaria que a madre Teresa responde ao mesmo instinto básico que um estafador ou ladrão – o que, desde logo, sería difícil encontrar uma visão mais cínica. É difícil exagerar a influência generalizada que teve e tem o hedonismo e o egoísmo sobre o pensamento das pessoas. Para muitos, o egoismo é algo óbvio, lógico. Com frequência, às pessoas não lhes surpreende que alguém atue com cruel egoísmo, mas se assombram quando outros se sacrificam pelo bem dos demais. Quando se sustenta que os seres humanos são egoístas por natureza (no melhor estilo paulino), esta declaração se considera com frequência produto de um realismo clarividente; sem embargo, se se manifesta que os seres humanos são benevolentes por natureza, é deveras comum apareceram sorrisos indulgentes, e se pensa que esta afirmação reflete uma ingênua propensão a contemplar o mundo de forma enganosa e irrealista. É difícil refutar o egoísmo psicológico, mas também, e na mesma medida, resulta difícil prová-lo. Inclusive quando se  pensa em uma explicação puramente egoísta para todos os atos de ajuda, isto não significa que o egoísmo seja certo. Depois de tudo, o comportamento humano também  é compatível com a hipótese contrária: alguns de nossos objetivos remotos são altruístas. A idéia de que o interesse próprio governa por inteiro o comportamento humano, e de que os motivos remotos altruístas não existem, nunca foi apoiada por uma teoria coerente, nem por observações decisivas e concludentes: se os mecanismos psicológicos estão parcialmente desenhados pela seleção natural para que produzam comportamentos adaptativos, existe uma boa razão para pensar que nem todos apresentam exclusivamente motivos remotos egoístas. Sem embargo,  a influência que exerce o egoísmo psicológico supera em grande medida as provas que já se reuniram a seu favor. O egoísmo pode refutar-se quando se formula de modo simplista. Por exemplo, se o egoísmo afirma que o único objetivo remoto das pessoas é maximizar seu acesso aos bens de consumo, não resulta difícil descrever comportamentos que demonstram a falsidade desta afirmação. Mas se o egoísmo sustenta que os seres humanos desejam benefícios internos psicológicos, é mais complicado demonstrar que a proposição é errônea. Quando as pessoas sacrificam seus próprios interesses para ajudar a outra, o egoísmo mantem que é para sentir-se bem e evitar a culpabilidade. O egoísmo é uma mansão com muitas habitações. Na teoria, parece haver espaço suficiente para explicar o comportamento de ajuda e a existência de desejos que concernem ao bem estar de outros: ambos se explicam como instrumentos para fomentar o interesse próprio. Mas há que se tomar com certa reserva aos que insistem em dizer coisas pelo estilo de “que o maior perigo que ronda o homem é o próprio homem cuja psique jamais evolui; que a humanidade como um todo continua ignorante, avara, ganaciosa, invejosa, hipócrita, mentirosa, egoísta, hedonista, cruel, violenta… e, ao mesmo tempo, que existe uma tendência inata no ser humano, com as exceções de sempre, que o induz a se inclinar para o que é mau, abjeto, pérfido e uma necessidade visceral de se submeter á alguma pessoa ou entidade para se comprazer na igualdade que escraviza”. Tais autores incorrem em uma inconsistência performativa. O conteúdo que afirmam não somente é equivocado, senão que é propriamente inconsistente o simples ato de afirmá-lo. De fato, as doutrinas (de estirpe sofista) que afirmam o “egoísmo moral” configuram uma ilustração clara dessa inconsistência performativa. De acordo com elas, não há nenhum bem – moral, ou de outro tipo – que não seja serviçal, quer dizer, que não seja sustentado ou abraçado ou afirmado pro domo mea, posto, isto é, ao serviço do interesse próprio, e por isso mesmo, embutido hipocritamente no cendal das causas comuns. Agora bem, sustentar isso ou é auto-refutatório (se supomos que quem o diz, o diz desinteressadamente), ou é performativamente inconsistente, à medida  que não se vê que interesse próprio pode  promover a paladina declaração de que nada se faz ou se diz desinteressadamente. Seja como for, parece haver razões suficientes para explicar o fato de que o conceito de altruismo segue sendo uma espécie ameaçada (Campbell; Sober e Wilson).   

 

[3] A enorme quantidade de neurônios do cérebro dos craniados, sua intrincadíssima e em grande parte ainda desconhecida microestrutura, a multiplicidade insondável de suas conexões sinápticas e a pluralidade de neurotransmissores dão lugar a um jogo combinatório com potencialidades de complexidade quase ilimitada. O cérebro humano, por exemplo, possui uns cem bilhões de neurônios, cada um dos quais pode estabelecer umas mil conexões, por meio das quais se podem transmitir como sinais mais de cinquenta tipos distintos de neurotransmissores. Não é de estranhar , portanto, que suas possibilidades de codificação e processo da informação sejam inabarcáveis.(Atahualpa Fernandez).

[4] Assim, por exemplo, o uso de ferramentas supõe umas destrezas cognitivas tais  como a faculdade  de antecipar o objetivo a lograr, com frequência invisível  ou distante do lugar donde se prepara ou se usa o instrumento. Note-se, sem embargo, que quaisquer dos traços relativos à  postura bípeda, o desenvolvimento do tamanho do cérebro  e o uso de ferramentas que se hão considerado marcadores chave da humanidade parecem proceder de períodos de tempo bastante distintos. Longe de aparecer de uma vez em uma sorte de super-mutação massiva, as provas indicam que todos esses traços foram surgindo e desenvolvendo-se pouco a pouco ao largo de toda nossa história evolutiva (em um período de vários milhõe de anos), começando mais ou menos quando nossos ancestrais se separaram  dos outros símios. De fato, não há nenhum momento determinado no qual possamos exclamar “Aqui nos convertemos em humanos !”, nenhum grande momento de conversão na rota a Damasco que faça com que os não humanos se convertam repentinamente em seres humanos. O momento em que formulemos dita exclamação depende totalmente do traço que queiramos considerar “especialmente humano”. Talvez deveríamos ver a história de nossa espécie como o acúmulo e o desenvolvimento gradual dos componentes chave, um a um, cada um como resposta a alguma circunstância única, a um desafio concreto, mas cada um deles cimentando o caminho até o próximo na larga sequência que, ao final, nos conduziu aonde estamos agora, isto é, como o acúmulo e desenvolvimento de graus cada vez maiores da humanidade que finalmente se reuniram há só cinquenta mil anos, com a revolução do Paleolítico Superior – aproximadamente cem mil anos antes de que o cérebro humano alcançara seu tamanho moderno  e que quase esteve limitada a Europa e não se produziu nada pelo estilo entre nossos colegas de África, Ásia e Austrália.(Dunbar).

[5] As técnicas ou “indústrias” que melhor conhecemos são as líticas, pois a pedra se conserva melhor que os outros materiais. Uma observação paralela acerca da inteligência (um traço poligenético que se caracteriza por ser o resultado da combinação de vários – dezenas, senão de centenas ou milhares – genes com diversos graus de influência): se soubessemos o que é a inteligência, já seja animal ou humana, poderíamos talvez colocar-nos a tarefa de rastrear sua evolução. O certo é que o requisito prévio não se cumpre. “Inteligência”, da mesma forma que “mente”, “pensamento”, “vontade”, “intenção” e a maior parte das palavras que utilizamos para falar das ações correntes de qualquer ser humano são conceitos de sentido comum: os utilizamos aceitando a vacuidade de seus significados na medida em que, fazendo uso da introspecção, todos somos capazes de entender a que se referem. Definem, pois, uma condição, uma maneira de ser e obrar como “humano”, e que os filósofos levam séculos utilizando a guisa de ponto de partida para construir os sistemas ontológicos de que se ocupa a antropologia filosófica. O sentido técnico de “inteligência” – ou de qualquer outro dos termos mencionados – é  outro. O autor que já estudou com maior profundidade e sutileza os fenômenos mentais humanos buscando realizar um modelo técnico de sua estrutura, Noam Chomsky – seguindo a Hilary Putnam –, sustenta inclusive que quando nos referimos a esses aspectos do que supõe um “ser humano” não é possível ir mais além de uma folk psichology, quer dizer, das aproximações de sentido comum (Chomsky). Mas, se é assim, então nem sequer o ponto de partida está bem definido. Como poderíamos avançar na busca filogenética de algo que não sabemos exatamente o que é? Por fortuna as ciências cognitivas têm vindo em nossa ajuda. Graças a elas contamos com uma definição técnica de “mente”. A mente é um estado funcional do cérebro, coisa que nos permite não somente estabelecer os correlatos cerebrais da linguagem senão também os de outras faculdades mentais. A inteligência cabe entendê-la, portanto, como uma determinada forma de encadear: (I) informações perceptivas – inputs – (II) elementos existentes no armazém da memória para dar sentido a essas percepções e, por fim, (III) ações motoras – outputs. Por outro lado e de uma maneira parecida, não custa nenhum trabalho aceitar que a mente humana inclui a autoconsciência. O próprio Descartes construiu seu sistema filosófico a partir dessa afirmação axiomática que o filósofo francês considerava evidente em si mesma. Mas explicar como se produziu a evolução do conjunto mente/cérebro até chegar às capacidades humanas que denominamos com maior ênfase “inteligentes” –  como a linguagem de dupla articulação, a moral complexa e a estética a guisa de traços derivados, próprios e distintivos dessa forma de ser do Homo sapiens –  supõe e levanta dificuldades ingentes. Tanto como para que Richard Lewontin concluisse, ao princípio de um texto seu dedicado a tratar da evolução da mente, que: “If it were our purpose in this chapter to say what is actually known about the evolution of human cognition, we could stop at the end of this sentence” . Sem embargo, o fato de que saibamos muito pouco sobre a evolução e o sentido da mente e inteligência humana não implica em absoluto que faltem propostas científicas tendentes a converter esse mar de especulações em certeza. Esta é, decerto, a tarefa que se espera da ciência.

 

 

 

[6]Uma observação necessária : no que cabe, ao usarmos o termo “desenho” ao longo desta tese não nos referimos a qualquer tipo de postura “criacionista” ou de “desenho inteligente”, senão, e sempre, a algo desenhado pela seleção natural. De fato, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (Dawkins e Dennett).

[7] Pois bem, a título meramente ilustrativo, citamos aqui a cópula de frente que já se pretendeu ver como próprio da espécie humana (agora sabemos que também a praticam os bonobos, assim como alguns símios platirrinos, como os muriquis –Brachyteles aracnoides– de Brasil – Dunbar). Trata-se de uma consequência das disposições anatômicas ligadas ao bipedismo (posição do útero com respeito à vagina e orientação desta última). Mas não é também a forma mais próxima de ler na mirada do outro algo mais profundo durante o ato sexual? E a intenção, que parece um princípio fundamental da ética, está integrada em nosso cérebro? A investigação sobre a “teoria da mente” sugere que em efeito é assim. De fato, a intenção pode ser uma das características definitórias da espécie humana. Uma parte crucial do ser humano consiste em ter uma teoria sobre as intenções dos demais em relação consigo mesmo. Se eu tenho uma teoria sobre como me relaciono com alguém e este alguém comigo, grande parte dela se baseia em como interpreto nossas intenções mútuas. Esta constatação – a de que nosso cérebro está configurado para formar-se intenções, para construir crenças pessoais ou “teorias da mente”- deve ser o contexto desde o qual se analise todo argumento de intencionalidade. Pois bem, a indagação acerca dos pensamentos e sentimentos dos demais tem sido matéria de amplas investigações durante anos. Mais recentemente se arrojou nova luz sobre estas questões que receberam nova atenção graças à obra imaginativa e influente do neurofisiologista  italiano Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma. Em suas investigações com macacos, Rizzolatti e seus colaboradores  descubriram o que hoje se conhece com o termo popular de “neuronas espelho”. São neuronas que respondem a um tipo de gesto particular, independentemente de quem faça dito gesto: o mono de que se registra a atividade cerebral, ou bem outro mono. Se o mono investigado tenta pegar uma uva, observa-se uma descarga em determinadas zonas dos lóbulos prefrontais do animal. Se outro mono, ou inclusive um humano, pega a uva, as neuronas do mono que observa a ação também descarregam. Em suma, as neuronas refletem tanto as atividades do “eu” como as do “outro” dirigidas ao mesmo objetivo. O mais curioso deste fenômeno é que também nos primatas não humanos existe um mecanismo que consiste em refletir, apreciar ou sentir os objetivos que perseguem os demais, incluídos os membros de outras espécies. Rizzolatti e seus colaboradores afirmam que, segundo os estudos de TMS, o sistema de espelho humano não somente existe, senão que se diferencia do sistema do mono em um ponto fundamental: reconhece não somente os movimentos sem sentido, como os gestos vagos, senão também os movimentos que tem uma finalidade. Os trabalhos de Ramachandran sobre pacientes com lesão cerebral indicam outra função crucial que possivelmente desempenham as neuronas espelho nos seres humanos: de que o cérebro está construído para sentir não somente as próprias experiências, senão também as dos demais. O descobrimento deu lugar a numerosas teorias e novos achados sobre o papel da mímica e da imitação no intento de compreender os sentimentos dos demais. Realmente simulamos seus estados mentais ao ativar nossos próprios sistemas cerebrais emocionais (por exemplo, a amígdala, a parte do cérebro associada com a emoção, o aprendizado emocional e a avaliação emocional) do mesmo modo em que supomos que estão ativados os seus. Através destes sentimentos que experimentamos, compreendemos os sentimentos dos demais; lhes lemos a mente e a linguagem corporal.  “Lemos a mente” por meio dos instrumentos que nos deu a evolução. Temos uma sofisticada capacidade de ler as expressões faciais de outra pessoa e inferir seu estado mental. Podemos estimular mentalmente o estado emocional dessa pessoa e assim ter a sensação de que sabemos como se sente. De fato, para que funcione nosso sistema social  devemos  ler a mente dos demais: a capacidade de intuir os estados mentais de outras pessoas é fundamental para as interações sociais. E o cérebro dispõe de muitos mecanismos para isso (Gazzaniga; Goldberg).

[8] Longe de ser uma tábula rasa difusa, a arquitetura cognitiva humana, altamente diferenciada e especializada, é um mosaico de vestígios cognitivos dos estágios antigos da evolução humana, previamente adquiridos por nossos ancestrais hominídeos: uma estrutura  homogênea e funcionalmente integrada, a par de regimentada em módulos ou domínios específicos. Daí que todos os  membros de nossa espécie possuímos umas capacidades que, em muitos aspectos, não respondem às necessidades cognitivas  atuais . O comportamento que dirigem pode tornar-se marcado e militar contra os melhores interesses do indivíduo e da sociedade : são as chamadas  funções impróprias . Com efeito,  uma vez dedicada a devida atenção a este fato, pode-se observar que  ,  em especial nas sociedades complexas, algumas das  funções para as quais estamos desenhados já  não contribuem à saúde nem ao bem estar . Por exemplo, nosso corpo parece estar fisiologicamente adaptado à dieta dos caçadores-recoletores do Pleistoceno: animais selvagens, frutos secos, frutas , verduras frescas, gordura e açúcar. A circunstância de que nossa dieta atual ( bem como  nossas sedentárias e cotidianas atividades diárias ) seja distinta no que diz respeito ao consumo de produtos lácteos, de cereais, de carne com gordura, de açúcares, óleo e álcool, tem profundas conseqüências para nossa saúde: os ataques cardíacos, os infartos, o câncer e a diabetes têm que ver com este tipo de nutrição.

 

[9]  Por exemplo, estudando o fenômeno da cooperação, Ernst Fehr e Simon Gachter  inventaram um jogo que tinha as piores condições para que se desse a cooperação entre seus jogadores. No conjunto dos resultados obtidos por Fehr e Gachter, o mais interessante de todos parece ser o fato destes autores haverem demonstrado que todo mundo quer aproveitar a oportunidade de castigar, de inflingir-se um custo para produzir um custo ao que fez trapaça no jogo, ainda dando por sentado que o castigo, em si mesmo, não traz nenhum benefício direto para quem castiga. Dito de outro modo, embora  não se obtenha nenhum benefício lógico pelo fato de castigar neste jogo, ainda assim a gente opta por castigar com avidez. Por que? Simplesmente por um desejo emocional de vingança (na mesma medida, e indiretamente, emerge uma atmosfera de cooperação estável fruto do desejo voraz e emocional de vingança). Os autores demonstram que quanto pior seja o trapaceiro mais pagarão os outros jogadores para castigar-lhe, isto é, as pessoas pagarão por ter a oportunidade de castigar mas não por obter qualquer tipo de benefício. Como diz  Sapolsky : “se eu fosse habitante do planeta Marte e estivesse investigando o comportamento social dos terrestres, estas condutas me pareceriam um sem sentido irracional. Mas como primata social, tem um sentido perfeitamente intuitivo. Certo benefício social se produz como resultado incipiente , matemático, de um traço social não especialmente atrativo”. Supomos que temos que conformarmos com as coisas tal como são: somos  essencialmente retributivistas; preferimos “pagar com a mesmo moeda” do que resguardar-nos sob o manto da indiferença tão cômoda e agradável. Por outro lado, Robin Dunbar chegou a conclusões semelhantes: descobriu uma correlação direta nos primatas sociais entre o tamanho do neocórtex (a parte do cérebro que pensa) e o tamanho dos grupos, típico daquela espécie. Dunbar deduziu que o poder intelectual evoluiu em função das exigências  da vida social : a sofisticação cognitiva de nossos ancestrais primatas interagiu com o tamanho crescente dos grupos  e produziu uma forte  pressão seletiva que acelerou o crescimento do cérebro e a conseqüente sofisticação da mente humana. Em resumo, teríamos aqui a resposta de que as vantagens dos cérebros residem nas atividades sociais (na complexidade das relações sociais) e que quanto maior for o grupo social, maiores serão os benefícios conferidos pela evolução do cérebro e mais fortes serão as pressões seletivas para essa evolução. Dito de outro modo, é a sociabilidade que impulsiona a evolução da inteligêngia e, conseqüentemente, do tamanho do cérebro ou , nas palavras de Humphrey : a função do intelecto  é resolver problemas sociais.(Foley). Seja como for, tudo leva a crer que um verdadeiro sentido moral não parece haver existido até que a evolução do córtex pré frontal permitiu a explosão cultural do Homo sapiens sapiens há mais de 30.000 anos, no Paleolítico superior.

[10] E foi a predição do biólogo evolutivo Robert Trivers de que os seres humanos, os altruístas mais chamativos do reino animal, devem ter desenvolvido um algoritmo detector de trapaceiros hipertrofiado, que levou Cosmides e colaboradores a buscar (e descobrir) este mecanismo mental, partindo da análise evolutiva do altruísmo (Pinker). Sobre as investigações empíricas que apóiam a existência de um módulo dedicado ao raciocínio social e à detecção de mentirosos/trapaceiros, ver a famosa adaptação de Leda Cosmides para o Wason Selection Task (WST), uma experiência psicológica que se propunha a demonstrar que os seres humanos são extraordinariamente ruins na compreensão de princípios simples de raciocínio dedutivo. Cosmides substituiu a estrutura bastante abstrata do WST por uma narrativa com uma forma lógica idêntica envolvendo alguém que não cumpria uma regra social, e descobriu que os indivíduos não tinham dificuldade em fazer as suposições dedutivas corretas, aparentemente porque, quando realizada dessa maneira, a experiência ativava um módulo cognitivo voltado especialmente  ao raciocínio social. (Cosmides). Para uma crítica dessa interpretação de seus resultados, ver Atran. Quanto às provas neurocientíficas , cfr. Stone et alii.

[11] E sem dúvida o faz por razões bastante parecidas às que levaram aos monos capuchinos (macaco prego), no experimento de Brosnan e de Waal , a rechaçar o intercâmbio de fichas por comida em condições de trato piores que as oferecidas a outros monos. Explicar como se  produziu a aparição filogenética dos traços de inteligência que atuam, mediante intervenção dos processos emotivos, em jogos como o do ultimatum é algo impossível com as técnicas de estudo atuais. Das condições em que morreu a espécie de Shanidar I podemos deduzir, como fez Eric Trinkaus , que os neandertais cuidavam a seus incapacitados. Deviam dispor de alguma classe de moral sense. Mas saber como aceitavam repartir-se os bens quando tiveram que fazê-lo é algo que está fora de nosso alcance. Na realidade nem sequer podemos estabelecer como fato provado que se os Cebus apella, os monos capuchinos, atuam seguindo critérios de justiça, esse traço se fixou nos antecessores comuns aos capuchinos e aos humanos para constituir uma sinapomorfia no resto das linhagens que se derivam do ancestral comum. Para considerá-lo como um traço compartido, a possessão de um criterio de justiça desse mesmo estilo deveria estar presente nas demais linhagens intermédias. Sem embargo estamos muito longe de poder afirmar que primatas como os babuínos, os monos verdes, os gibões, os orangutangos, os gorilas e os chimpanzés (para por somente uns poucos exemplos) compartem, com capuchinos e humanos, tal sinapomorfia.

[12]Segundo esta hipótese, nossas deliberações sobre a eleição e a planificação do futuro dependem de maneira crucial de nossos sentimentos sobre os distintos cenários aos que nos enfrentamos. Quando nos encontramos perante uma situação social que requer uma escolha, o nosso cérebro ativa representações respeitantes (1) às premissas da situação, (2) às opções de resposta possíveis, (3) às várias consequências visadas. Depois de um breve intervalo, todas essas representações estão disponíveis em simultâneo para um exame consciente. A decisão relativa à linha de conduta a adotar pode implicar uma deliberação intencional ( e ser acessível ao pensamento consciente) de conjunto sobre esta paisagem de representação ou pode ser tomada de forma automática e subreptícia. Em ambos os casos, Damásio coloca a hipótese de que nos indivíduos normais o processo de tomada de decisão é iniciado e assistido pelo aparecimento de um estado somático que indica as consequências futuras da opção de resposta com a ajuda de um sinal somático negativo o positivo. Assim, a tomada de decisão competente no domínio social não depende somente das convenções sociais, da ética e do direito, nem da percepção e da inteligência necessárias para manipular tais saberes em uma situação da vida real.  Um componente somático intervém desde cedo no processo desempenhando um papel de assistência no processo de tomada de decisão, concentrando nele a atenção e selecionando as consequências futuras negativas ou positivas significativas (assim como as opções às quais elas estão ligadas). Pela sua própria natureza, o indicador somático torna mais eficaz a análise ulterior dos custos e dos benefícios. Depois, a finalidade fundamental da tomada de decisão no quadro social permanece a mesma que a da tomada de decisão em geral: trata-se da sobrevivência do organismo. A base da sobrevivência do organismo é assegurada por um vasto leque de mecanismos reguladores nas células e nos tecidos, e por reflexos, pulsões e instintos geneticamente programados, na medida em que é o conjunto do organismo que está envolvido. Por outro lado, em um meio socialmente complexo há estratégias adquiridas para a sobrevivência, as quais incluem as convenções sociais e a ética. Sem embargo, Damásio sustenta que tais estratégias adquiridas encontram um suporte neurofisiológico em sistemas neuronais conectados com os sistemas de base que executam os comportamentos instintivos, de maneira que as estratégias adquiridas podem continuar a operar pelo mesmo meio: sofrimento e prazer, punição e recompensa. O cérebro mantém a sobrevivência do soma como sua finalidade global, e o soma, com a ajuda de sinais produzidos pelos seus próprios estados, regula a operação de socorro realizada pelo cérebro. Para um tratamento teórico e pormenorizado destas idéias, Damasio e Adholps et alii.

[13]  E não é apenas o fato de que “todos nós precisarmos” do outro; trabalhos recentes mostram que precisamos interagir com os outros; precisamos dar e receber; precisamos pertencer ( Baumeister e Leary; Brown et. al.; Habermas). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. John Donne também tinha razão: precisamos dos outros para nos completar. Somos uma espécie ultra-social, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros, ainda que o apego e os relacionamentos  possam  provocar-nos dor. Como disse um personagem de Sartre: “O inferno são os outros”. Mas o paraíso também. (Haidt; Atahualpa Fernandez). 

[14] Trata-se de uma postura que tende a conceber a dignidade como um epifenômeno da própria natureza humana, a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva ( relacional, co-existencial )  da dignidade, fundada na natureza humana, é de suma trancendência para calibrar o sentido e  o alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro. De fato, nunca é demasiado insistir que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade. De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provoca secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. Resulta inclusive  muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele ( Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade). O fundamento  do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí  que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal. Dito de outro modo, a idéia de dignidade humana adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Somente por esta via será possível compreender o princípio da dignidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como um elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da dignidade humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual modelo constitucional. Ademais, uma idéia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito alicerçado e sustentado, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar a constituição, coesão e  manutenção dos vínculos sociais relacionais para os quais estamos desenhados a estabelecer e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas e/ou metafísicas senão por nós mesmos ao  conceber-nos baixo uma moral de respeito recíproco e universal. Não há, pois, direito que não seja outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo – que implica ter em conta as necessidades, desejos e direitos dos demais – destina-se a prover as bases mínimas de uma vida boa e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, precisamente, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar sob a assunção implícita de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

[15] Por isso, para Maturana , superando o naturalismo ingênuo, o “dever ser” é um momento fundado sobre a estrutura biológico-neuronal do “ser” humano vivo.

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; , Atahualpa Fernandez Bisneto. A perspectiva do “outro”: indivíduo, liberdade e dignidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-perspectiva-do-outro-individuo-liberdade-e-dignidade/ Acesso em: 19 abr. 2024