Filosofia do Direito

O princípio da diferença – Parte I

O princípio da diferença – Parte I

 

  

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

O filósofo John Rawls (“Justiça e Democracia”) para justificar sua teoria da justiça, lastreada na equidade e liberdade, faz menção ao “princípio da diferença” como inerente à própria natureza humana. Segundo seu pensamento, todos os países que buscam perfilar uma sociedade regida pelo maior nível de satisfação terão que aceitar que, em condições diversas, alguns se beneficiem mais do que outros, na distribuição dos bens assegurados pela ordem jurídica daquele grupo.

 

Para quem defende a equidade como base de uma teoria da justiça, alimentada pela liberdade à luz de uma estrutura básica, que permite, sob o véu da ignorância de grande parte dos parceiros, consolidar uma ordem pragmática, o mais possível próxima de uma ordem social justa, à evidência, o princípio da diferença é o reconhecimento de que nem mesmo a ordem jurídica pode equiparar as desigualdades. Os homens são diferentes, em suas aptidões, inteligência, qualidades naturais, cabendo, pois, ao Direito reduzir o nível dessa desigualdade, oferecendo oportunidades a todos, sem prejudicar as potencialidades próprias, inerentes a cada indivíduo.

 

Hospeda, Rawls, o pensamento socrático, manifestado no diálogo Gorgias, ao rebater Cálicles.  Sustentava, Cálicles, que a função da lei é fortalecer os fracos para conviver com os fortes, com o que altera a natureza das coisas. Segundo essa ótica, a lei deve dar ao forte o amplo e ilimitado direito à sua fortaleza e ao fraco, o ilimitado direito à sua fraqueza, sendo, de rigor, rigorosamente desnecessária. À evidência, Sócrates rebatia.

 

Todas essas considerações eu as faço à luz da proposta – por enquanto, apenas idéias manifestadas pelo Governo sobre uma reforma tributária – que pressupõe um aumento da carga tributária mascarado de “simplificação do sistema”, tornando ainda mais distante o ideal do contribuinte de um regime menos oneroso. Na elaboração de sua “reforma”,  o governo trabalha com uma carga mais alta para suportar o engrossamento da máquina estatal, cuja “eficácia” só será obtida, segundo o presidente, se houver contratação de mais servidores, com os benefícios e as benesses inerentes a tal categoria de privilegiados cidadãos.

 

O princípio da diferença é inerente ao Estado Brasileiro, em que os cidadãos enquistados no poder, além da garantia da estabilidade funcional, têm uma série infinita de benesses e privilégios que os cidadãos de 2a. categoria, ou seja, o povo, não tem. A diferença é gritante e, certamente, encontram, os áulicos governantes, um certo embasamento filosófico no pensamento rawlsliano de que a “teoria da justiça” pressupõe uma distribuição diversa de satisfação dos bens disponíveis na sua formatação, embora objetivando  a eqüidade e alicerçada na liberdade de escolher.

 

Para sustentar tal máquina, o governo federal pretende unificar IPI-Cofins-Pis-CIDEs, com a partilha desse tributo unificado alargada para Estados e Municípios e ampliação da base de contribuintes, o que certamente implicará numa alíquota ou alíquotas maiores, não só para incorporar a somatória das arrecadações atuais, mas também propiciar uma “calibragem de conforto”, tática já adotada quando da introdução da não-cumulatividade no PIS e COFINS, que implicou, à época, em 50% a mais de arrecadação em relação ao sistema anterior.

 

A justificação é singela. Todo sistema novo pode trazer perda de arrecadação na sua adaptação, razão pela qual é preferível calibrar para cima as alíquotas e não ficar na mera somatória das alíquotas existentes.

 

Como a base será distendida e o gasto da mão-de-obra também, não pode o governo federal, pelo alargamento da máquina administrativa pátria para 2008 e anos seguintes, prescindir dos 60% de bolo tributário que já tem. A reforma, em si, implicará, pois, aumento da imposição federal, principalmente porque nela estará incluída também a compensação que será devida aos municípios, que perderão o ISS e terão um tributo de arrecadação muito mais complexa, que será o IVV.

 

Por outro lado, os Estados terão o ISS incorporado ao ICMS, no IVA Estadual, e, nas operações interestaduais, adotarão o regime de destino. Com isso, os Estados que se revestem da condição de  “importadores líquidos” ganharão; já os Estados “exportadores líquidos” perderão, devendo compensar a perda com o aumento da imposição que hoje pesa sobre o contribuinte.

 

Em outras palavras, haverá um novo tributo o IVV, o ISS será incorporado ao IVA estadual e a União aplicará uma alíquota mais elevada, como já o fez na Cofins e PIS, que lhe propicie uma calibragem de conforto. Já existe, portanto, sinalização de um razoável aumento da carga tributária, a título de simplificá-la.

 

E, pelo princípio da diferença, tal aumento é justificado, visto que para gerir a esclerosada máquina administrativa federal, defende, S.Exa., o presidente da República, que a cortar desperdícios, prefere torná-la maior, contratando mais funcionários, concursados ou não, a serem pagos por nós, os contribuintes.

 

Como, segundo publicação da Folha, dos 100% dos servidores não concursados, 47% são sindicalistas e 19% filiados ao PT, não é difícil verificar que o aumento de carga tributária embutida no projeto de reforma constitucional objetiva, a meu ver, muito mais aparelhar o Estado com uma máquina burocrática ainda maior do que dar eficiência ao sistema. Creio, pois, que a única reforma primeira e necessária para “desamarrar” o país é uma reforma burocrática, com o enxugamento da máquina administrativa, privilegiando-se, apenas, as carreiras de Estado necessárias a execução da formação representativa do Estado. Aí sim, o princípio da diferença existiria, mas numa dimensão tolerável para o país.

 

 

 

* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O princípio da diferença – Parte I. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2007. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/o-principio-da-diferenca-parte-i/ Acesso em: 28 mar. 2024