Filosofia do Direito

A herança de Darwin e o problema da justificação filosófico-jurídica da dignidade humana (PARTE I)

 

 

“…soñar con tu libertad me hizo soñar con la mía.

Y tuve esperanza por ti y por mí. Seguí adelante, tumbando muros […] peleando con los míos y contra los míos para recuperar tu dignidad robada,

mi dignidad al fin”.

 

M. P. MENDOZA

 

 

 

Por “dignidade” se entende, no contexto filosófico-jurídico, uma determinada condição do ser humano que lhe distingue de qualquer outro animal e fundamenta certos direitos indiscutíveis ao estilo de ter que ser considerado, à maneira kantiana, como um fim em si mesmo e não como meio para outros propósitos. Este é o ponto de partida que nos lega Kant em sua Metafísica dos costumes (Kant, 1785) ao sustentar que o humano não tem preço senão dignidade, valor intrínseco.

 

Um projeto assim, referido a um “ser humano” genérico, sem distinção de sexo, idade, classe social, etnia, saber, nacionalidade ou ofício, parece levar de maneira necessária à condição comum de qualquer pessoa, à natureza biológica humana derivada dos traços da espécie. Mas o processo de construção do conceito, antes e depois de Kant, conduziu em realidade à meta oposta: a de negar qualquer viabilidade às características biológicas do ser humano sempre que se trate de levar a cabo a justificação filosófico-jurídica da dignidade.

 

O problema é que a tão popular dignidade filosófico-jurídica, sem referência alguma às atuais teorias e evidências científicas acerca da natureza humana, não significa nada. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitivo, equivale a não dizer nada. Como recorda Patricia Churchland (2008), a dignidade humana “no es un concepto claro, como pudiera ser el de “electrón”, o el de “hemoglobina” (siempre con respecto a las mejores teorías físicas y biomédicas), aunque tampoco radicalmente convencional, a la manera como el significado de “metro” es relativo al tamaño del trozo de platino conservado en una oficina de París. Con la “dignidad”, ocurre que ninguna cultura hegemónica, revelación mística, ideología universal, o análisis conceptual es capaz de sentar un veredicto definitivo. Sólo podemos aspirar a razonar juntos (elevada y difícil aspiración), intentando calibrar nuestras opiniones morales en función de la experiencia histórica compleja y de las mejores teorías y evidencias científicas a disposición”.

 

Contudo, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, continuam a provocar secreção de adrenalina em determinados filósofos e juristas propensos a uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo de “regras e princípios”, um sociologismo, um jusnaturalismo com sua peculiar ontologia substancialista e/ou pelo modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais. Enquanto alguns ( os “pós-modernos”) fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas, outros ( os “cientistas”, os “puristas” e os “filósofos dos direitos humanos”) fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério e carentes da menor autoconsciência com relação a realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria com traços de seriedade e coerência  acerca da dignidade humana. Enfim, deificando o mundo da moral (como sistema de signos e representações arbitrários que existem independentemente da condição humana) e exagerando sua consistência ontológica à margem de uma natureza humana como objeto de investigação empírica.

 

Ademais, os bons argumentos baseados exclusivamente na mera contemplação teórica indicam de maneira muito clara os riscos que se corre quando se utilizam critérios de abstração e/ou universalização da dignidade que não procedam de uma consideração contrastada da natureza biológica humana[1]. E a História nos mostra o fato desgraçado de que os intentos morais mais fortes de melhorar a sociedade humana e executados em nome da preservação de uma dignidade humana abstrata – todo um catálogo de propostas que já levaram a situações monstruosas – conduziram em ocasiões à perversa incapacidade de indignar-se ante a injustiça e a comover-se ante o sofrimento desnecessário.

 

Dito de outro modo, todos os discursos e teorias filosófico-jurídicas que se negam a admitir o fato de que as novas teorias neurobiológico-psicológicas constituem um profundo aumento na compreensão do ser humano e contribuem a aumentar em vez de diminuir nossa humanidade, cometem o grave equívoco de supor que ciência e humanismo estão divorciados (Churchland, 2002). Hoje, teorizar sobre a dignidade humana desconsiderando a necessidade de se levar em consideração as aportações provenientes das ciências adjacentes desde uma perspectiva interdisciplinar, é uma estafa. O verdadeiro conhecimento do humano já não pode mais fundar-se sobre ilusões, ou representações incorretas do real, senão sobre evidências científicas.

 

Sair da magia ou do mistério em direção a maior claridade das ciências fará com que nos adentremos na via que leva a entender com maior precisão em que consiste realmente a verdadeira dignidade do ser humano.

 

 

O legado intelectual de Darwin

 

Charles Darwin integrou ao homem no mundo animal e transformou para sempre o modo de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Uma admirável, arrebatadora e “perigosa idéia”; “quiçá uma das idéias mais poderosas de toda a história da humanidade” (R. Dawkins, 2008).

 

A herança que recebemos de Darwin pode ser mensurada, facilmente, considerando-se a influência atual da teoria da evolução. Que o homem é um animal, uma parte indistinguível da natureza orgânica, edificado de acordo com os mesmos princípios genéticos que qualquer outro ser vivo, não é somente uma evidência científica indiscutível, senão também um lugar comum na literatura científico-natural, social e humanística. Mas Darwin não nos ensinou somente o caminho da compreensão da evolução dos seres vivos. Sua teoria da evolução através da seleção natural serve também para compreender por que nos comportamos de forma moral e o que é a ética. De fato, é precisamente o programa naturalista iniciado por Charles Darwin na segunda metade do séc. XIX com sua teoria da evolução que pode proporcionar-nos argumentos a favor da existência de universais éticos, desses que John Rawls considerava princípios essenciais da justiça.

 

Não obstante, a introdução do saber acerca de nossa natureza biológica no discurso das humanidades e as ciências sociais resultou (e ainda resulta) complexa e incômoda – para não dizer impossível -, na medida em que sua legitimidade se concebe como limitada aos territórios alheios à influência da cultura. Natureza e cultura têm convivido como reinos separados durante séculos, ao amparo dos dualismos legitimadores de suas origens míticas. Daí que ainda surpreenda a muitos o argumento de que resulta inaceitável toda e qualquer ciência social normativa que não tenha em conta o substrato animal da sociedade humana, isto é, de que os homens vivem em sociedade não porque são homens (ou anjos), senão porque são animais.

 

Seja como for, o certo é que desde uma perspectiva mais científica que humanista, filosofamos depois de Darwin. Sabemos que descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. Sabemos que a matéria prima da cultura são representações mentais, pessoais e compartidas e que toda representação é, em última instancia, obra de nosso cérebro (um irrefutável produto da evolução por seleção natural, o resultado vivo de um largo processo filogenético e capaz de viver em um universo não percebido); quer dizer, que nada ocorre, nem nada existe no mundo humano que não tenha sido percebido, filtrado, elaborado e construído pelo cérebro (o que inclui como pensamos, interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-jurídicas). Em realidade, começa a acumular-se evidências, desenvolvidas em campos disciplinares muito variados, sugerindo a existência de um “instinto moral”, uma faculdade moral equipada com propriedades universais da mente humana que restringe o âmbito da variação cultural, que guia inconscientemente nossos juízos de valor e que permite desenvolver uma reduzida gama de sistemas morais concretos.

 

Por primeira vez os avanços das investigações procedentes das ciências da vida e da mente oferecem linhas de convergência capazes de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir da mera especulação metafísica. Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão natural do ser humano, do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

 

 

Enunciados descritivos e enunciados valorativos

 

É possível deduzir um enunciado prescritivo de um enunciado descritivo, eventualmente através de um enunciado avaliativo, sem cometer o “paralogismo naturalista”? Como é sabido, a falácia naturalista[2] — atribuída em sua formulação inicial a David Hume — tacha de erro lógico o fundamentar em enunciados de fato — qualquer descrição da natureza biológica humana — as proposições morais — quer dizer, tanto o sentido profundo filosófico-jurídico da moral como seus conteúdos práticos (Muguerza, 1977). Como consequência dessa negativa a ter em conta enunciados descritivos de caráter biológico, a operação de análise dos valores morais que termina impondo conceitos e princípios universais se realiza em términos de sociedade, por contraposição a natureza.

 

Os resultados de um projeto assim são demasiados conhecidos. Abundam as propostas que, desde a ciência jurídica ou da filosofia, oferecem conceitos, critérios e princípios destinados a estabelecer uma definição acerca do que é a moral e o direito e até onde conduz. Na maior parte delas, a idéia que subjaz às teorias disponíveis apresenta o ser humano como possuidor de uma dignidade a que caberia chamar transcendental, alheia por completo a sua história evolutiva. O ser humano se considera como uma pessoa racional e moral que, pelo que se refere ao menos a essa dupla condição, resulta autônoma e independente das leis da natureza. E mais: tal condição de autonomia é exclusiva. De maneira implícita — e com freqüência explicitamente — se postula a existência de uma grande diferença qualitativa entre os humanos e os demais seres viventes, um plus humano derivado da condição moral de nossa espécie. Em realidade se trata de distintas caras da mesma moeda: são as mesmas razões as que sustentam que se é autônomo e livre e que se tem uma superioridade sobre qualquer outro ser.

 

Pese a que essa idéia forma parte, como se diz, da maior parte das propostas, quando os operadores do direito abordam o estudo da dignidade humana costumam sustentar a presença de diversos tipos de explicações — como as sociológicas, antropológicas, normativas ou axiológicas —, ajustadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas. Quer dizer, salvo que se apele a valores últimos de caráter quase religioso, não se considera sequer a possibilidade de que exista uma só classe de explicação para justificar o valor da dignidade em sua projeção ético-jurídica.

 

Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico, é possível imaginar uma fundamentação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade, unindo os fatos aparentemente irreconciliáveis do social e do natural. Basta, para isto, entender que:

 

1. parte de nossa natureza — o que caberia chamar em termos técnicos “traços primitivos”— apareceu graças à  evolução por seleção natural milhões de anos antes de que aparecera nossa espécie;

2. outras características exclusivas dos humanos — os “traços derivados”— se acrescentaram ou aperfeiçoaram ao longo de nossa história evolutiva separada, dentro da linhagem em que nos incluímos e a nossos antecessores não compartidos com nenhum símio;

3. a hipótese mais razoável sustenta que as condições que correspondem a nossa psicologia moral, aquelas que sustentam a dignidade humana, devem dar-se por moldadas como traços ou bem primitivos ou derivados. Em caso de negar-se tal evidência, é preciso oferecer explicações plausíveis, afastadas da invocação de valores supremos, acerca de como poderiam haver aparecido;

4. só a comparação com as atitudes e valorações morais de outros seres podem dar pistas do caráter primitivo ou derivado da condição moral e da dignidade humana.

 

O propósito deste artigo é o de indicar os principais traços de um programa assim de naturalização da dignidade. Isto não significa o intento de substituir a condição social humana por sua condição biológica. Deixando de lado os aspectos lógico-formais da falácia naturalista — já devidamente resolvidos  por Hare (1979) — o maior equívoco de uma concepção de dignidade cidadã apartada de nossa condição biológica como espécie é o do uso de uma teoria dualista cartesiana de res cogitans frente a res extensa. Por razões que vamos a abordar de imediato, carece de sentido propor a fundamentação moral e jurídica em termos do “natural” frente ao “ social”, nem do “inato” frente ao “adquirido”.

 

 

O problema da natureza humana

 

Ninguém ignora que o homem é um ser cuja natureza é essencialmente social: um primata que nasceu para viver em comunidade. Como los demás antropóides africanos, a natureza do ser humano é essencialmente social: nossa condição  é a de un primata que nasceu para viver em comunidade. A expressão latina unus homo, nullus homo  expressa bem essa natureza que nos caracteriza como espécie social. A interpretação mais comum desse fato em termos de evolução por seleção natural é a de entender que, para nossos antepassados, representou uma vantagem adaptativa a constituição de uma vida socialmente organizada. O homem isolado, sem uma comunidade social na qual possa plasmar sua existência – para não falar de sua dignidade – , não é homem: é um nada. Fomos desenhados pela seleção natural para desenvolver-nos,  aprender a viver e a prosperar em um entorno social, no marco das restrições de um mundo natural. O fenômeno da competência liguística põe muito bem de manifesto essa integração de natureza e sociedade.

 

No modelo apresentado por Chomsky (1966, 1968, 1980, 1985, etc.), a competência lingüística é um traço inato que deve atualizar-se mediante a pertência a uma família, a uma tribo ou a uma sociedade. A capacidade humana para desenvolver uma linguagem não se consegue sem os sinais fonético-semânticos procedentes de um grupo social.

 

As consequências dessa soma de competência e atuação — ou, melhor dito, de sua integração complementária— são importantes para entender a necessidade de afastar ou recusar o dualismo. Por razões  que têm que ver com a aparição, há aproximadamente 7 milhões de anos, do único traço derivado humano compartido por todo o conjunto dos hominídeos, a bipedia, as cadeiras dos membros de nossa linhagem se transformam. O incremento do volume cranial no gênero Homo que se produz a meio caminho na evolução da família dos hominídeos, a partir de 2,5 milhões de anos atrás, converte em um problema o nascimento de seres com cérebros cada vez maiores cujas mães têm um canal pélvico estreito.

 

A solução que a seleção natural impõe é a de nascer com o cérebro muito pouco desenvolvido. Assim que, durante sua infância, cada novo ser humano aumenta e completa seu cérebro mediante um processo que necessita dos sinais procedentes do grupo para poder realizar-se. E não é somente a linguagem o que faltaria se uma criança crescesse afastada de qualquer grupo. É o próprio cérebro o que não poderia amadurecer. E o que dizer de outros elementos pertencentes a nossa constituição como indivíduos?

 

A hipótese mais razoável estabelece que a natureza humana e, consequentemente, o sentido do eu, é em grande medida o resultado de uma mescla similar a do caso da linguagem: uma amálgama em que genes e neurônios por uma parte, e experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida sociocultural, por outra, confluem para dar o resultado final de um indivíduo inseparável da sociedade. Quando se fala de dignidade e de seus efeitos práticos, é, pois, viável – e inclusive exigível —  o desenho de novos critérios para que os setores do conhecimento próprios do direito (e da ética) sejam revisados à luz dos estudos provenientes da ciência cognitiva, da neurociência, da genética do comportamento, da antropologia, da primatologia e da psicologia entre outras disciplinas que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie.

 

Esse conjunto de ciências (ponte), baseadas todas elas na dupla perspectiva indivíduo-sociedade, nos ensina que o comportamento humano se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa cognitivo de raiz filogenética com o entorno sociocultural em que transcorre nossa ontogênese. Também nos indica que as representações culturais devem ser vistas  como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata. A estrutura e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se dentro da comunidade como resposta a condições sociais e ecológicas distintas. Em síntese, é a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais e morais possíveis.

 

A um nível mais profundo, a existência desses mecanismos também  implica que existe em nossa espécie uma considerável carga de conteúdo mental universal. Como sustentam as primeiras intuições de Darwin acerca da natureza humana (Darwin, 1871), nascemos com determinados instintos morais, em um marco em que a educação intervém para graduar os parâmetros e guiar-nos até a aquisição de sistemas morais e jurídicos particulares. Há algo, pois, no cérebro humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-jurídicos e que permite sustentar a existência de universais morais em um sentido forte do termo (Tugendhat, 1979; Hauser, 2008). Para certas coisas, portanto, há uma só moral universal.

 

Se é assim, também haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais apreciados — justiça, liberdade, autonomia, dignidade — a idéia de que somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana, podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida (Zeki, 1993). Não é possível compreender o sentido profundo da dignidade humana sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que a habilita e que a sustenta, um conjunto que gestiona e gera o sentido da identidade e personalidade, a percepção do outro e a intuição de nossa autonomia própria.

 

Mas, existe de fato uma natureza humana capaz de fazer tudo isso? E, de ser assim, em que consiste aos efeitos da maneira como cabe entender a dignidade? Não poderia ser que fosse indiferente, que qualquer programa jusnaturalista, inclusive de cariz religioso, se bastasse para estabelecer o princípio de igualdade e dignidade para todos os humanos?

 

A resposta é negativa. Qualquer concessão ideológica está ameaçada dos erros produzidos pelo desconhecimento. A história recente indica bem que a condição humana, e seus atributos ligados à possessão de valores, deve ser definida em termos antropológicos e não políticos nem religiosos. O processo de expansão do “círculo moral” (Singer, 1981,1999) passa por devolver aos humanos sua condição universal, mas não termina aí. Escravos primeiro, pobres sem terras mais tarde, mulheres por último ganharam carta de natureza humana. Onde termina o processo? Que dignidade tem as crianças, os enfermos, os indivíduos com problemas físicos e mentais? Qual é a dignidade de psicopatas e criminosos? Que dizer dos demais seres vivos? E dos que ainda não nasceram? As respostas menos arriscadas são as que podem chegar graças a esses enunciados descritivos procedentes das ciências que a falácia naturalista pretendeu desqualificar.

 

 

O risco do determinismo

 

Para a problema que nos interessa aqui, a tarefa mais urgente e importante seria a de poder indicar que universais éticos confluem na dignidade humana a partir da seleção natural.

 

Convém, antes de adentrar-se por este caminho, entender de que estamos falando, pois se corre o perigo de confundir as propostas naturalistas. Algo assim sucedeu quando a sociobiologia, desenvolvida por Edward Wilson, propôs afastar a ética da mão dos filósofos e situá-la na dos biólogos (Wilson, 1975). A obra posterior de Wilson está repleta de propostas filosóficas que se sustentam mal à luz dos conhecimentos científicos. Por exemplo, ao utilizar o comportamento altruísta dos insetos sociais como modelo para entender a moralidade humana, Wilson (1978) cometeu o erro de confundir o que é provável que não sejam senão uma homoplasia — um traço só em aparência similar, fixado por separado em duas linhagens distintas sem relação genética entre elas —, concebendo-a como uma plesiomorfia — um traço que se comparte porque o fixou um antepassado comum. Na medida em que o sistema altruísta de térmitas, formigas, vespas e abelhas está completamente determinado, cabe entender as barbaridades que se derivam de trasladar esse esquema à ética humana.

 

Qual é então, se há algum, o alcance da determinação genética que preside a moralidade humana?

 

A estas alturas é pertinente levar a cabo uma precisão na análise da conduta moral. A distinção entre motivo para atuar e critério aplicado a qualquer ação na hora de qualificá-la moralmente, é muito comum na literatura especializada anglo-saxônica (Cela Conde, 1985), mas é ignorada no âmbito filosófico-jurídico alheio a essa tradição. Cabe ignorá-la se qualquer âmago de fundamentação naturalista da moral se rechaça de antemão ao considerar-se determinista. Mas resulta tão necessário como óbvio indicar já que este suposto determinismo dista muito de ligar de maneira necessária a possessão de certas características próprias da espécie e toda conduta relacionada com o juízo moral. Nenhum sujeito tem por que ajustar-se, à hora de comportar-se, a suas crenças acerca do bem e do mal. É de todo possível crer, por exemplo, que um indivíduo está obrigado a prestar ajuda a uma pessoa assaltada por delinqüentes e, por medo às consequências, abster-se de fazê-lo.

 

De não ser assim, de atuar sempre em consonância com nossos critérios éticos, não existiria o remorso. Pois bem, os universais que se podem deduzir da natureza humana se referem tanto às motivações como à estrutura do juízo moral, à maneira como se propõe o juízo ético, e não a seu conteúdo (Cela Conde, 1985; Ayala, 1987). A condição de ser moral implica não em seguir certas regras, senão em utilizá-las como critério ou medida para julgar condutas. Darwin (1871) utilizou o conceito ilustrado de moral sense para descrever esse traço humano distintivo, e nos atribuiu em exclusiva. Se bem outros animais poderiam chegar, com a evolução de suas faculdades cognitivas, a alcançá-lo, nenhum dispõe dele. Somos sentimento moral por natureza e, graças a ele, valoramos, apreciamos e levamos a cabo condutas que correspondem à possessão de certos valores compartidos. Mas não o fazemos de maneira automática.

 

Até aqui, poucos filósofos e juristas dispostos a discutir os termos naturalistas poderiam encontrar algum argumento para descartar a teoria darwiniana, sobretudo no que se refere aos seguintes pontos: a) a moralidade é um repertório evolutivo de mecanismos cognitivos e emocionais com distintos componentes biológicos, entanto são modificados pela experiência adquirida ao longo da vida humana; b) a moralidade não é um domínio exclusivo do Homo sapiens – existem evidências significativas na literatura científica sobre diferentes espécies acerca de que os animais exibem comportamentos morais ou pré-morais básicos (padrões  de conduta paralelos aos elementos centrais da conduta moral humana); c) a moralidade é um “universal humano” (existe em todas as culturas do mundo), uma parte da natureza humana adquirida durante a evolução; d) as crianças pequenas e os bebês mostram alguns aspectos de conduta e cognição  moral (que precedem às experiências específicas de aprendizagem e ao desenvolvimento de uma visão do mundo).

 

Assim que carece de risco, em termos de possível falácia, dizer que nossa natureza nos leva a julgar, mas não indica as pautas do juízo. Afinal, que restaria à ética se não compartisse nossa espécie a tendência a julgar os comportamentos morais? Porém há mais. Cabe sustentar que o rastreio de universais éticos (e jurídicos) não termina em nossa natureza como agentes morais. De alguma maneira, existem também universais que se referem não às motivações nesta ocasião senão aos critérios.

 

Ademais, o que os neurocientistas  denominam de “plasticidade” – a habilidade para cambiar à luz da experiência – constitui a clave da natureza humana em todos os níveis, desde o cérebro e a mente até as sociedades e os valores morais. De fato, a grande vantagem evolutiva do ser humano radica  em sua capacidade para escapar às limitações (ao “determinismo”) da evolução. Somos livres, nesse sentido, não apesar da natureza, mas graças a ela[3].

 

 

O sentimento moral

 

A proposta de Darwin ao aplicar à evolução humana seus princípios da seleção natural inclui extensos comentários acerca do tipo de ser que esta teria talhado respeito aos instintos sociais e ao comportamento ético. As páginas do Descent of Man (Darwin, 1871) parecem-nos hoje um tanto influenciadas pela ideologia vitoriana como, por exemplo, quando fala da condição quase pré-humana dos índios que habitavam a Terra do Fogo. Convém recordar que Darwin não contou com uma teoria da herança adequada e que, mediante o mecanismo da pangênese, seguiu de perto os esquemas lamarckianos de herança dos caracteres adquiridos. De tal sorte, Darwin acreditava que um comportamento mais civilizado dos povos primitivos os converteria com o passo do tempo, por seleção natural, em seres humanos de uma natureza igual a dos britânicos. Como se vê, tão pouco Darwin se livrou de um inadequado diagnóstico antropológico à hora de considerar a dignidade humana. Mas a descrição implícita que faz dos instintos sociais é adequada para situar o conteúdo naturalista do comportamento moral.

 

Como dissemos antes, Darwin utiliza o conceito de moral sense, que tem uma longa história na filosofia anglo-saxônica. Shaftesbury, Hutcheson e Hume consideraram o moral sense como uma força inata ligada à simpatia que leva a cada pessoa a atuar em favor de outros. O comportamento moral seria, pois, uma espécie de soma algébrica de forças gravitacionais — de inequívoca referência a Newton — graças ao qual um sentimento moral centrípeto se combinaria com o instinto egoísta centrífugo para dar esse mundo de equilíbrios precários que é tanto a natureza como a sociedade humana.

 

Darwin poderia ser tido como o último autor dessa tradição intelectual que procede da Ilustração escocesa, mas, em sua obra, o moral sense adquire um caráter mais geral. No Descent of Man se diz que qualquer animal com bem marcados instintos sociais como podem ser os afetos paterno-filiais, “would inevitably acquire a moral sense or conscience, as soon as its intellectual powers had become as well, or nearly as well developed, as in man.(Darwin, 1871). Trata-se de uma questão hipotética: nenhum animal alcançou o nível das faculdades mentais humanas. Mas se o lograsse, então também adquiriria o mesmo nível de moral sense de que desfrutamos.

 

Assim que se pode descrever a idéia darwiniana acerca da condição moral humana da seguinte forma: afetos simpáticos, por uma parte, próprios de um animal de vida social, e umas faculdades intelectuais altas que permitem avaliar os riscos e as consequências de nossas ações. O conjunto do moral sense. E este permite alcançar o grau da conduta ética. É esse o fundamento naturalista da dignidade humana.

 

Graças ao moral sense, damos o caráter de atos heróicos a ações como a de salvar a vida de outra pessoa pondo em risco a nossa. Em Descent of Man se incluem referências a atos parecidos que levam a cabo outros primatas como os babuínos. Contudo, Darwin conclui que não são atos morais porque os monos não contam com a capacidade de entender a consequência de suas ações: se comportam assim por instinto, mediante uma determinação genética forte. Mas o ser humano observa, antecipa, medita e avalia. Levamos a cabo não só condutas morais senão juízos morais das condutas alheias. Trata-se de um conjunto no qual é difícil estabelecer a fronteira entre os afetos simpáticos e os cálculos valorativos, mas é provável que, em boa medida, a evolução de nosso cérebro se deva à necessidade de levar a cabo essas complicadíssimas operações que permitem entender a relação social, o papel de cada um e a conduta que cabe esperar de cada membro do grupo. Nicholas Humphrey (1976) sustenta que outros símios como os chimpanzés contam também com esse “pensamento maquiavélico”. Some-se a avaliação ética, e temos o moral sense.

 

O comportamento moral humano, que inclui, por certo, a atribuição de liberdade, igualdade e dignidade às pessoas, tem, portanto, como componente essencial — ainda que não único —, um complexo esquema de avaliação e antecipação das condutas alheias. Uma “teoria da mente” dos outros.

 

Como recorda Pinker (2002), todo  mundo tem uma teoria implícita sobre a natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o que significa que todos necessitamos entender que é o que move as pessoas a adotar determinadas condutas. Trata-se da perspectiva dos “sistemas intencionais” que propôs Dennett (1971), segundo a qual os humanos são  considerados como sujeitos intencionais de terceira ordem: contamos com uma teoria da mente do outro na qual se inclui o fato de que esse outro sujeito também tem uma teoria de minha própria mente, e sabe que eu a tenho respeito dele. Assim, as ações encaminhadas a alcançar meus desejos na vida social se ajustarão ao que minha teoria da mente do companheiro ou do adversário inclui acerca da mente alheia. É uma situação parecida a de um jogo de xadrez em que meu adversário me oferece um gambito, um sacrifício em principio absurdo que irá beneficiar-me. Por que o faz? Em que me medida me beneficia em realidade ou se trata de que eu creia que me beneficia quando irá a prejudicar-me? Ainda que exista a possibilidade de que me beneficie,  o outro intenta que eu suspeite que não é assim e recuse o gambito… A cadeia do “eu creio – que tu crês -que eu creio – que tu crês” pode estender-se indefinidamente. Os melhores jogadores de xadrez são os que, já seja por intuição ou por reflexão, podem levá-la mais longe.

 

A teoria da mente do outro é uma teoria tácita da natureza humana, que procede da experiência que temos acerca de nós mesmos[4]. Vejamos em que consiste no que se refere à avaliação das ações alheias.

 

Trata-se de um conjunto no qual intervém desejos, crenças e ações. Atribuímos aos demais um comportamento que obedece aos objetivos que mantêm — os desejos — e à visão do mundo de que dispõem — as crenças — para deduzir as ações que cabe prever que levarão a cabo. Como já mostrou Domènech (2002), no sistema qualquer dos três componentes — desejos, crenças e ações — pode ser deduzido em função dos outros dois. Se conhecemos (ou intuímos) os desejos de alguém e suas crenças, estamos em condições de predizer sua conduta. Mas se contemplamos sua conduta, e sabemos suas crenças, deduziremos quais são seus objetivos; assim em todos os casos. É certo que para que a equação funcione é preciso dar por garantida uma condição especial da natureza humana: em que medida estamos dispostos a alcançar o que são nossos desejos. A idéia central da teoria darwiniana da seleção natural estabelece que cada organismo maximiza seus interesses próprios — identificados neste caso com a obtenção da progênie. Pois bem, o comportamento altruísta parece escapar a essa regra. Quem atua em beneficio de outro emprega seus recursos para favorecer a adaptação alheia, não a própria. Como foi possível fixar-se por seleção natural um comportamento assim?

 

Nem Darwin nem os neodarwinistas puderam explicá-lo. A sociobiologia logrou fazê-lo através de modelos como os da seleção de grupo (Wynne-Edwards, 1962) e de parentesco (Hamilton, 1964). É duvidosa a aplicação destes modelos ao caso humano (Cela-Conde e Ayala, 2004), mas ao que nos referíamos é a maneira particular de como os membros de nossa espécie satisfazem seus desejos. Mediante uma maximização dos interesses pessoais?

 

É este o terreno em que aparece a conexão mais profunda entre natureza humana e comportamento moral, essa mesma que buscamos para oferecer uma fundamentação naturalista da dignidade. Por exemplo, se nos remontamos como fazíamos antes, à época grega, os humanos também se atribuíam a condição de seres racionais. Somos, pois, preferidores racionais, dispostos a maximizar nossos interesses de acordo com nossas crenças. Ou não é assim?

 

 

* Este artigo é a versão revisada de um trabalho dos autores publicado com o título “Naturaleza y Dignidad Humana”, in CASADO, Maria (COORD.) (2009). Sobre la Dignidad y los Principios. Análisis de la Declaración Universal de Bioética y Derechos Humanos de la UNESCO, Barcelona: Civitas –  Thomson Reuters, pp. 113-129.

 

** Atahualpa Fernandez, Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT.

 

*** Marly Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB

 

**** Manuella Maria Fernandez, Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Humanidades y Ciencias Sociales( Evolución y Cognición Humana)/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos /UIB.



[1] Um bom exemplo desses riscos pode ser o seguinte: a “filosofía de la Grecia clásica —la Etica a Nicomaco, por ejemplo—, atribuyó la dignidad no a cualquier ser humano sino sólo a una parte reducida de nuestros congéneres, a aquellos pocos  a los que cabía considerar como miembros de la polis. Es esclarecedor, a tal respecto, el capitulo 8º de la ética nicomáquea que Aristóteles dedica a la amistad. En sentido estricto, Aristóteles no estaría trasgrediendo la condición universal humana. Lo que se hace por medio de esa reducción es identificar “ser humano” y “miembro de la polis”, equiparando, por ejemplo, los esclavos a los no-humanos. Si los esclavos no se consideran humanos, tampoco estamos negándoles valor moral alguno; se encuentran en la misma situación en que quedaría cualquier simio u otro animal. De hecho, pues, el carácter universal se mantiene: el error es de tipo antropológico, al constatar lo que es y lo que no es un Homo sapiens, y no filosófico-jurídico. El mismo error, por cierto, que se cometió en los Estados Unidos cuando la Convención de Filadelfia discutió en 1787 si los esclavos debían ser considerados o no personas. El llamado “Compromiso de los 3/5” estableció que, a algunos efectos, un esclavo era tres quintas partes de una persona” (Fernandez et al., 2009).

 

[2] Por exemplo, conjecturar acerca do problema da falácia naturalista significa, em síntese, o seguinte: passar dos enunciados descritivos (“Pedro matou a sua mulher”) aos enunciados valorativos (“Pedro deve ir à prisão”). Nada mais longe da realidade. E duas são as circunstâncias a considerar: em primeiro lugar, como mostrou Richard Hare (1979), não existe falácia lógica porque a passagem dos enunciados descritivos aos valorativos se faz dando por suposto de maneira implícita um enunciado intermédio (“Quem mata deve ir à prisão”); em segundo lugar, que os fatos da natureza e a história fundamentam e impõe limites aos valores, mas não os determinam. É a mente humana a que constrói os valores e as normas. Depois, talvez seja útil recordar que, simétrica à falácia naturalista, a falácia moralista consiste em inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico. A falácia naturalista consiste em inferir “deve”  de  “é”; a falácia moralista consiste em inferir  “é”  de  “deve”. Como é obvio, ambas são falazes e insustentáveis logicamente. Pinker (2002) chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem ( e/ou insistem) na falácia moralista. Como argumenta Sam Harris (2007, 3) acerca da falácia naturalista: “A pesar de la reticencia de muchos científicos acerca del tema del bien y del mal, el estudio científico de la moralidad y de la felicidad humana está en marcha. Esta investigación está obligada a provocar el conflicto de la ciencia con la ortodoxia religiosa y la opinión popular, del mismo modo a cómo lo ha hecho nuestra creciente comprensión de la evolución, porque la división entre hechos y valores es ilusoria en al menos tres sentidos: (1) cualquier cosa que pueda conocerse sobre la maximización del bienestar de las criaturas conscientes, que es (…) la única cosa que podemos valorar razonablemente, en algún punto debe traducirse en hechos sobre el cerebro y su interacción con el mundo en general; (2) la idea misma de conocimiento “objetivo” (esto es, conocimiento adquirido a través del razonamiento y la observación honesta) posee valores en sí misma (…) (consistencia lógica, confianza en las evidencias, parsimonia, etcétera); (3) las creencias sobre los hechos y las creencias sobre los valores parecen surgir de procesos similares en el nivel del cerebro: parece que tenemos un sistema común para juzgar la verdad y la falsedad en ambos dominios”. Nas acertadas palavras de Patricia Churchland (2010), “las especulaciones de Hume son aplicables a la forma deductiva de razonamiento lógico… si, por ejemplo, la ciencia llegara a encontrar la forma de influir sobre la capacidad de sentir compasión,  o para que las personas pensaran más racionalmente, se difundiría de forma natural la aplicación de este conocimiento”.

 

 

[3] Como assinala Peter Bieri (2002): alguém poderia pensar que a vontade livre deveria ser uma vontade incondicionada, totalmente independente e não determinada por nada; que em todo momento deveria assemelhar-se a um motor não movido que inicia uma cadeia causal completamente nova. Enteirar-se de que existem mil coisas no cérebro das que depende minha vontade provoca então um sobressalto. Mas ninguém pode desejar uma vontade livre em tal sentido, posto que se trataria  de uma vontade sem proprietário , quer dizer, não seria a vontade de ninguém: não estaria conectada nem com o corpo (cérebro), nem com o caráter, nem com a experiência, nem com a história de uma vida; seria uma vontade totalmente contingente , porque não dependeria de nada em absoluto; totalmente injustificada, porque as razões são fatores de influência; uma vontade totalmente incorrigível, porque aprender é influência causal; e uma vontade totalmente incontrolável , porque o controle é um acontecer causal.

[4] A neurociência começa a desentranhar, ademais da intencionalidade (termo utilizado para referir-se à classe de estados mentais que experimentamos quando somos conscientes de ter algum tipo de crença, desejo ou intenção, isto é, com o fato de ser consciente dos conteúdos da própria mente), a responsabilidade, a culpabilidade e um longo rol de conceitos arrancados da psicologia e da filosofia, as áreas do cérebro que se ativam durante as relações sociais humanas e pouco a pouco se adentra em conhecer como se elabora a empatia, que descansa fundamentalmente sobre as emoções que, claramente, desempenham um papel básico e essencial em toda interação social. A relação social humana é um fato extraordinariamente complexo que implica na atividade de uma multitude de processos no cérebro. Entre eles se encontra a percepção das intenções dos outros, seus estados mentais e, por certo, a percepção do estado emocional dos outros e de sí mesmo. De fato, para participar em interações sociais que sejam positivas, um indivíduo deve reconhecer que os outros não somente tem suas próprias experiências e intenções senão que também um motivo último para essa interação social. A capacidade que uma pessoa tem para intuir ou representar em seu próprio cérebro ou em sua mente a perspectiva psicológica que tem a outra pessoa é o que  lhe permite predizer a conduta dos demais (Amodio et al., 2006). Efetivamente, a capacidade que tem os seres humanos de imaginar, compreender ou intuir o que os outros estão pensando e adiantar com isso quais são suas intenções e seus estados emocional e mental é, sem dúvida, fundamental para toda e qualquer interação social. É o que se conhece como teoria da mente – ou, como prefere Dennett (1971), um sistema ou postura intencional. Estas capacidades são as que permitem prejulgar (pré-compreender) como podem reacionar os demais em resposta a uma determinada ação nossa e poder predizer com isso as consequências de nossas ações. Em nossa experiência do mundo, ele está cheio não apenas de corpos humanos em movimento, mas de pensadores e esperançosos, vilões e bobos, quebrador de promessas e ameaçadores, aliados e inimigos (Dennett, 2006).

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly; FERNANDEZ, Manuella Maria. A herança de Darwin e o problema da justificação filosófico-jurídica da dignidade humana (PARTE I). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-heranca-de-darwin-e-o-problema-da-justificacao-filosofico-juridica-da-dignidade-humana-parte-i/ Acesso em: 28 mar. 2024