Filosofia do Direito

Moral, Linguagem e Estética: Paisagens do Cérebro Humano

 

                      

“Hay algo sumamente extraño en un primate sin pelo y neoténico que ha evolucionado hasta convertirse en una especie que puede mirar hacia su propio pasado y reflexionar sobre su origen. Más extraño aún es que el cerebro no sólo pueda descubrir cómo funcionan otros cerebros, sino hacerse preguntas sobre sí mismo. ¿Quién soy? ¿Cuál es en sentido de mi existencia?… ¿Por qué disfruto del arte, la música y la poesía? ¿Por qué me comporto de forma moral y utilizo el lenguaje para expresarme? ¿Es mi mente únicamente la actividad de las neuronas de mi cerebro? […] Es por medio de la peculiar cualidad recurrente de estas preguntas cuando el cerebro se esfuerza por comprender a sí mismo.”

 V. S. RAMACHANDRAN

 

 

 

No prólogo de seu livro El cerebro interno y mundo emocional, Rof Carballo (1952) comentava com um orgulho nada dissimulado como a patologia psicossomática havia passado primeiro de especulativa à clínica e logo de clínica à fisiopatológica para alcançar, por fim, uma “razão de ser” anatômica. Esse caminho de naturalização que exige ir desde o especulativo ao anatômico—passando em ocasiões por estágios nos quais os argumentos etiológicos são importantes — deveria figurar como vade mecum imprescindível para aqueles que se adentram pelos caminhos ainda nebulosos da análise das funções do cérebro.

 

 Rof Carballo foi um pioneiro na tarefa e alcançou em seu empenho umas cotas que hoje já se reconhece amplamente. Mas, seria possível propor um programa semelhante quando falamos de algo tão etéreo como a mente?

 

Vamos abordar aqui a maneira como outro autor ilustre, Noam Chomsky, propõe um programa de naturalização da mente para, a continuação, esboçar por donde se pode seguir o caminho que os postulados chomskianos abriram. Em grande parte se tratará de pontos de vista especulativos; a “razão de ser” anatômica resulta longe ainda. Mas por algo se começa.

 

 

A estrutura da mente no programa chomskiano

 

Em sua obra Rules and Representations, Chomsky (1980) descreve a mente como uma “caracterização abstrata das propriedades de certos mecanismos físicos, quase por completo desconhecidos hoje e que não  tem nenhum sentido ontológico ulterior” (Chomsky, 1980). Essa descrição implica uma postura precisa frente ao chamado “problema mente/corpo” ou “problema mente/cérebro”: não existe uma entidade ontológica “mente” alheia ao cérebro, que é o mecanismo físico que a gera, mas a entidade abstrata “mente” tampouco é redutível, de acordo com Chomsky, à atividade funcional do cérebro.

 

Intentemos explicar esse paradoxo aparente. A carga metafísica de uma mente alheia ao cérebro é, desde o ponto de vista imperante hoje, um erro derivado da descrição do mundo levada a cabo pela mecânica cartesiana.  Descartes postulou a existência da “res cogitans” ou mente como entidade separada da “res extensa” ou mundo físico. Mas chegou a essa conclusão através de seu intento de demonstrar a existência de um mundo físico por completo determinista e distante do animismo. Para isso, Descartes situou no mundo do mental as ações que, de forma introspectiva, intuímos que não estão sujeitas a nenhuma determinação externa.

 

Hoje entendemos – se é que Descartes não o entendeu também assim— que a mente não é alheia ao cérebro: aparece como resultado das propriedades de certos mecanismos físicos (a maioria deles desconhecidos, recordemos). Mas esse resultado, sustenta Chomsky, não é redutível aos próprios mecanismos físicos. O cérebro, composto de órgãos mentais, leva a cabo processos para dar lugar ao conhecimento, e esse conhecimento não é nenhum órgão mental, nem tão pouco a soma de todos eles, senão o resultado de uma interação.

 

Um pouco mais adiante na mesma obra Chomsky pontualiza que há algo semelhante a uma mente unitária, “um sistema de distintos sistemas de pensamento que interagem” (Chomsky, 1980). A idéia da mente “transcendente” como sistema de distintos sistemas do pensamento que são propriedades de certos mecanismos físicos, ainda que vá mais além deles, se mantém no programa minimalista posterior (Chomsky, 1998a; 1998b). De fato, constitui um ponto central da teoria da linguagem e da mente de Chomsky ao longo de toda sua carreira. De onde provém sua força?

 

Ninguém discute hoje – que nós saibamos – o fato de que a mente é um conjunto sistemático do pensamento que tem seu suporte físico no cérebro humano. Inclusive quem mantém, mais bem metaforicamente, que a mente está “na interação entre a sociedade e o indivíduo ” (Fischer, 1990), a necessidade do suporte cerebral é absoluta. Poder-se-á sustentar, pois, que a mente é algo mais que o cérebro, que não é redutível ao suporte físico e nem sequer, talvez, à atividade funcional deste, mas nem os dualistas mais radicais relacionam hoje a mente com a atividade funcional do coração ou do fígado, como coube imaginar em um tempo. Então, qual a razão de proclamar sua condição transcendente?

 

A resposta dada por Chomsky através de distintos artigos nos quais se propõe precisamente essa pergunta (Chomsky, 1992; 1994; 1995; 1998a) tem que ver com os meios existentes para explicar os fenômenos observáveis. Desde o ponto de vista ontológico, a mente é um objeto natural, tão natural como um ser humano ou um átomo de hidrogênio. Mas de acordo com uma postura epistemológica que caberia qualificar talvez mais próxima a Hillary Putnam que a Descartes, Chomsky propõe que os objetos naturais não são acessíveis por igual. Os átomos de hidrogênio são explicáveis em termos técnicos ou, se se prefere, científicos. Não obstante, quando falamos do “ser humano” não basta com descrevê-lo em termos físicos, químicos ou inclusive anatômicos. Há algo mais, um “plus” que escapa às aproximações científicas e que somente pode ser explicado em termos de sentido comum.

 

A distinção entre aproximações naturalistas e aproximações de sentido comum, não naturalistas, é básica na epistemologia chomskiana e de todo imprescindível para entender sua teoria da mente. Mas o fato de que exista uma aproximação somente de sentido comum, não naturalista, à entidade natural “ser humano” não quer dizer que todos os aspectos de um ser humano sejam inabordáveis para a investigação científica. Os braços ou o fígado de um ser humano são de todo entidades naturais ao estilo do  “átomo de hidrogênio”. Que dizer da mente? Pertence ao abordável de forma naturalista ou ao abordável somente em termos de sentido comum?

 

A resposta é dolorosa para os objetivos deste artigo. Se considerarmos “mente” de forma holista, como correlato de “ser humano” (e quase como seu equivalente), Chomsky entende que não há forma de realizar uma aproximação naturalista à mente. Em seguida veremos com maior detalhe por que. Mas os aspectos parciais da “mente” sim constituem programas legítimos, para Chomsky, do estudo científico. Dificilmente podia ser de outra maneira, tendo em conta a modo como estabelece ao longo de toda sua obra o que é o órgão mental da linguagem.

 

Para Chomsky a questão da mente/corpo não é um problema em si mesmo, senão tão somente o resultado de um inadequado enfoque que tem que ver com a maneira como a mecânica cartesiana descreveu o mundo (quer dizer, um falso problema). Se abordarmos adequadamente a forma como funciona o conjunto mente/cérebro, a melhor maneira de responder à pergunta acerca de se “o pensamento do ser humano” é ou não uma entidade natural é o de perguntar-nos, por sua vez, se existem aspectos parciais do pensamento humano que podem ser descritíveis de forma naturalista.

 

E a resposta só pode ser afirmativa. O “pensamento humano” entendido de forma holista não será nunca abordável de forma naturalista. Como diz Chomsky (1994): “Simplesmente, um enfoque naturalista não exclui outros modos de tratar de compreender o mundo. Quem o adota pode crer consistentemente (comigo) que aprendemos muitas mais coisas de interesse humano sobre como pensa , sente e atua a gente lendo novelas ou estudando a história ou as atividades da vida ordinária, que com toda a psicologia naturalista; quiçá isto vá a ocorrer sempre. Do mesmo modo, a arte pode oferecer uma apreciação do céu a que a astrofísica não aspira”. Mas isso não impede o fato de que seja possível detectar e explicar de forma naturalista alguns aspectos parciais do que é o pensamento.

 

Até onde chegariam esses aspectos parciais?

 

Como havíamos apontado antes, o que distingue a concepção de Chomsky é a condição do mental como um sistema de sistemas distintos. É esse o sentido da mente chomskiana, oposto ao de todos os que, desde Skinner a Piaget, sustentam que a mente é um todo único e indiferenciado. Ainda quando se aceite que existem diferentes faculdades mentais (memória, imaginação, entendimento, vontade), a idéia da uniformidade manteria que as diferentes capacidades cognitivas se desenvolvem de maneira uniforme, que existem princípios gerais do conhecimento (“estratégias de aprendizagem”) subjacentes a todas as distintas capacidades mentais (Chomsky, 1980). Chomsky discute de maneira explícita essa pretendida “uniformidade” (Chomsky, 1980), invocando, com toda razão, as evidências enormes em seu contra que procedem dos trabalhos experimentais, em concreto dos de David Hubel sobre a percepção visual nos mamíferos.

 

 

Os órgãos mentais: o órgão e a função da linguagem

 

A modularidade mental implica, pois, uma estrutura na qual se integram diferentes sistemas do pensamento; mas, “quais?” Chomsky fala de vários “órgãos mentais” que se desenvolvem cada um de maneira específica de acordo com o programa genético, igual que se desenvolvem os órgãos do corpo (Chomsky, 1980). Não existem princípios gerais do crescimento dos órgãos que sejam responsáveis da forma e funções do fígado, o pulmão, o coração, etc., mais além do nível da biologia celular. O mesmo deve ser certo para os órgãos mentais (Chomsky, 1980). Trata-se de um primeiro passo no translado da especulação à anatomia porque, sendo assim, quiçá caberia indicar quais são os correlatos anatômicos desses “órgãos mentais”. Mas para isso é necessário de antemão identificar tais órgãos.

 

Um dos órgãos mentais é imediato, e mais ainda se estamos falando de Chomsky: a faculdade da linguagem; os demais não resultam tão claros. Os termos em que Chomsky fala de “linguagem” são conhecidos: trata-se de uma característica ligada a nossa espécie, de ordem, pois, universal, baseada na existência de uma capacidade inata que, durante la ontogênese —e graças aos inputs recebidos do entorno idiomático—, da lugar à gramática profunda correspondente à língua materna. São inabordáveis os estudos destinados a delimitar as características dessa gramática generativo-transformacional responsável da condição criadora da linguagem. Mas ademais desse aspecto estritamente sintático, a gramática generativa tem um componente antropológico: supõe uma determinada forma de processar, desde o ponto de vista cognitivo, as informações procedentes do meio dotando-as — mediante um processo top down no qual os esquemas de pensamento prévios são cruciais— de sentido. A linguagem não somente permite falar do mundo; permite, ademais, entendê-lo.

 

Nesse sentido é a linguagem um “órgão mental”. Mas estávamos conjeturando se existem mais. E a resposta que dá o próprio Chomsky é, com todas as reticências que se queiram acrescentar, afirmativa. Outro órgão mental parece ser a faculdade numérica, quer dizer, o conceito de adição indefinida de elementos discretos que conduz ao infinito (Chomsky, 1980). Outro poderia ser la capacidade de manejar propriedades abstratas do espaço (Chomsky, 1980). Outro mais, a capacidade (sugerida por Piaget, como reconhece Chomsky) de desenvolver um conhecimento científico em determinados domínios (Chomsky, 1980). Ainda temos outro: a capacidade de reconhecimento de rostos (Chomsky, 1980).

 

Mas agora vem a má notícia. Salvo que a metodologia e, quiçá, as evidências obtidas do estudo do órgão da linguagem sejam transpassáveis aos demais órgãos mentais, nos encontraríamos com que — de acordo com Chomsky— essas outras faculdades somente podem abordar-se em termos de sentido comum.

 

A idéia um tanto intuitiva de que as estruturas da linguagem são específicas e proporcionam pouca luz sobre os demais órgãos mentais a mantém Chomsky ao longo de toda sua obra. Markson e Bloom (1997) hão estudado o  fast mapping —aprendizagem de aspectos do significado de novas palavras em função de umas poucas exposições incidentais e retenção do conhecimento adquirido durante um período longo— em crianças, sacando a conclusão de que essa faculdade talvez não se limite ao aprendizado lingüístico. A capacidade de aprender e reter novas palavras poderia formar parte de possibilidades de aprendizado e memória que não são específicas da linguagem.

 

Por sua vez, a detecção por parte de Vandenberghe e colaboradores (1996) de um sistema semântico comum para palavras e imagens aponta no mesmo sentido. Como indica Caramazza (1996), isso não significa por força que a região encarregada de um “órgão” seja funcionalmente homogênea; talvez uma mesma área seja capaz de manejar distintas formas de conhecimento de maneira diferente, tal como sugerem os estudos de lesões cerebrais. Mas a identificação dessas áreas “multi-órgão” propõe, em todo caso, uma relação mais estreita da que caberia imaginar entre a semântica visual e a verbal.

 

Em contra do esperado, alguns dos “órgãos da mente” mencionados por Chomsky em seu texto de 1980 contam hoje com interpretações científicas incipientes. Assim, a faculdade numérica (Dehaene et al, 1999) ou o reconhecimento de rostos (Ó Scalaidhe, Wilson, & Goldman-Rakic, 1997). Mas seria injusto retratar a Chosmky como um autor empenhado em sustentar umas posturas que a ciência logo refuta. Em seu artigo “Explaining Language Use” (Chomsky, 1992), e ao desqualificar a possibilidade de uma investigação naturalista da intencionalidade, Chomsky já advertia que no terreno do estudo dos sistemas C-R (computacional—representacionais) se havia logrado notáveis êxitos de explicação de alguns aspectos da “semântica interna” (internalist semantics) graças às técnicas de detecção de potenciais elétricos ERP.

 

Cabe recordar a respeito que dentro da teoria chomskiana era a sintaxe a que podia ser estudada de forma científica; a semântica somente parecia abordável por meio de explicações de sentido comum. Isso significa, pois, que mediante as técnicas modernas de detecção da atividade funcional do cérebro é possível obter explicações naturalistas e, portanto parciais, do pensamento em parcelas antes ocultas. O próprio Chomsky chegou a propor mais tarde a necessidade de distinguir entre o sentido estrito e amplo da linguagem, incluindo neste último certas capacidades que vão mais além das considerações gramaticais rigorosas (Hauser, Chomsky, & Fitch, 2002).

 

E qual seria função da linguagem?

 

Humberto Maturana (1985) recorda que a humanidade se separou de seus ancestrais primatas pelo desenvolvimento da comunicação muito mais que pelo desenvolvimento do intelecto, já que este último é conseqüência daquele e não ao contrário como costuma pensar-se. Agrega que dado que nada evolui caprichosamente, este avanço em direção de uma maior linguagem deve ter também uma razão, quer dizer, devia haver “algo” que necessitava ser comunicado, algo tão importante como para produzir o salto evolutivo e, portanto, verdadeiramente responsável de que sejamos hoje quem somos. Assim que Maturana propõe que a linguagem surgiu fundamentalmente para poder comunicar afeto. A vontade de ajuda e de acompanhamento, o desejo de compartir conhecimento e apoio mútuo.

 

Se seguirmos esta linha de pensamento não é difícil inferir que o homem primitivo evoluiu, perdura e se expande, quando aparece nele um verdadeiro interesse por outros, uma capacidade de vincular-se de maneira transcendente e uma conseqüente necessidade de comunicá-lo. De fato, parece razoável intuir que privados de vínculos com os demais o ser humano que hoje somos não houvesse sequer existido. Dito de outro modo, o que define um indivíduo, o que é capaz de por limite ao seu ser para separá-lo do que não é, é precisamente a presença do outro.

 

Como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos conforma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. O homem (cujo cérebro é capaz de viver em um universo não percebido) sem alteridade humana não pode desenvolver suas promessas genéticas. A origem biológica de nossas mais extraordinárias capacidades cognitivas e emocionais – como em todos os grandes hominídeos – é de todo ponto social. Estamos desenhados pela seleção natural para ter uma necessidade imperiosa dos outros, necessários para nossa própria completude ontológica. Não, por certo, para satisfazer nossa vaidade, senão porque, marcados por uma incompletude constitutiva da espécie, devemos ao outro nossa própria individualidade e nossa existência mesma.

 

A maneira como foi possível fixar-se na evolução dos hominídeos a faculdade mental de identificação do “outro” como ser intencional somente pode ser esboçada de forma especulativa, mas já se há assinalado que a necessidade de adaptar-se aos novos habitats abertos da savana africana mediante o uso de instrumentos de pedra em tarefas de caça poderia haver suposto uma pressão seletiva suficiente para estabelecer fortes tendências sociais e favorecer o ulterior avanço das capacidades cognitivas relacionadas com a comunicação e associação simbólica. Isso é tanto como dizer que as bases neurofisiológicas para a linguagem, o pensamento, a intercomunicação proposicional e a leitura da mente poderia haver-se iniciado não na etapa final da hominização, com o Homo sapiens, senão nos momentos iniciais dentro da espécie Homo habilis (Tobias, 1987a; Tobias, 1987b).

 

Longe de ser uma característica universal da vida animal, a tendência a cooperar, a comunicar-se e a raciocinar em termos de contrato social, sempre a partir do “outro”, é a marca de qualidade e legitimidade do ser humano, aquilo que nos distingue de outros animais. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros: a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a – e se vê afetada por –  os demais seres humanos.

 

Em resumo, a presença e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social e qualquer coisa que destrua ou limite a presença e a aceitação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou limita o fato de se dar o fenômeno social – e, portanto, humano-, porque destrói o processo biológico que o gera e o sentimento de que estamos desenhados pela seleção natural para comunicar-nos e entender-nos uns aos outros (Maturana, 1985).

 

Sigamos, pois, por essa linha apontada e admitamos que os traços que, ademais da linguagem, distinguem melhor aos seres humanos dos outros primatas são os juízos éticos, a estética e as crenças religiosas — por deixar de lado outros também notórios como o sentido musical. Pois bem, os dois primeiros já contam  com evidências experimentais acerca de quais são os correlatos no cérebro dos processos cognitivos que subjazem à ética e a estética.

 

Vejamos em que consistem.

 

 

O órgão da moral

 

Para mostrar que existe módulos específicos que governam o sentido da vista, ou inclusive que a linguagem também é constitutivamente modular, parece algo no qual as ciências neurocognitivas vão trilhando o caminho do êxito. Agora: cabe estender o mesmo modelo de desenvolvimento de competências a outros módulos/órgãos mentais? Dito de outro modo: é possível entender que nossa mente também está dotada de um módulo específico para algo que tem um componente tão aparentemente difícil de manejar como os juízos morais; isto é:  há correlatos cerebrais específicos que ditam o sentido da justiça ou da moral?

 

Gazzaniga (2006), por exemplo, defende a idéia de que poderia existir um conjunto universal de respostas biológicas aos dilemas morais, uma sorte de ética integrada no cérebro , isto é, de que temos um sentido moral que está construído em nossos cérebro por nossa evolução, como nosso instinto sexual ou nosso medo às alturas – ou, como Hauser (2008) prefere dizer, estabelecendo uma analogia com a teoria da gramática universal de Chomsky, como nossa capacidade para a linguagem : estamos dotados de uma faculdade moral que guia nossos juízos intuitivos sobre o bem e o mal, uma espécie de órgão moral ou gramática moral universal inata; a moral seria tributária de um instinto resultado de milhões de anos de evolução nos quais nossos antecessores viveram como mamíferos sociais e formam parte de nosso patrimônio comum – quer dizer, antes do primeiro contrato social ou do primeiro padre celebrar a primeira missa (Hauser, 2008; Hauser e Singer, 2006).

 

A melhor confirmação do papel que joga o cérebro ao enfrentar-se qualquer ser humano com problemas relativos a dilemas morais e aos processos de toma de decisão chegou por meio das investigações levadas a cabo pela neurociência cognitiva.

 

Desde que Hanna Damasio e seus colaboradores ressuscitaram o caso de Phineas Gage, o engenheiro que, no século XIX, sofreu lesões cerebrais que não lhe mataram mas que arruinaram sua vida por lhe haverem provocado déficits na toma de decisões  (1994), se pôs de manifesto a importância das conexões cerebrais existentes entre o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo uma conduta útil em termos de adaptação social (como expressão sutil do tipo de inteligência própria de nossa espécie, a denominada “hipótese do marcador somático”). Mediante o estudo de pacientes com lesões cerebrais se estabeleceu que a amígdala e outras zonas ventrais do cérebro são elementos necessários à hora de realizar juízos sobre a vida social, ainda que seus papéis respectivos sejam distintos nesse processo (Adolphs, Tranel, & Damasio, 1998; Bechara et al, 1999).

 

Por sua parte, e graças à técnica da ressonância magnética funcional (fMRI) que mede o consumo de oxigênio provocado pelo trabalho dos neurônios, Alan Sanfey e seus colaboradores (2003) identificaram em sujeitos , esta vez sãos, a ativação de uma zona que está relacionada com as emoções – a ínsula anterior – e outra zona frontal encarregada de múltiplas funções entre as que se encontram os juízos realizados frente às alternativas existentes para a ação  — o córtex pré-frontal dorsolateral.

 

Em todos estes estudos se dá por suposto o fato de que o cérebro é o gerador, mediante seus estados funcionais, do que chamamos consciência ou mente. Em realidade não poderia ser de outra maneira: como dizíamos ao princípio, poucos negam hoje em dia que a mente é um estado funcional do cérebro. Mas existe uma diferença sensível entre falar da atividade cerebral em termos vagos e estabelecer quais são as redes neuronais interrelacionadas em um determinado processo cognitivo. Por desgraça a precisão temporal da fMRI não é muito alta, da ordem de entre 2 e 6 segundos, quando os processos de ativação cerebral se medem em milisegundos.

 

Nesse aspecto, então, o que nos estão indicando a fMRI e a tomografia de emissão de positrons (PET) respeito da ativação cerebral relacionada com juízos que implicam  em certa forma o uso de valores morais? Os resultados dos diferentes estudos já realizados são um tanto dispersos devidos, provavelmente, aos diferentes objetivos e supostos de partida dos diferentes grupos de investigadores, coisa que leva a se questionar acerca da validez e adequação de alguns dos desenhos experimentais que lhes serviram de base.

 

Por exemplo, o sempre citado trabalho de Joshua Greene e colaboradores (2001) se centrou na busca de correlatos neuronais diferenciais para a resolução de dois grupos diferentes de dilemas que se distinguiam pelo modo de chegar a um mesmo resultado. Os exemplos paradigmáticos acerca dos dois tipos diferentes de juízo moral foram os seguintes: um em que os sujeitos se encontram implicados pessoalmente em uma determinada ação (footbridge) e outro que implica uma maior distância pessoal para quem julga a ação (trolley). Greene et al denominam ao primeiro “moral-personal dilemma” e ao segundo “moral-impersonal dilemma”, sendo contudo bastante duvidoso que estas denominações sejam efetivamente as mais adequadas e  corretas.

 

No primeiro caso, de dilema moral impessoal, ao participante no experimento se lhe colocou ante a seguinte situação: dilema tipo trolley – um trem sem controle matará a cinco pessoas se segue seu trajeto. Um sujeito, situado em uma local distante dos fatos, pode desviá-lo, mediante o simples movimento de uma alavanca, para outro trajeto no qual só há uma pessoa, a qual sem dúvida o veículo matará. É correto acionar a alavanca?

 

No segundo caso (dilema tipo footbridge), de juízo moral pessoal, o dilema segue um guión parecido, com a diferença de que agora o sujeito está situado em uma ponte sobre a estrada de ferro e tem a seu lado a uma pessoa estranha. Para salvar as cinco pessoas que serão atropeladas o sujeito pode empurrar o estranho desde a ponte para a estrada de ferro – que seguramente morrerá –, detendo assim o trem. É correto obrar assim?

 

A busca de correlatos neuronais diferenciais teve sua origem em que as respostas aos dilemas por parte dos distintos sujeitos implicados no experimento variavam de maneira substancial. Em resumo, a maior parte dos participantes respondia que no primeiro caso é apropriado desviar o trem lançando-o em direção ao indivíduo solitário, enquanto que no segundo caso, também de forma maioritária, se opinava que não é apropriado jogar à via ao estranho. Tudo isso pese à obviedade de que o resultado final de ambos os dilemas é o mesmo: salvar a vida de cinco pessoas em troca da vida de um só indivíduo.

 

Para levar a cabo o estudo a equipe de Greene acrescentou aos grupos de dilemas tipo trolley – aos que chamou dilemas morais impessoais – e aos tipo footbridge – ou  dilemas morais pessoais – um terceiro grupo de dilemas neutros com o propósito de que estes últimos servissem como linha base para comparar os resultados dos outros dois. A heurística utilizada para construir uns e outros foi a de partir dos dilemas paradigmáticos e criar variações sobre eles, processo pelo qual se chegou a estabelecer que os dilemas pessoais deviam conter necessariamente três elementos: 1) implicar um dano corporal; 2) a um individuo ou grupo de indivíduos particular e 3) de tal forma que o dano não seja uma “desviação“ de um dano pré-existente, senão mais bem o resultado da intervenção expressa de quem julga (noção de agência). Os dilemas que carecessem de ao menos um dos elementos anteriores seriam considerados impessoais, de conter juízos morais, ou neutros se se referiam a outro tipo de juízo como pode ser o de utilizar um determinado tipo de ingredientes em uma receita de torta que exigem outros.

 

O interessante não é tanto a resposta que deram os participantes do experimento, mas sim as zonas cerebrais que se lhes ativaram de forma distinta quando se enfrentavam aos dilemas morais pessoais, os dilemas morais impessoais e os dilemas sem conteúdo moral. De acordo com os resultados obtidos, a condição pessoal (footbridge) ativou áreas que se consideram relacionada com o processamento das emoções. Pelo contrário, os dilemas morais impessoais (trolley) e os neutros moralmente ativaram de maneira significativamente maior as áreas que se relacionam com a memória de trabalho. Os resultados indicam, pois, uma implicação das emoções nos juízos sobre dilemas pessoais frente ao cálculo presente nos impessoais e os neutros. O trabalho original de Greene e colaboradores foi ampliado mais tarde (Greene et al, 2004) tendo em conta esta vez as respostas dos indivíduos aos dilemas pessoais, mas sem diferenças dignas de maior comentário (Atahualpa e Marly Fernandez, 2008).

 

É possível destacar algumas sombras na interpretação do desenho experimental de Greene e colaboradores (2001). Em primeiro lugar, os correlatos neuronais do juízo associado a dilemas impessoais e neutros foram na prática idênticos (com a ressalva de alguns pontos do hemisfério direito do cérebro). Para completar, o ponto chave onde poderia haver sido possível buscar diferenças adicionais, o córtex orbitofrontal, não se pôde estudá-lo devido a certos artefatos criados pela suscetibilidade magnética. Mas também existem algumas dúvidas de conceito.

 

Ainda que os sujeitos dos experimentos optem por uma solução distinta no caso da alavanca e no da ponte, é mais duvidoso – como sugerem, por outra parte, os próprios autores ao final de seu artigo – que se possa chamar de “impessoal” à ação quando se obriga a sacrificar uma pessoa; e ainda mais digno de suspeita que essas ações impessoais ativem os mesmos circuitos no cérebro que os juízos não morais ao estilo de se é correto utilizar nozes normais em uma receita pensada para nozes de macadâmia. Ou bem a inteligência humana esconde certos traços de perversidade e indiferença com relação à sorte de nossos congêneres, ou bem o experimento põe de manifesto chaves mentais distintas a de um juízo moral.

 

Outro trabalho, o de Jorge Moll e colaboradores (2002), ofereceu a esse respeito algumas pistas usando dilemas que implicavam juízos morais (exemplo: o juiz condenou a um inocente), juízos não morais neutros (as crianças obesas devem seguir dieta), juízos não morais mas desagradáveis (limpou a retrete com a língua) e  juízos sem nenhum sentido (o turno vital dos sapatos bebidos era irmão). Os juízos morais ativaram o córtex medial orbitofrontal, o polo temporal e o surco temporal superior do hemisfério esquerdo enquanto que os não morais mas desagradáveis o fizeram respeito da amígdala esquerda, o giro lingual e o giro lateral orbital.

 

 Em opinião dos autores, a coincidência neste último caso com as zonas que Greene e colaboradores indicavam como própria dos juízos morais pessoais aponta à ativação de zonas emotivas não tanto pela necessidade de decidir a moralidade de uma ação senão pelas circunstâncias desagradáveis das condutas que se sugerem no experimento, de evidente importância à hora de empurrar a uma pessoa desde uma ponte. Pelo que se refere à ativação ligada ao juízo moral, o trabalho de Moll e colaboradores confirmou pautas já conhecidas como é o da implicação do córtex medial orbitofrontal. Mas o fato de que os juízos morais utilizados não ativassem zonas límbicas e sim zonas ocipitais relacionadas com a visão demonstra a necessidade de se levar a cabo novos experimentos com mais sujeitos e em condições melhor controladas.

 

Em termos gerais, o que parece razoável supor é que, de acordo com as evidências experimentais até agora obtidas, não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Por exemplo, Casebeer (2003), tendo em vista as numerosas filosofias morais que existem, tomou como ponto de partida de suas investigações acerca das zonas cerebrais  que se ativam durante o raciocínio ou juízo moral, as três filosofias ocidentais mais importantes: o utilitarismo de Stuart Mill , a deontologia de Kant e a teoria da virtude de Aristóteles (que trata de cultivar a virtude e evitar os vícios). Concluiu sua análise com a seguinte observação: “Assim que poderíamos dizer […] que estes três enfoques situam-se em diversas zonas do cérebro: frontal (Kant); pré-frontal, límbica e sensorial (Mill); a ação corretamente coordenada de todo o cérebro (Aristóteles)”.

 

No atual panorama científico têm aparecido vários estudos donde se afirma que  existe, no cérebro, uma versão do raciocínio ou juízo moral. Já se descobriu, por exemplo, que determinadas regiões do cérebro, normalmente ativas durante os processos emocionais, se ativam diante de alguns tipos de juízo moral, mas não diante de outros. Os encarniçados debates seculares sobre a natureza das decisões morais e sua similitude ou diferença se resolvem agora de maneira rápida e clara com a moderna imagem cerebral. E os novos resultados indicam que quando alguém está disposto a atuar segundo uma determinada crença moral é porque a parte emocional de seu cérebro se ativou ao pensar na questão moral. Assim mesmo, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa.

 

Trata-se de uma assombrosa novidade para o conhecimento humano, porque ajuda a entender que a resposta automática do cérebro pode predizer nossa resposta moral. Resumindo: os novos resultados das imagens cerebrais parecem indicar que o cérebro responde aos grandes dilemas morais subjacentes, isto é, de que parece haver mecanismos subconscientes inatos comuns que se ativam em todos os membros de nossa espécie como resposta aos desafios morais. É como se todos os dados sociais do momento, os interesses de sobrevivência pessoal de que estamos dotados, a experiência cultural que já vivenciamos e o temperamento básico de nossa espécie alimentasse os mecanismos subconscientes e inatos que todos possuímos e daí surgira uma resposta, um impulso para atuar ou deixar de atuar.

 

Seja como for, o certo é que o atual modelo neurocientífico do juízo moral (e ético-jurídico) obtido por técnica de neuroimagem parece sugerir que o mesmo implica um amplo recrutamento e emprego de diferentes sistemas de habilidades mentais (relacionados tanto com o pensamento racional como emocional) e fontes de informação diversas (Goodenough & Prehn, 2005). De que é a atividade coordenada e integrada das redes neurais a que torna possível a conduta moral humana, isto é, de que o juízo moral integra as regiões frontais do cérebro com outros centros, em um processo que implica a emoção e a intuição como componentes fundamentais. É mais, que cada uma destas funções cerebrais intervêm em uma grande diversidade de operações cognitivas, umas relacionadas com a inteligência social e outras não (Greene et alii,2001 , 2002 e 2005; Moll et alii, 2002 e 2003 e 2005).

 

 

O órgão da beleza

 

Ademais dos juízos morais, os de ordem estética também já foram devidamente estudados no que se refere a seus correlatos cerebrais graças às técnicas de neuroimagem. Por exemplo, há na atualidade quatro destacados estudos publicados de neuroimagem desenhados para identificar os correlatos neuronais da apreciação estética. Kawabata e Zeki (2004) utilizaram ressonância magnética funcional para registrar a atividade cerebral de seus participantes enquanto pontuavam a beleza de uma série de estímulos visuais. Os autores desse estudo encontraram que a atividade do córtex orbitofrontal era maior para estímulos classificados como belos, enquanto que a atividade no córtex motor era maior para estímulos classificados como feios. Também mediante ressonância magnética funcional Vartanian e Goel (2004) acharam que a atividade do núcleo caudal, o giro cingulado anterior e os giros occipitais aumentavam com a preferência dos sujeitos pelos estímulos apresentados. Usando a mesma técnica de neuroimagem, Jacobsen, Schubotz, Höfel e von Cramon (2006) identificaram uma relação entre a preferência estética e a atividade neuronal no pólo temporal, o córtex pré-frontal lateral, e o pólo frontal. Finalmente, e mediante o uso da magnetoencefalografia, Cela-Conde, Marty, Maestú, Ortiz, Munar, Fernández et al. (2004) identificaram um aumento da atividade no córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo entre os 400 e 1000 milissegundos depois da apresentação dos estímulos que foram considerados como belos pelos próprios participantes.

 

Na investigação levada a cabo por Cela-Conde da Universidad de las Islas Baleares, todos os participantes do experimento eram mulheres (para eliminar as possíveis variáveis de comportamento entre os sexos) e cada sujeito devia decidir por si mesmo frente a cada lâmina se a encontrava bela ou não. Ativaram-se também outras áreas relacionadas com as tarefas visuais e com a percepção de forma e cor. Mas a ativação do córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo era muito mais intensa nas lâminas “belas” que nas “não belas”. (Cela-Conde et al, 2004). É preciso aclarar que os participantes não coincidiam no critério acerca de que lâminas eram belas e que outras não o eram. Mas a condição subjetiva, pessoal, da beleza lhes ativava (a todas) essa mesma área cerebral. Os resultados do experimento indicam que a zona pré-frontal do cérebro é em grande medida responsável de uma conduta tão especificamente humana como a da percepção estética. 

 

Em um segundo momento da investigação dirigida por Cela-Conde, o problema a superar consistiu em averiguar em que medida intervém para matizá-la o fator sexo. Quer dizer: o processamento neuronal da beleza se dá de igual forma nos homens e nas mulheres?

           O resultado obtido pela equipe de investigadores composta por membros da Universidad de las Islas Baleares, a Universidad Complutense de Madrid, The University of Califórnia e o Consejo Superior de Investigaciones Científicas demonstrou que a capacidade para apreciar a beleza difere entre homens e mulheres pelo que se refere ao cérebro (Cela Conde et alii, 2009). Esses investigadores puseram de manifesto que quando as mulheres avaliam diferentes estímulos em relação à beleza dos mesmos, se ativam regiões no lobo parietal dos dois hemisférios cerebrais, enquanto que no caso dos homens essa ativação se dá preferentemente no hemisfério direito. Quer dizer, os homens só utilizam a metade do cérebro para apreciar a beleza.

 

           Os autores sugerem que estas diferenças parecem ser resultado de processos evolutivos em relação a diferenças de sexo no que concerne aos correlatos neuronais de coordenação e categorização das estratégias espaciais utilizadas. As diferenças encontradas entre mulheres e homens com respeito à apreciação da beleza poderiam refletir diferenças nas estratégias associadas com a divisão dos labores nos ancestrais hominídeos: as mulheres estavam totalmente orientadas à atividade coletora, enquanto que os homens o estavam à caça. Um homem caçador necessitava interpretar as relações espaciais entre os estímulos de uma forma determinada. Ademais, a atenção se tinha que centrar no animal ao que se pretendia caçar. Enquanto isso, a mulher tinha que encarregar-se dos labores de coleção e do cuidado da progênie. As capacidades espaciais e de atenção que esta devia por em marcha diferiam notavelmente das do caçador.  

 

De uma maneira geral, poderia resultar surpreendente que estudos desenhados com o mesmo objetivo – identificar os correlatos neuronais da preferência estética – dêem lugar a resultados tão dispares. Sem embargo, em nenhum dos estudos citados se afirma que as regiões localizadas atuem de maneira isolada. De fato, a disparidade de resultados põe de claro manifesto a verdadeira complexidade da apreciação estética, no sentido de que parece estar sustentada sobre múltiplos processos cognitivos e afetivos. É possível, ademais, que os quatro estudos tenham registrado somente uma imagem parcial dos complexos mecanismos implicados na apreciação estética. O grupo de investigadores dirigidos por Cela-Conde sugere que as diferenças nos desenhos experimentais e os procedimentos dos quatro estudos podem ser os fatores que levaram a obter e a expressar distintos aspectos implicados na experiência estética, de tal maneira que cada um oferece uma imagem parcial dos correlatos neuronais da apreciação estética.

 

Independentemente de nossa preferência por um ou outro modelo da apreciação estética, o que está claro é que existe atualmente um amplo acordo entre os investigadores acerca da participação nesta capacidade de uma variedade de processos de tipo cognitivo e afetivo – isto é, de conceber o juízo estético como resultado da interação de processos cognitivos e afetivos. Alguns desses processos estão relacionados com a análise perceptiva, outros com o reconhecimento e processos mnemônicos afins, outros com a representação de seu valor reforçador, outros com algumas funções executivas e a tomada de decisões, enquanto que outros o estão com a análise do valor afetivo do estímulo – note-se que determinadas capacidades humanas foram herdadas de antigos antepassados (como a análise visual precoce, o reconhecimento de objetos no contexto afetivo e mnemônico, a representação de seu valor reforçador e algumas funções executivas) enquanto que outras foram submetidas a significativas transformações ao largo da linhagem humana (como a integração de informação multisensorial, a análise espacial e a monitorizarão do próprio estado afetivo).

 

 

           O que podemos esperar

 

O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. O imponente desenvolvimento da neurociência nos últimos decênios colocou em evidência sua necessidade de recorrer à interdisciplinaridade para abordar os desafios que se lhe apresentam. Entre eles se encontram aqueles que se referem a questões decisivas para a compreensão do ser humano, isto é, para os aspectos mais relevantes do papel que joga o cérebro na vida e na conduta do homem.

 

De fato, nos últimos tempos um novo saber chamado “neuroética” aventura também algumas respostas a estas questões e pretende com elas descobrir as bases cerebrais de uma ética universal. Tratar-se-ia de uma ética inscrita no cérebro de todos os seres humanos, que explicaria nosso sentido da justiça e permitiria por fim formular uns princípios de justiça em que poderiam estar de acordo homens e mulheres de todas as culturas, orientando a formação das correspondentes instituições políticas. Nesse sentido – já dissemos antes (Atahualpa e Marly Fernandez, 2008) -, a investigação neurocientífica sobre a cognição moral (e jurídica) poderia vir, de certa forma, revolucionar nosso entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana, com consequências profundas que poderiam vir a afetar, por exemplo, o domínio próprio da experiência jurídica. Da mesma forma, poderiam vir a influir nas intuições morais da sociedade assim como nas obrigações percebidas. O grau em que isso seja possível e o calibre das resistências que encontrará é algo cuja resposta nos chegará quiçá antes do que podemos prever.

 

E embora não desconsideremos o fato de que ainda estamos longe de contar com um mapa preciso das ativações espaço-temporais relacionado com os processos cognitivos e afetivos, parece fora de toda dúvida razoável que vamos trilhando  um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Já sabemos, por exemplo, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et alii, 2001 e 2002; Moll et alii, 2002 e 2003; Goodenough & Prehn, 2005; Hauser, 2006). Sabemos que a percepção estética implica a ativação do córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo (Cela-Conde et al, 2004). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários do córtex ocipital (Zeki & Marini, 1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini & Ungerleider, 2004). Sabemos das “neuronas espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa capacidade de elaborar uma “teoria da mente” para prever o comportamento de nossos congêneres (Rizzolatti et alii, 2001 e 2006; Iacoboni, 2009).Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex pré-frontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996; 1997).

 

Hoje já sabemos que a evolução cultural e a evolução genética estão interligadas. Todos os seres humanos são produtos da co-evolução de um grupo de genes ( que é quase idêntico em todas as culturas) e um grupo de elementos culturais (que é diferente nas várias culturas, mas assim mesmo limitado pelas capacidades e predisposições da mente humana). Dessa maneira, os genes e as culturas co-evoluíram; estes são afetados mutuamente e nenhum processo pode ser estudado isolado para os seres humanos: somos objetos físicos (corpo e cérebro) dos quais as mentes emergem  e, de algum modo, de nossas mentes  se formam as sociedades e as culturas. Em resumo, é importante ter em mente dois princípios: a biologia e a cultura caminham de mãos dadas, e nenhuma das duas tem sentido sem a outra. Depois de tudo, o cérebro humano é o que criou a cultura, e o cérebro evolui empurrado por pressões de tipo cultural.

 

Para entender-nos completamente temos que tomar em consideração o biológico, o psicológico e o sócio-cultural, a partir de uma perspectiva evolucionista. O abismo é uma ficção da imaginação temerosa. Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça, a beleza e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal é o cérebro que nos permite dispor de um sentido estético e moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para atuar e viver em sociedade, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre o belo, a justiça e a moralidade.

 

E ainda que não saibamos grande coisa acerca do funcionamento de nosso cérebro, e muito particularmente dos correlatos cerebrais que ditam o sentido do belo, da moral e da justiça, converter esse mar de especulações em certeza anatômica é decerto a tarefa que se espera da ciência atual. Como lembra Ramachandran (2008), nenhuma empresa humana é mais vital que esta para o bem estar e a sobrevivência da raça humana. Recordemos que a política, a justiça, a moral, a beleza e a linguagem têm suas raízes no cérebro humano.

 

 

* Atahualpa Fernandez, Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 

** Marly Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Moral, Linguagem e Estética: Paisagens do Cérebro Humano. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/moral-linguagem-e-estetica-paisagens-do-cerebro-humano/ Acesso em: 19 abr. 2024