Filosofia do Direito

Uma aproximação naturalista ao estudo do Direito

 

 

 

Apesar da larga aceitação  da “pureza” das ciências jurídicas, não existe o menor indício de que o assombro do entendimento não seja mais desejável frente ao assombro da “desatenção cega”. Uma filosofia ou ciência jurídica desenvolvida desde um enfoque naturalista permite enfrentar-se, de forma real e factível, à evidência de que a natureza humana não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais.

 

 

 

Avaliar o problema do fenômeno jurídico sob a perspectiva do programa naturalista iniciado por Charles Darwin na segunda metade do séc. XIX pressupõe algumas dúvidas: Por que existe o direito? Qual a função do direito no contexto da existência humana? Como explicar a evidência de que tenhamos invariavelmente, enquanto espécie, regras respeitantes à maneira de como devemos conduzir nossas condutas? De não ser possível responder a estas questões, a presença do direito no universo do existir humano seguirá sendo um enigma, sempre aberto as mais disparatadas suposições acadêmicas ou um incômodo repertório de incompreensíveis e caprichosos valores, princípios, normas e crenças.

 

Assim que começaremos por admitir, em primeiro lugar, que o direito não é um fim em si mesmo, senão uma estratégia (sócio-adaptativa) ou artefato cultural que utilizamos para alcançar propósitos ético-políticos que vão mais além do próprio direito: um grau tolerável de liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, dessas três virtudes que compõem o conteúdo da justiça e que, em seu conjunto, constituem diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional da dignidade humana.

 

Em segundo lugar, diremos que o desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios relativos à convivência social, isto é, de que criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa secular existência.

 

Pois bem, uma explicação darwinista ou naturalista sobre a evolução do direito supõe que as normas de conduta representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse plasmar publicamente nossa capacidade ou predisposição para inferir os estados mentais de nossos congêneres e predizer (e controlar) a conduta social dos indivíduos, isto é, para antecipar as conseqüências do comportamento dos demais em empresas que requerem  competição e/ou  cooperação.

 

Este fenômeno foi acompanhado por um enorme crescimento do conhecimento social e da complexidade dos vínculos e estruturas sociais,  permitindo uma interação muito mais intensa e rápida entre os homens e os grupos sociais e, em igual medida,  exigindo um aumento substancial das normas integradoras da ação comum. O progressivo aumento da complexidade do intercâmbio recíproco demandou a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, pudessem ser válida e socialmente exercidos.

 

Claro que, de uma maneira geral, resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas temos sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em grupo.

 

Este tipo de perspectiva acerca da origem e evolução do direito pode ajudar a compreender o fenômeno presente da moralidade e juridicidade humana sem desligá-lo de suas origens, isto é, de nossa continuidade com o mundo animal: os homens vivem e se desenvolvem em sociedade não porque são homens, senão porque são animais.

 

É certo que ainda não conseguimos resolver completamente o problema dos mecanismos com que a evolução biológica e a cultura influíram sobre a natureza humana, e vice-versa. Mas para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há que se compreender ao mesmo tempo a dinâmica, em conjunto, entre o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais, isto é, considerar as relações entre nosso cérebro, um produto da evolução por seleção natural, e a cultura, um produto de nosso cérebro.

 

Dito de outro modo, a idéia do direito fundamentada em uma moral de respeito mútuo emana e está limitado pela natureza humana: de nossa faculdade para antecipar as conseqüências das ações, para fazer juízos imediatos sobre o que está moralmente bem ou mal e para eleger entre linhas de ação alternativas. Nossas manifestações jurídicas não são coleções casuais de hábitos arbitrários: são expressões canalizadas de nossos instintos morais, ou seja, de uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno. Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social relativo à reação dos membros de uma determinada comunidade.

 

Embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica capaz de desenvolver uma bússola interna (um instinto moral) que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como as necessidades, desejos e crenças dos demais, de categorizar a conduta humana (objetos e indivíduos) em termos de valor (de favorável ou desfavorável) e de transmitir, de forma acumulativa e renovada, esta categorização valorativa através da aprovação ou rechaço social.

Agora: É possível visualizar, desde uma postura prospectiva, um panorama em que as interpretações naturalistas da cultura humana produzam uma genuína renovação teórica no âmbito do jurídico, resgatando a filosofia e a ciência do direito do isolamento teórico, do hermetismo dogmático e/ou do anacronismo metodológico a que estas chegaram? Poderão os resultados das investigações científicas sobre a natureza humana virem a servir de fonte de informação para a filosofia e a ciência do direito?

 

Duvidamos por três razões. A primeira é que os juristas distam muito de estar preparados para que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas. A segunda razão pela qual existe resistência à idéia de que a ciência contemporânea afete ao direito tem que ver com a ameaça percebida à nossa “imaculada” noção de racionalidade que sem dúvida está vinculada com o problema da interpretação e aplicação jurídica. A terceira e última reside na aversão dos juristas em comprometerem-se com a evidência de que as ciências e as humanidades, embora continuem tendo suas próprias e separadas preocupações, são geradas por meio de um elemento material comum: o cérebro humano.

 

Mas uma vez que a maneira pela qual deveríamos viver é um tema que não pode separar-se completamente dos fatos, de como são as coisas, não resta dúvida de que as conseqüências dessas investigações científicas têm grande importância para a ciência jurídica. Traz à baila, em última instância, a possibilidade de dar passos significativos no sentido de compreender e admitir que a natureza humana não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades, senão que também guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais e os sistemas morais concretos.

 

Afinal, o ser humano é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo. E é precisamente o cérebro, como uma “máquina causal”, que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade. Assim que não deveríamos teorizar ou filosofar sobre o direito para chegar a saber o que é a justiça ou a virtude, senão para chegar a ser homens virtuosos e justos, capacidades que surgem da atividade cerebral, cuja estrutura e função estão diretamente influenciadas por nossa experiência interpessoal.  

 

E nada disso deveria surpreender uma vez que o juízo moral – insolitamente desenvolvido nos humanos – consiste precisamente na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar. A filosofia e a ciência do direito não podem oferecer uma explicação ou uma descrição do “direito real”, do fenômeno jurídico ou da racionalidade jurídica, nem menos esgotar-se nelas, porque sua perspectiva não é primordialmente explicativa nem descritiva, senão normativa. Podem e devem aprender coisas das ciências da vida e da mente, na medida em que somente uma compreensão realista da natureza humana, considerada sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos, poderá levar-nos a reconstruir as melhores e mais profundas teorias acerca do direito e de sua função na constituição da sociedade.

 

Contudo, será igualmente importante que se tenha o devido cuidado à hora de expressar tal postura, evitando a assunção de que os genes prescrevem o comportamento humano de uma maneira simples, de um sobre o outro. Oxalá fosse tudo tão simples. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar-nos a uma minoria de idade permanente, assim também quem pensa que a natureza é tudo esquece que, a esta altura da história, o conceito de natureza resulta muito complicado: os humanos não são somente o resultado de uma mescla complicadíssima de genes, neurônios e de sinapses senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nosso entorno.

 

Depois, todos os recentes progressos da ciência relativos à natureza humana não constituirão o triunfo de qualquer tipo de reducionismo, como também não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento da natureza humana, por si só, nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Ainda que algum dia cheguemos a compreender profundamente nossa natureza, todos os processos neuronais que subjazem à empatia humana, ao altruísmo, ao livre arbítrio, ao sentido de justiça ou à responsabilidade moral, continuará intacta nossa “perspectiva interna”.

 

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. As ciências da vida e da mente nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a revolução provocada por estes novos conhecimentos cambiarão a imagem que temos do mundo e de nós mesmos, depois de rebaixar uma vez mais o orgulho dos juristas que nos fizeram (e ainda nos fazem) “ter fé” em tantas falsidades. Os novos conhecimentos relativos à compreensão da natureza humana trarão consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da compreensão do fenômeno jurídico, de sua interpretação e aplicação prático-concreta: constituem uma oportunidade para refinar nossos valores e juízos ético-jurídicos, assim como estabelecer o reinventar novos parâmetros ontológicos e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.

 

Estamos firmemente convencidos de que já é chegado o momento de voltar a definir o que é um ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente de aceitar que o homem não pode ser contemplado somente como um ser cultural carente de instintos naturais. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta, podemos pelo menos aduzir novas interpretações para sustentar ou refutar os velhos problemas que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito.

 

O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso resulte tão difícil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, os juristas continuam atados, e que nos cegam ante a evidência de que direito não poderá seguir suportando, por muito mais tempo, seus modelos teóricos elaborados sobre construções especulativas da natureza humana.

 

O objetivo de uma boa formação jurídica deveria ser o de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de fomentar a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver (a viver) com o outro na busca de uma humanidade comum. O modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico e da justiça e, conseqüentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de um direito que há de servir à natureza humana e não ao contrário.

 

 

* Atahualpa Fernandez, Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 

** Marly Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Uma aproximação naturalista ao estudo do Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/uma-aproximacao-naturalista-ao-estudo-do-direito/ Acesso em: 18 abr. 2024