Economia

Capitalismo Democrático X Capitalismo Aventureiro

Pyther Luiz Fontão*
Primeiramente, devemos possibilitar a compreensão dos dois termos suprajacentes, haja vista a possibilidade de se confundir o que de fato cada um deles encerra. Por capitalismo democrático, podemos entender o moderno capitalismo, ou seja, segundo Max Weber, aquela “atitude que busca o lucro racional e sistematicamente”. Para o autor, esse tipo de capitalismo – aqui no sentido do capitalismo que se desenvolveu em moderno capitalismo – “não pode se utilizar do trabalho daqueles que praticam a doutrina da liberum arbitrium indisciplinado, e menos ainda pode usar os homens de negócios que pareçam absolutamente inescrupulosos ao lidar com outros”. Deve, pois, utilizar-se do cálculo rigoroso, dirigido com previsão e atenção para o sucesso econômico a que se almeja. O capitalismo aventureiro, por sua vez, representado pela exploração e impostos, empréstimos de Estado, financiamento de guerras, pirataria, comércio irrestrito – por exemplo, mercados financeiros – etc., valoriza a recompensa imediata – ou em curto prazo – sem grande dispêndio de trabalho.
Consideremos, neste momento, o que de fato entende-se por espírito do capitalismo. É, em suma – embora de todo insuficiente –, aquilo que inculca no indivíduo a idéia de dever que este tem “no sentido de aumentar o próprio capital, assumido como um fim em si mesmo”. O não cumprimento de suas regras é tido como um esquecimento do dever. Pode ser compreendido atualmente – apesar de não serem exatamente a mesma coisa, já que um é a evolução do outro – como espírito do moderno capitalismo, entendido como uma regra de conduta de vida, de caráter ético. A diferença, de fato discreta, está no entendimento daquele como uma audácia comercial, cuja inclinação pessoal é moralmente neutra, enquanto neste há normas e regras de conduta preestabelecidas que devem ser seguidas; o homem é por ele dominado para gerar dinheiro, tendo a aquisição como propósito final de vida. Onde se manifesta, torna o ambiente “capaz de produzir seu próprio capital e suprimento monetário para os próprios fins”.
Na moderna ordem econômica, o ganho de dinheiro é, se feito legalmente, “o resultado e a expressão da virtude e da eficiência em certo caminho”. O sentimento de dever – e obrigação – que é sentido pelo indivíduo, no que concerne à sua carreira e ao conteúdo de sua atividade profissional, constitui a base fundamental da cultura capitalista. Devemos, contudo, observar que o espírito do capitalismo não está necessariamente ligado às práticas capitalistas ou ao capitalismo em si. É, portanto, possível estabelecer relações capitalistas sem que haja a presença daquele; somente do tradicionalismo. Nem devemos confundir espírito do capitalismo, seja moderno ou não, com a fome de riqueza. Segundo Weber, esta sempre existiu e continua existindo em diversas sociedades, sendo inútil tentar comparar o desenvolvimento capitalista com base na intensidade de tal inclinação. Para um profícuo aprofundamento no presente estudo, faz-se necessária a introdução de mais alguns conceitos. Começaremos por racionalidade funcional¹ e racionalidade substancial².
(1) A primeira diz respeito aos atos ou elementos que, articulados com outros, contribuem para a consecução de determinado objetivo preestabelecido. Nesse aspecto, o que há de imprevisível é considerado irracional. Caracteriza-se pelo caráter avalorativo, ou melhor, pela sua independência e indiferença em relação aos valores contidos em uma ação. Corresponde a esta a ética da responsabilidade, que por sua vez está relacionada com a ação racional referente a fins.
(2) A segunda encerra todo ato em si inteligente, ou seja, que se baseia em determinado conhecimento lúcido e autônomo de relações entre fatos. O ato substancialmente racional é dotado de controle sobre impulsos, sentimentos, emoções, preconceitos etc., dispondo de incomensurável acurácia intelectual. Portanto, todo ato que deriva de impulsos, explosões emotivas, superstições etc., nesses termos, é tido como substancialmente irracional. A esta, corresponde a ética do valor absoluto (ou da convicção), que também está relacionada com a ação racional referente a valores. As duas éticas não são necessariamente antagônicas, podendo, até, coexistirem, haja vista que a ação referente a fins é um tipo ideal; inalcançável em absoluto. A ação racional referente a fins é atenta ao imperativo de conformar condições e meios a fins eleitos de forma deliberada. A ação racional referente a valores é ditada pelos valores que a inspiram, sendo indiferente aos resultados. A ação administrativa – e aqui se introduz um novo conceito – é aquela que, segundo Guerreiro Ramos, é “modalidade de ação social, dotada de racionalidade funcional, e que supõe estejam os seus agentes, enquanto a exercem, sob a vigência predominante da ética da responsabilidade”.
Com base no exposto, podemos dizer o capitalismo aventureiro encontra-se totalmente desvencilhado de qualquer ação administrativa? Embora Weber tenha-nos dito que o capitalismo aventureiro é especulativo e, portanto, irracional – pelo menos no sentido de que não sejam necessários cálculos rigorosos e previsões matemáticas –, podemos dizer que ele é, sim, racional, no que concerne a valores (neste ponto, devemos dizer: mais à frente encontraremos uma explicação mais detalhada para o que se pretendeu afirmar com tal caracterização), embora não seja necessariamente indiferente aos resultados. Verificamos, portanto, que nesse tipo de capitalismo o sentimento de dever vem da escolha de fins ideais sem análise de conseqüências. Tendo isso por base, podemos afirmar que não se trata, ao falar de capitalismo aventureiro, de racionalidade funcional – por esta ser independente do conteúdo das ações –, nem de racionalidade substancial – por esta ser despida de preconceitos, sentimentos e emoções, que, em última instância, são baseados em valores –.
Podemos dizer, em uma análise mais profunda, que, como no caso da gigante americana Enron – que faliu devido à imprudência administrativa e a atitudes tidas como imorais de seus gestores e colaboradores –, em que Jeffrey Skilling (CEO da empresa) e outros dirigentes agiram conforme sua fome de riqueza, as ações racionais referentes a valores – no caso, valor é a norma de conduta do espírito do capitalismo segundo o qual se deve “aumentar o próprio capital, assumido como um fim em si mesmo” – tinham, contudo, o intuito de obter lucros; portanto, um fim esperado. Se analisarmos de outra perspectiva, caso as ações sejam concebidas como racionais referentes a fins, no sentido de serem friamente calculadas, de forma sistemática,deliberada etc., o que Weber tinha-nos dito torna-se um complexo de conceitos e formulações segundo os quais o capitalismo aventureiro passa a ser racional, por ter em si a máxima da aquisição de dinheiro – embora a racionalidade não seja a mesma; contudo, há necessariamente análise de conseqüências, haja vista que a perda de dinheiro é sempre indesejada –. O fato é: a partir do momento em que se trabalha com tipos ideais de qualquer elemento figurativo de uma realidade, devem-se levar em consideração também as possíveis interações tipológicas. Para Weber, o capitalismo aventureiro é um empecilho ao desenvolvimento do capitalismo – aqui entendido como o capitalismo que vem evoluindo desde seu surgimento –. Contudo, podemos compreender as atuais bolsas de valores como representativas de centros especulativos nos quais se pode observar o que poderíamos chamar de espírito do capitalismo aventureiro – variação apenas terminológica, salvo alguns princípios que de nada interessam no momento –. Atualmente, as bolsas de valores são responsáveis pela permanência no mercado de muitas empresas, dentre elas a Enron, que só não faliu em tempos anteriores graças ao capital que mantinha em seu nome devido à especulação.
Ainda sobre a supracitada empresa, Weber prescreve a total separação entre capitalismo e “os homens de negócios que pareçam absolutamente inescrupulosos ao lidar com outros”. A permanência de condutas, no cenário capitalista, como a dos traders e dos gestores da Enron, seria totalmente contestada pelo sociólogo alemão. Para concluirmos – embora fossem necessários muitos outros parágrafos para uma abordagem satisfatória do assunto –, algumas frases retiradas do documentário Enron – Os mais espertos da sala, dentre as quais uma é destacada para reforçar o discurso suprajacente:
“Você pode ganhar o mundo… todos os prêmios e troféus, a melhor sala e todos os benefícios, mas pode perder a alma durante o processo”.
“As fitas revelam o desprezo da Enron por qualquer valor; salvo um: ganhar dinheiro”.
“Jeff, você tem um problemão: os traders vão crucificá-lo se acharem que podem lucrar com isso”.
“No fim, os traders comandavam a Enron… os loucos tinham dominado o hospício”
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“As pessoas perderam a noção de moral… ao aceitar que é permitido ser desumano, você é capaz de tudo”.
“A maior lição é o que a Enron pedia aos seus funcionários: pergunte por quê… e, sabe, não me perguntei o suficiente” – Trader da Empresa.
“Onde antes havia muito orgulho, agora não resta nenhum” – Cliff Baxter, exvice-presidente da Enron, em carta suicida.
REFERÊNCIAS
RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro: esboço de uma
teoria geral da administração. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1983.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin
Claret, 2003.
* Pyther Luiz Fontão é acadêmico de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
Administração Empresarial na Fundação Universitária do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG)
Como citar e referenciar este artigo:
FONTÃO, Pyther. Capitalismo Democrático X Capitalismo Aventureiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/economia/capitalismo-democratico-x-capitalismo-aventureiro/ Acesso em: 28 mar. 2024