Direito Tributário

Nova lei do parcelamento. Lei nº 11.941/09

 

 

Sumário: 1 Introdução. 2 Pressupostos constitucionais da medida provisória. 3 Exame da Medida Provisória nº 449/2008 e da Lei nº 11.941/2009 dela resultante pelo prisma constitucional.

 

1 Introdução

Vamos dar início à análise da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, resultante da conversão da Medida Provisória nº 449/2008, que altera a legislação tributária relativa ao parcelamento ordinário de débitos tributários, concede remissão nos casos em que específica, institui regime tributário de transição, e dá outras providências conforme consta de sua ementa.

 

Neste estudo inicial examinaremos a questão da constitucionalidade ou não da Medida Provisória convolada na lei acima referida, que extrapola do âmbito das questões ementadas por conta dos enxertos feitos pelos parlamentares.

 

2 Pressupostos constitucionais da medida provisória

Prescreve o art. 62 da CF:

 

“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.

 

A expressão “em caso de urgência e relevância” está a indicar um acontecimento fático que pela sua importância está a exigir imediata regulamentação normativa, incompatível com o processo legislativo normal.

 

“Relevante”, como está no Dicionário Aurélio é a realidade que sobressai ou ressalta. É, portanto, um fato, um acontecimento anormal. A sua não regulação por um instrumento legal poderá afetar a ordem social. E essa normatização deve ser feita de imediato (urgência), o que torna inviável o processo legislativo normal.

 

E quem pode, em um primeiro plano, avaliar o que é relevante e ao mesmo tempo urgente é o Presidente da República, que detém o poder cautelar geral. Por isso, em princípio, os conceitos de relevância e de urgência decorrem do juízo de oportunidade inserindo-se no campo da discricionariedade de atuação do Presidente da República. Nesse sentido decidiu o STF:

 

“Avanço para dizer que o pressuposto constitucional para essa investidura do Presidente da República em função normativa primária está na ocorrência de um caso, um fato, um acontecimento do mundo do ser (Kelsen) que se revista ao mesmo tempo de, relevância e urgência. Mas um fato urgente e relevante, frise-se no sentido de requerer uma pronta resposta normativo-estatal ……É a medida provisória, portanto, uma regração que o Presidente fica autorizado a baixar para o enfrentamento de certos tipos de anomalia tática. Um tipo de anormalidade – este o ponto central da questão – geradora de instabilidade ou conflito social que não encontra imediato equacionamento nem na Constituição, diretamente, nem na ordem legal já estabelecida. Por isso que demandante de uma resposta normativa que não pode aguardar as formas constitucionais de tramitação dos projetos de lei” (Adin-MC nº 3.964-DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJE nº 55, de 10-4-2008).

 

Contudo, a investidura do Presidente da República em função normativa primária ante um acontecimento fático relevante, a reclamar pronta providência legislativa, não retira o poder de o Legislativo examinar os pressupostos constitucionais referidos no art. 62 caput da CF. Muito ao contrário, prescreve o § 5º desse artigo:

 

“A deliberação de cada uma das casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”.

 

Portanto, antes da apreciação do mérito da medida provisória impõe-se o seu exame prévio quanto ao preenchimento dos requisitos da relevância e da urgência nos termos em que dispuser a Resolução do Congresso Nacional. Nem poderia ser de outra forma, pois a apreciação dos requisitos de relevância e urgência tem caráter político, como já reconheceu o Pleno do STF (Adin-MC nº 1.397-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 27-6-1997).

 

Em princípio não cabe ao Poder Judiciário aquilatar a presença dos requisitos constitucionais da relevância e da urgência invocados pelo Executivo (Adin-MC nº 1.667-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 21-11-1997).

 

Entretanto, a Corte Suprema não tem se furtado ao exame desses pressupostos constitucionais em alguns casos de flagrante desvio de poder do legislador primário.

 

No acórdão da lavra do Min. Moreira Alves admitiu-se o controle judicial em caso de patente excesso do poder de legislar (Adin-MC nº 162-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19-9-1997).

 

O Min. Sydney Sanches, por sua vez, acolheu a tese da inapreciação dos requisitos da relevância e da urgência apenas quando dependem de avaliação subjetiva e não objetiva. Se a relevância ou a urgência evidenciar-se improcedente cabe ao Judiciário pronunciar-se a respeito (Adin-MC nº 1.754-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 6-8-1999; Adin-MC nº 1.717-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 25-2-00).

 

De fato, ao Executivo e ao Legislativo cabe preponderantemente o exame dos requisitos de relevância e de urgência por envolverem apreciação subjetiva pelos critérios da oportunidade e da conveniência, o que envolve um juízo político. Porém, nos casos em que a falta desses pressupostos constitucionais pode ser aferida objetivamente e de plano o Judiciário deve reconhecer o vício legislativo invalidando a medida provisória.

 

Na hipótese de omissão do Legislativo na apreciação prévia da relevância e da urgência, como determina o § 5º do art. 62 da CF, deixando se exercer o seu poder-dever, entendo que cabe ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, passar a examinar cada um dos dispositivos da medida provisória sob o enfoque dos pressupostos constitucionais.

 

Assim, a simples ausência da motivação exigida pelo § 5º, do art. 62, da CF, consistente na indicação clara e precisa de um acontecimento anormal no mundo do ser, como dito, pelo Min. Carlos Britto, é suficiente para a invalidação da medida provisória por abuso legislativo. Se a medida provisória contiver diversos dispositivos versando sobre diferentes matérias exige-se motivação para cada um deles, isto é, devem ser apontados tantos acontecimentos fáticos anormais quantos forem os números de dispositivos cuidando de matérias diversificadas. É que os dispositivos da medida provisória devem guardar relação de pertinência temática com a situação fática anormal objeto de regulamentação normativa. Essa relação de pertinência temática não se confunde com razões de conveniência política do governo. Certamente existem centenas, talvez, milhares de situações que ensejam a conveniência de regulamentação legal, mas que não resultaram de um fato concreto anormal que tenha pego de surpresa o Chefe do Executivo a quem cabe, ordinariamente, a iniciativa de leis (art. 84, III da CF).

 

Concluindo, a medida provisória, introduzida pela Constituição de 1988, desde que utilizada nos exatos limites da autorização constitucional, mostra-se como um instrumento normativo eficaz para resolver situações criadas por acontecimentos anormais no mundo fenomênico, que exigem normatização imediata sob pena de causar danos à ordem social.

 

Por isso, Leon Frejda Szklarowsky afirma “que as medidas provisórias são um mal necessário, para permitir ao Executivo legislar, como se fosse o Legislativo, nas hipóteses constitucionais, consoante ensinamentos da melhor doutrina e do direito comparado, em vista da necessidade de suprir o exercício da prerrogativa do Poder Legislativo, em circunstâncias anômalas” (Medidas provisórias – Instrumento de governabilidade. São Paulo: Editora NDJ, 2003, p. 185).

 

3 Exame da Medida Provisória nº 449/2008 e da Lei nº 11.941/2009 dela resultante pelo prisma constitucional

A Medida Provisória nº 449/2008 não preenche os requisitos constitucionais da relevância e da urgência, pelo que é de manifesta inconstitucionalidade. Por conseguinte, padece do mesmo vício, aliás, agravado pelos enxertos dos parlamentares, a Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, dela resultante.

 

Consta de sua ementa que ela “altera a legislação tributária federal relativa ao parcelamento ordinário de débitos tributários, concede remissão nos casos em que especifica, institui regime jurídico de transição, e dá outras providências”.

 

Entretanto, a medida provisória sob exame contém 66 artigos cuidando de cerca de 40 temas distintos que não guardam relação de dependência entre si. Grande parte de seus dispositivos, como o do art. 31, que versa sobre transação, sequer consta da ementa. A Lei Complementar nº 95/98 exige a clara explicitação, sob a forma de título, do objeto da lei (art. 5º), não bastando inserir em sua ementa a expressão “e dá outras providências”.

 

Essa é uma medida provisória polivalente destinada a regular cerca de 40 situações decorrentes de “acontecimentos fáticos anormais”. Versa sobre as seguintes matérias, dentre outras: parcelamento; remissão; regime tributário de transição; processo administrativo tributário; obrigações tributárias acessórias; fiscalização, lançamento, compensação, base de cálculo e alíquotas de contribuições sociais; preços de transferência; IOF; alteração da denominação do Conselho de Contribuintes; prescrição e decadência etc. Muitas dessas matérias como a remissão, a transação e a alteração da denominação do Conselho de Contribuintes para Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, dentre outras, longe estão de preencher os pressupostos constitucionais de relevância e de urgência, o que pode ser aferido objetivamente, independentemente de qualquer juízo de valor que implique apreciação subjetiva. Afinal, qual ou quais os fatos anômalos relacionados com essas matérias?

 

A Exposição de Motivos não aponta e nem se descobre. É verdade que na parte final dessa exposição ficou consignado que “em decorrência da crise financeira internacional, são indispensáveis as medidas de incentivo destinadas ao Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES, relativas ao aumento de sua capacidade de financiamento destinado ao setor privado”.

 

A crise financeira internacional certamente é um fato anormal que cria problemas na ordem econômico-social e que merece urgente edição de medidas de incentivo a que aludem as justificativas do governo. Só que essas medidas não foram previstas na Medida Provisória nº 449/2008 editada pelo legislador palaciano.

 

Quase a totalidade dos dispositivos da medida provisória sob exame está fundamentada na conveniência meramente político-administrativa do governo na implementação de medidas aí previstas. É o que se depreende da própria Exposição de Motivos. Nada têm a ver com a solução de uma determinada situação decorrente de um fato anormal que ocorreu no mundo da realidade. O único fato anormal, a crise financeira internacional, mencionada na justificativa governamental, que guarda relação de pertinência com os pressupostos constitucionais para a edição de medida provisória, foi desconsiderado no momento da normatização pelo legislador primário.

 

A Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, que resultou do projeto de conversão da MP nº 449/2008, por sua vez, contém 79 artigos por conta das emendas feitas pelos parlamentares, implicando alteração da ementa que passou a ocupar meia página.

 

Não se discute o mérito dessas emendas aprovadas, muito delas benéficas aos contribuintes. Porém, há que se ponderar que o fato de o Legislativo ter competência para apreciar a relevância e a urgência não significa que possa, por meio de carona, introduzir matérias novas não previstas no texto normativo original, pois isso implica burla ao art. 84, XXVI da CF que confere privativamente ao Presidente da República a faculdade de “editar medida provisória com força de lei, nos termos do art. 62”.

 

Qualquer emenda apresentada há de versar sobre a matéria objeto de previsão na medida provisória editada pelo Executivo, sob pena de indeferimento sumário pela Comissão competente do Legislativo, conforme disposto no ato interno do Congresso Nacional (Resolução).

 

O fato de o Executivo ter sancionado dispositivo estranho, inserido no projeto de conversão, não purga o vício de iniciativa. O que é privativo do Chefe do Executivo não pode ser exercitado por outrem sob ulterior confirmação do primeiro.

 

Concluindo, a Lei nº 11.941/2009 agravou a inconstitucionalidade existente na MP nº 449/2008 no que tange ao atendimento de pressupostos constitucionais da relevância e da urgência. Contudo, no mérito introduziu sensíveis melhoras no objeto principal do texto legislativo original, qual seja, o parcelamento de débitos tributários, antes limitado ao irrisório valor de R$10.000,00.

 

 

* Kiyoshi Harada, Jurista e sócio do escritório Harada Advogados Associados.

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Nova lei do parcelamento. Lei nº 11.941/09. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/nova-lei-do-parcelamento-lei-no-1194109/ Acesso em: 19 abr. 2024