Direito Tributário

Reflexões a respeito da jurisprudência do STJ na eleição da sujeição passiva do IPTU

José Américo Veras de Souza

RESUMO

O art. 34 do Código Tributário Nacional aponta 3 (três) possíveis contribuintes do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana). Destarte, o Superior Tribunal de Justiça proferiu, por intermédio da Súmula 399, o entendimento de que “Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU”, contemplando qualquer das situações previstas no referido dispositivo legal. Na contramão desta jurisprudência, pacificou-se no âmbito do próprio tribunal que quando a lei ordinária municipal que regulamente seu próprio IPTU for omissa na fixação do sujeito passivo, ficará a autoridade administrativa incumbida de optar por qualquer das figuras mencionadas visando a facilitar o procedimento da arrecadação. Desta feita, pretende-se estudar a compatibilidade entre a aludida jurisprudência e os princípios decorrentes do regime republicano a partir da análise de 3 (três) ângulos diferentes: o funcionamento das regras de competência tributária, os corolários da legalidade-princípio e os pressupostos para a fenomenologia da incidência tributária.

Palavras-chave: IPTU, Eleição de contribuinte, Superior Tribunal de Justiça, Competência Tributária, Legalidade, Hipótese de Incidência.

ABSTRACT

The article 34 of the National Tax Code points out 3 (three) possible tax payers to the IPTU (Tax over Urban Building and Territorial Property). Therefore, the Superior Court of Justice uttered, through the 399 precedent, the understanding that “
It is up to the municipal legislation to establish the tax payer of the IPTU”, contemplating any of the situations provided for in the mentioned legal provision. In opposite direction, it remained pacified in the Superior Court of Justice that when an ordinary municipal law that regulates its own IPTU be silente about the passive subject, the administrative authority will be tasked to choose between any of the mentioned figures aiming to make the collection process easier to themselves. So it is intended to study the compatibility between the mentioned jurisprudence and the principles originated from republican regime through the analysis of 3 (three) different angles: the way that the tax competence’s rules work, the implications of the legality-principle and the requirements to the tax incidence fenomenon.

Keywords: IPTU, Tax payer election, Superior Court of Justice, Tax Competence, Legality, incidence hypothesis.

SUMÁRIO

1 Introdução

2 Teoria das Normas Jurídicas

2.1 Princípios Constitucionais e interpretação

3. Estatuto do contribuinte

3.1 Princípios Republicano e Federativo

4. A competência tributária para estabelecer o arquétipo do IPTU

5. A legalidade tributária

6. A hipótese de incidência do IPTU

6.1 A incidência normativa

6.2 A hipótese de incidência tributária segundo a doutrina de Geraldo Ataliba

7. Conclusões

Referências

1 INTRODUÇÃO

O IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), de competência dos Municípios, conforme disciplina o art. 156, I da Constituição, é um dos gravames mais debatidos pela doutrina brasileira. Seu caráter descentralizado, vale dizer, o fato de depender de lei ordinária de seu respectivo Município para ser regulado, cria algumas situações controversas, acarretando em discussões jurídicas que comumente terminam por abordar a dogmática normativa de variados dispositivos do Sistema Tributário Nacional.

Nesse contexto, uma das questões ainda não bem definidas é a da eleição do sujeito passivo no lançamento do IPTU. Têm-se no art. 34 do CTN (Código Tributário Nacional) uma dicção que traz três possíveis figuras: “Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.

Portanto, restou pacificada no âmbito jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, por meio de procedimento previsto para os Recursos Repetitivos, a tese de que, caso o legislador municipal eleja como contribuinte do IPTU o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título, a autoridade administrativa poderá optar por um ou por outro de acordo com seu critério de facilidade no procedimento de arrecadação (RESP n.º 979.970/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 18.6.2008; AgRg no REsp 1022614/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJ de 17.4.2008; REsp 712.998/RJ, Rel. Min.  Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ 8.2.2008; REsp 759.279/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ de 11.9.2007; REsp 868.826/RJ, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 1º-8-2007; REsp 793073/RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 20.2.2006; REsp 475.078/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 27.9.2004; REsp 1110551/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell, Primeira Seção, julgado em 10-06-2009, DJe 18-06-2009).

Desta feita, o presente estudo visa criticar a jurisprudência do STJ a partir do exame do sentido e alcance das normas de competência tributária, as implicações lógicas do mandamento constitucional tributário da legalidade, bem como o peso dos critérios da regra-matriz de incidência tributária ou aspectos da hipótese de incidência fiscal. Analisa-se, enfim, a aplicação da segurança jurídica na atividade da tributação.

Preliminarmente, se faz necessário analisar a organização do direito positivo, bem como os objetivos de cada uma de suas espécies normativas para a melhor compreensão dos institutos acima mencionados.

2 TEORIA DAS NORMAS JURÍDICAS

Conforme a doutrina do professor Paulo de Barros Carvalho, o direito positivo consiste no complexo de normas jurídicas válidas num dado país, estando vertido em linguagem prescritiva, uma vez que se volta para a disciplina do comportamento humano no quadro de relações de intersubjetividade. As regras do direito existem, pois, para organizar a conduta das pessoas, umas com relação às outras. Desta feita, o Direito não tem interesse pelos problemas intrasubjetivos, a não ser que esse elemento interior e subjetivo se converta em comportamento exterior e objetivo.

É de se perceber, portanto, que as proposições normativas se dirigem para a região material da conduta. Mas o que vem a ser norma jurídica? Carvalho (2017) a aponta como “a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo” ou “o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito” (págs. 40 e 41). Outrossim, Humberto Ávila (2013) assevera: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (pág. 33).

Um relevante aspecto das normas jurídicas, conforme doutrina Ávila, é que não existe correspondência entre texto e norma, de forma que, onde houver o primeiro, deverá haver o segundo. É possível que um texto dê cabo à várias normas e vários enunciados deem, em conjunto, origem à uma só norma. Igualmente, certos dispositivos podem não dar origem à norma alguma. Á título exemplificativo, não há dispositivo constitucional ou legal que estatua diretamente os princípios da segurança jurídica ou da certeza do Direito. Por outro lado, não emana norma jurídica o dispositivo que prescreve que a interpretação da legislação tributária nos conformes do capítulo específico do Código Tributário Nacional referente à interpretação e integração da legislação tributária (Capítulo IV).

Contudo, não existe apenas o conceito genérico de norma jurídica. Como observou Ronald Dworkin ao criticar o positivismo (“general attack on Positivism”), as normas jurídicas se dividem em regras e princípios. O jurista norte-americano assinalou que as regras são aplicadas segundo o método “tudo ou nada” (all-or-nothing), significa dizer, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou esta será válida de modo que sua consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. Havendo colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, por seu turno, vão em sentido contrário, porquanto não determinam absolutamente a decisão, mas apenas fornecem fundamentos a serem conjugados com outros. Daí surge sua afirmação de que os princípios possuem uma dimensão de peso (dimension of weight). Em hipótese de colisão de princípios, aquele com peso maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade. 

A partir desta observação, viabilizou-se um estudo mais aprofundado acerca do assunto. Segundo Humberto Ávila, as regras são normas imediatamente descritivas, porquanto visam promover a adoção da conduta descrita. Sempre centradas na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, a aplicação das regras exige uma avaliação da correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e o conceito do fato.

Quanto ao modo de contribuição para a decisão, Ávila classifica as regras como normas preliminarmente decisivas e abarcantes, na medida em que, a despeito da pretensão de abranger todos os aspectos relevantes para a tomada de decisão, têm a aspiração de gerar uma solução específica para o conflito entre razões. Por exemplo, o art. 150, VI, “d” da Constituição Federal de 1988 que exclui a competência das pessoas políticas para instituir impostos sobre livros, jornais e periódicos predetermina quais são os objetos afastados do poder de tributar. Nesse sentido, tem a pretensão de determinar que somente os livros, os jornais e os periódicos não podem ser objeto de tributação, afastando, de antemão, quaisquer dúvidas acerca da inclusão de outros objetos no seu âmbito de aplicação. Tal não ocorreria se o constituinte, ao invés de predeterminar os objetos abrangidos pela imunidade, estabelecesse que ficariam excluídos da tributação “todos” os objetos imprescindíveis à liberdade de manifestação do pensamento ou da arte.

Por seu turno, os princípios são normas imediatamente finalísticas, porquanto visam promover um estado ideal de coisas, tendo como objetivo mediato a adoção da conduta necessária. Sua aplicação demanda uma avaliação da correlação entre o estado ideal de coisas almejado e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. Embora relacionados à valores, com estes os princípios não se confundem, alude Ávila.

São, ademais, normas complementares e parciais quanto à sua contribuição para uma tomada de decisão, complementa Humberto Ávila, haja vista abrangerem apenas parte dos aspectos relevantes para se tomar a decisão. Não têm, pois, pretensão de gerar solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão.

Na doutrina do professor Paulo de Barros Carvalho, consistem os princípios em normas carregadas de valores que a sociedade deseja alcançar e que, para tanto, as estruturas normativas existentes se projetam sobre a realidade social, para ordená-la no que concerne as relações interpessoais, canalizando o fluxo das condutas em direção a tais preceitos. E ainda complementa:

“’princípios’ são ‘normas jurídicas’ de forte conotação axiológica. É o nome que se dá a regras do direito positivo que introduzem valores relevantes para o sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica”.

Já segundo os apontamentos de Hugo de Brito Machado, é de grande importância a distinção entre princípios e regras, enquanto espécies normativas, sobretudo para esclarecer a impossibilidade de relativização das regras e a relevância ou fundamentabilidade dos princípios.

Nesse contexto, Hugo de Brito Machado aponta que existem variados critérios para disciplinar a distinção entre princípios e regras. Assim, para o autor, a questão que se coloca é saber qual é o critério mais relevante.

Nessa senda, Machado considera, por exemplo, que a legalidade tributária é uma regra, na medida que não admite nenhuma forma de relativização, e é, ao mesmo tempo, um princípio, haja vista ter enorme importância em todo o ordenamento jurídico.

2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E INTERPRETAÇÃO

Aponta Roque Antonio Carrazza que há princípios constitucionais, legais e até os infralegais. Dentre eles, os constitucionais são os de maior relevância, porquanto consagram valores, muitos dos quais inscritos no “Preâmbulo” do Diploma Constitucional, razão pela qual influem na interpretação e aplicação dos atos normativos. Assim, sobrepairam aos outros princípios e regras do ordenamento jurídico, inclusive no exercício da competência tributária.

Seguindo o raciocínio de Carrazza, os princípios constitucionais demandam estrita observância, dado que, tendo uma amplitude mais abrangente, sua desobediência desagua em consequências muito mais danosas ao sistema jurídico que o descumprimento de uma simples regra (mesmo que constitucional). São os princípios que determinam os pontos de apoio normativos para a boa aplicação do Direito. Não há que se falar em boa interpretação se, direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio constitucional.

Deveras, Roque Carrazza entende que a Carta Magna, além de ser o documento que funda e legitima todo o sistema normativo, é um parâmetro hermenêutico de construção e realização do Direito. Interpretar o Direito consoante o Texto Magno leva necessariamente à interpretação mais adequada. Logo, a interpretação segundo os ditames constitucionais é o principal instrumento de superação de conflitos entre normas jurídicas de qualquer nível hierárquico.

Citando o saudoso Ministro da Suprema Corte Carlos Ayres Britto, Carrazza infere que o exegeta deve ordenar as normas constitucionais em grupos de fundamentação unitária, formando sistemas e subsistemas (como o tributário). Daí decorre a importância do método exegético sistemático, com o qual o intérprete é levado às ideias-matrizes das regras singulares, vetores de todo o conjunto mandamental. As normas jurídicas devem ser sempre interpretadas e aplicadas de modo consentâneo com fundamentação nos princípios constitucionais. Assim, por exemplo, a regra do art. 146 da Constituição, que disciplina o uso da lei complementar em matéria tributária, só encontra real dimensão quando devidamente cotejada com os princípios federativo e da automia municipal e do Distrito Federal. Tal método de interpretação leva à conclusão de que, mesmo a pretexto de veicular “normas gerais em matéria de legislação tributária”, não pode interferir no modo pelo qual os entes tributantes disciplinam a criação e arrecadação dos tributos de suas competências.

Destarte, Carrazza conclui que as normas constitucionais que veiculem direitos fundamentais devem receber a interpretação que maior efetividade lhes empreste (será conferido o sentido que mais prestigie os direitos fundamentais).

Este raciocínio, assinala o autor, também vale para a tributação. Na esfera do direito tributário, os princípios são sempre postos em evidência, de modo a se falar que eles moldam, interferem e, em certo grau, até antecipam o conteúdo das leis tributárias. Isso significa dizer que os dispositivos que tratem, ainda que indiretamente, da atividade de tributar só encontram sua real dimensão quando conjugados com os princípios do ordenamento constitucional.

Doravante, as normas infraconstitucionais tributárias, para que tenham validade, devem passar pelo crivo dos mandamentos constitucionais, de modo que o contribuinte somente se sujeite à lei tributária coerente com o conteúdo material dos grandes princípios constitucionais.

3 ESTATUTO DO CONTRIBUINTE

Vencidos os conceitos relativos às normas jurídicas, adentra-se na seara tributária para analisar as normas constitucionais que balizam a atividade da tributação. Nesse diapasão, preciosa a lição do professor Roque Antonio Carrazza ao discorrer sobre a noção do “estatuto do contribuinte”. Para o autor, os direitos fundamentais amparam o contribuinte contra os Poderes do Estado, mormente o Legislativo. Os direitos consagrados no art. 5º da Constituição da República são tão ou mais relevantes do que os recebidos pelas entidades tributantes para instituir as exações. Daí a inconstitucionalidade das normas tributárias que impeçam ou tolham o pleno desfrute dos direitos fundamentais dos contribuintes. Tais direitos fundamentais, no que diz respeito à tributação, formam o estatuto do contribuinte.

Desse modo, o estatuto do contribuinte exige que a tributação, livre de qualquer arbitrariedade, se desenvolva dentro dos limites constitucionalmente traçados, realizando, em última análise, a ideia de Estado de Direito.

Destarte, não podem as pessoas políticas, por exemplo, criar leis tributárias que gerem embaraços abusivos ao livre exercício do trabalho (art. 5º, XIII). Tampouco podem compelir os contribuintes a se associarem ou a permanecerem associados (art. 5º, XX). Neste mesmo sentido, os tributos devem ser criados ou aumentados pelo Poder Legislativo, vale dizer, devem ser aprovados pelos representantes dos contribuintes (democraticamente eleitos por estes), concretizando, por conseguinte, a ideia de autotributação.

Seguindo a linha de raciocínio do professor Roque Carrazza acima evidenciada, inevitável concluir ser incompatível com a ideia de “estatuto do contribuinte” que o Fisco tenha margem de liberdade suficiente para escolher quem seja o contribuinte de uma exação, segundo seu critério pessoal de conveniência.

3.1 PRINCÍPIOS REPUBLICANO E FEDERATIVO

Sabendo-se que a atividade da tributação só pode ser desenvolvida em consonância com as disposições constitucionais, viabilizando-se a dignidade do contribuinte e concretizando, em última análise, a ideia de Estado de Direito, se passa a analisar os princípios mais relevantes não só para o Direito Tributário como também para todo o ordenamento jurídico, quais sejam o princípio republicano e o federativo.

A relevância destes institutos já é evidenciada pelo professor Geraldo Ataliba quando este assevera que se tratam de princípios que iluminam todas as normas o ordenamento jurídico:

“Como princípio fundamental e básico, informador de todo o nosso sistema jurídico, a ideia de República domina não só a legislação, como o próprio Texto Magno, inteiramente, de modo inexorável, penetrando todos seus institutos e esparramando seus efeitos sobre seus mais modestos escaninhos ou recônditos meandros.

Tal é sua importância no contexto do nosso sistema, tão dominadora sua força, que influi, de modo decisivo, na interpretação dos demais princípios constitucionais e, com maior razão, de todas as regras constitucionais. A fortiori, todas as leis devem ter sua exegese conformada às suas exigências, inclusive as leis constitucionais, a começar do próprio Texto Magno”.

Ataliba aponta que foram lógica e cronologicamente fixados como basilares por virem mencionados em primeiro lugar (art. 1º) nas constituições republicanas. Ademais, no art. 60, §4º da Constituição Federal de 1988, arrolou o constituinte matérias substanciais que contextualizam o princípio republicano, deixando claro ao intérprete o alcance do princípio e do preceito que o protege. São, conseguintemente, enfatizados, reforçados e assegurados até as últimas consequências.

A síntese do conceito de República é dada pelo professor Roque Antonio Carrazza: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.

Logo, ainda de acordo com a concepção de Carrazza, numa República, longe de ser senhor dos cidadãos, o Estado é o protetor supremo dos seus interesses materiais e morais. Representa, pois, um verdadeiro penhor das liberdades dos indivíduos.

Aponta o professor Geraldo Ataliba que a melhor maneira de assegurar o regime republicano representativo, com seus indispensáveis ingredientes de responsabilidade e igualdade ou isonomia jurídica é a tripartição de poderes. Trata-se de formulação feita por Montesquieu que dividiu a atividade exercida pelo Estado em três: legislativa, executiva e jurisdicional. A partir desta noção, o Estado só pode agir concretamente se, em primeiro lugar, disciplinou a matéria de modo geral, explicitando as regras para o exercício da própria atividade, bem como os seus limites.

Engendra, portanto, um sofisticado mecanismo de check and balances, o qual realiza o postulado de que “o poder contenha o poder”, assinala Ataliba.

No contexto da tripartição dos poderes, sob a ótica política, Geraldo Ataliba aponta a supremacia do Poder Legislativo sobre os demais, na medida que aquele produz a “lei” e estes a aplicam:

“Deveras, esta é a mais nobre, a mais elevada e a mais expressiva de todas as funções públicas. Quem pode fixar genérica e abstratamente, com força obrigatória, os preceitos a serem observados não só pelos cidadãos, como pelos próprios órgãos do estado, evidentemente enfeixa os mais altos e os mais expressivos dos poderes”. (1968, pág 21).

Como corolário, é fundamentalmente no exercício da atividade da tributação que a ideia de República deve predominar, para que contra este mesmo povo não se cometam injustiças ou arbitrariedades, afirma Carrazza.

O mesmo afirma que, apesar da dificuldade de se evidenciar quando uma exação afronta o princípio republicano, a exigência constitucional ainda existe, de forma que a República reconhece a todos os indivíduos o direito de só serem tributados em função do superior interesse estatal. Vale dizer, os tributos só podem ser criados e exigidos à luz de razões públicas.

Exsurge também da República o princípio federativo, o qual o saudoso professor Geraldo Ataliba aponta como a autonomia recíproca entre as pessoas políticas, sob a égide da Constituição. Implica esse princípio na igualdade jurídica entre os entes federativos, traduzida pelo rígido Diploma Constitucional, cuja principal função, nesse contexto, é discriminar as competências de cada uma, de modo a evitar violações de autonomias por qualquer das entidades.

4 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA ESTABELECER O ARQUÉTIPO DO IPTU

Como dito, o Texto Magno cuidou de traçar competências legislativas entre os entes federativos para evitar choques ou conflitos no exercício de suas autonomias, concretizando, em última instância, a isonomia entre as pessoas políticas da federação. Partindo desta premissa, o professor Roque Antonio Carrazza afirma que a competência tributária consiste em corolário lógico do princípio federativo que rege o Estado brasileiro, de modo que a competência tributária nasce da necessidade de harmonia entre os entes federativos.

Carrazza a conceitua como a aptidão para criar, in abstracto, tributos pela via legislativa. Desta feita, o “criar tributos” consiste em descrever todos os elementos essenciais da norma jurídica tributária. Considera que os elementos essenciais aqueles que influenciem no an e no quantum do tributo: sua hipótese de incidência, seus sujeitos ativo e passivo, a base de cálculo e a alíquota. “Estes elementos essenciais só podem ser veiculados por meio de lei”.

Conforme argumenta Roque Carrazza, a competência tributária esgota-se na lei. Uma vez editada, não há mais que se falar em competência tributária, mas somente em capacidade tributária ativa, isto é, o direito de arrecadar o valor do tributo após a ocorrência do fato imponível. Conseguintemente, a competência tributária não sai da esfera do Poder Legislativo.

Na compreensão do professor Paulo de Barros Carvalho, a competência legislativa significa a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas para expedir regras jurídicas de forma a inovar o ordenamento jurídico.

Em sentido semelhante ao do professor Roque Carrazza, Carvalho também assevera que, à luz do princípio da legalidade – disciplinado no art. 5º, II da Constituição da República – a edição de normas jurídicas inaugurais deve se dar, exclusivamente, por intermédio de lei (em sentido lato).

Assim, conclui Paulo de Barros Carvalho:

“A competência tributária é, em síntese, uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes das quais são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Configura tema eminentemente constitucional. Uma vez cristalizada a delimitação do poder legiferante, pelo seu legítimo agente (o constituinte), a matéria dá-se por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura em nível infraconstitucional”.

Doravante, uma das características mais marcantes da competência tributária é a sua indelegabilidade. Tal aspecto determina que a competência tributária não pode ser transferida, quer no todo, quer em parte, ainda que por meio de lei, pontua Carrazza. Esta determinação reforça a noção republicana de que a competência tributária não consiste em um patrimônio do ente federativo que o titulariza. A pessoa política não é senhora do poder tributário, mas titular da competência tributária, submetida ao regramento constitucional. Do contrário não poderia ser, afinal, o exercício da competência tributária tem o condão de submeter terceiros à obrigação que não consentiram individualmente, não sendo compatível com o valor de República que pessoa diferente dos representantes eleitos pelos contribuintes a exercesse.

Roque Carrazza alerta também que nem mesmo no âmbito da pessoa política o Poder Legislativo (representante mais direto do povo) pode delegar a competência tributária aos demais Poderes. Deste modo, é de se concluir que não é constitucional que uma decisão judicial (Poder Judiciário) ou um ato administrativo (Poder Executivo) estabeleçam ou corrijam os elementos essenciais do tributo. Esta tarefa cabe unicamente ao Poder Legislativo.

Nesse diapasão, diante das considerações acima feitas, é de se concluir que, no específico caso da jurisprudência acerca da eleição da sujeição passiva do IPTU (narrada no capítulo de introdução), existe flagrante inconstitucionalidade. O estabelecimento de elementos essenciais do tributo – dentre os quais se encontra a eleição do sujeito passivo da obrigação do IPTU – é matéria de competência municipal, devendo esta pessoa política, por meio de lei ordinária municipal que regule o seu IPTU, determinar especificamente o contribuinte do gravame dentre as figuras do proprietário, o titular do domínio útil ou o possuidor a qualquer título.

Verifica-se que não estabelecer especificamente o contribuinte do IPTU e permitir que a escolha seja feita pelo Fisco configura clarividente delegação de parcela da competência tributária, constitucionalmente outorgada ao Poder Legislativo municipal e à mais ninguém.

Nesse sentido, o teor da Súmula 399 do Superior Tribunal de Justiça dispensa maiores explanações:Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU”, não a Fazenda municipal.

Resta, outrossim, violada a republicana tripartição dos poderes, vez que, no caso de omissão do legislador municipal, o Fisco (Poder Executivo) cuida de determinar a sujeição passiva do IPTU, função que pertence, consoante os ditames da Constituição Federal, à Câmara Municipal dos Vereadores (Poder Legislativo). Em conclusão e em última análise, a referida jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é incompatível com o ideal de Estado de Direito.

5 A LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

Outro corolário do regime republicano apontado por Geraldo Ataliba é que se o povo é o titular da res publica e se o Estado é mero administrador, a vontade do povo, materializada na vontade estatal, deve ser clara, solene e inequivocamente expressa. Trata-se da função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a vontade deste.

Aponta que, por via de consequência, não há que se falar em compulsoriedade da vontade do Estado sem o devido amparo legal. “Se só a lei obriga, tudo que não seja lei não obriga, salvo as exceções expressas, que devem ser restritivamente interpretadas”.

Nesse sentido, o legislador constituinte originário tratou de estabelecer no inciso II do art. 5º do Texto Magno que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Esta lei, conforme dispõe Ataliba, há de ser abstrata, isonômica, impessoal, genérica e irretroativa (quando crie ou agrave encargos ou ônus). Evita-se, portanto, arbítrios ou caprichos estatais e assegura-se ao povo proteção à sua liberdade individual.

Como se não bastasse o dispositivo da regra genérica da legalidade, o legislador constituinte originário tratou de reforçar especificamente a impossibilidade jurídica da obrigação de pagar tributo ou cumprir dever instrumental tributário sem que sua criação tenha respaldo legal, por meio do art. 150, I do Diploma.

Conforme explicita o professor Roque Antonio Carrazza, a ideia da legalidade na atividade estatal de tributar encerra a noção de “autotributação”. Ao contrário do que acontecia no passado, em que a tributação era exercida de maneira tirânica, foi com o surgimento dos Estados de Direito, moldados pelo valor de República, que começou-se a assegurar o “império da lei” (o governo da lei, e não dos homens), como expressão da vontade popular.

Desse modo, a lei, expressão da vontade geral do povo, é o instrumento utilizado pela sociedade que, por intermédio dos seus representantes imediatos (os legisladores), se autorregula, emanando normas que cercearão as liberdades e propriedades de seus próprios membros, tendo como finalidade atingir o bem comum, expressa Carrazza. De tal forma, a ideia de autotributação se manifesta no consentimento das pessoas, através de seus representantes, de suportar determinados gravames fiscais.

Pois bem, o enunciado constitucional segundo o qual às entidades tributantes “é vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” não emana uma norma só. Na verdade, ele é ponto de partida para várias normas jurídicas, revelando a multidimensionalidade da legalidade tributária, conforme ensinado pelo professor Humberto Ávila.

Esta multidimensionalidade, conforme o autor revela, se traduz no fato de a legalidade tributária poder ser legalidade-regra, legalidade-princípio ou legalidade-postulado.

A legalidade-regra condiciona a validade da criação ou aumento dos tributos à observância de procedimento que culmine com a aprovação de uma fonte normativa específica – qual seja a lei. Em outros falares, trata-se da exigência de comportamento à ser adotado pelo Poder Legislativo, bem como pelo o Poder Executivo no que diz respeito à parte regulamentar, pontifica o autor.

Sobre a legalidade-princípio, destaca que esta norma determina como devida a realização dos valores de liberdade e segurança jurídica, sem prescrever comportamentos específicos para a realização do ideal. Significa dizer que a legalidade-princípio impõe o dever de buscar um ideal de previsibilidade e determinabilidade para o exercício das atividades do contribuinte.

Por fim, Ávila aponta que a legalidade-postulado vincula a interpretação e a aplicação à lei e ao Direito. Exige, pois, do aplicador a fidelidade aos pontos de partida estabelecidos pela própria lei.

É, portanto, na dimensão normativa de princípio que a legalidade tributária, com a própria previsão de comportamento do Poder Legislativo, termina, por via oblíqua, prestigiando o valor da previsibilidade dos atos do Estado, e passando a exigir a adoção de condutas de forma independente, como aqueles relacionados à determinação das hipóteses de incidência dos tributos, assevera Humberto Ávila.

Nesse ponto, preciosa a lição do professor Paulo de Barros Carvalho:

“O veículo introdutor da regra tributária no ordenamento há de ser sempre a lei (sentido lato), porém o princípio da estrita legalidade diz mais do que isso, estabelecendo a necessidade de que a lei adventícia traga no seu bojo os elementos descritores do fato jurídico e os dados prescritores da relação obrigacional. Esse plus caracteriza a tipicidade tributária, que alguns autores tomam como outro postulado imprescindível ao subsistema de que nos ocupamos, mas que pode, perfeitamente, ser tido como uma decorrência imediata do princípio da estrita legalidade” (2017, pág. 180).

Afinado nesse mesmo diapasão, não poderia ter dito melhor o professor Roque Antonio Carrazza:

“Para afugentar, desde já, possíveis dúvidas, é bom dizer que criar tributo não é simplesmente nominá-lo, mas descrever abstratamente sua hipótese de incidência, seu sujeito ativo, seu sujeito passivo, sua base de cálculo e sua alíquota. Em suma, é editar, pormenorizadamente, a norma jurídica tributária. Esta norma, por injunção do princípio da legalidade, repitamos, deve ser, no mais das vezes veiculada por meio de lei ordinária…

Portanto, as exigências do princípio da legalidade tributária somente são atendidas quando a lei delimita, concreta e exaustivamente, o fato tributável” (2017, pág. 286).

Por conseguinte, Humberto Ávila conclui que o texto normativo deve especificar da maneira mais intensa o possível o conteúdo da relação obrigacional tributária, isto é, seus elementos essenciais, como a sujeição passiva, a base de cálculo e a alíquota, concretizando o valor da determinabilidade: a possibilidade estabelecer com precisão, o que se pode definir com exatidão dos termos da obrigação fiscal.

Exsurge, portando, a tipicidade tributária, a qual Alberto Xavier pontifica que se trata da expressão da legalidade quando manifestada na forma de uma reserva absoluta de lei, não sendo, portanto, princípio autônomo da legalidade. Isto porque a tipicidade disciplina que os elementos essenciais do tributo devem ser descritos em lei, subtraindo do órgão de aplicação do direito qualquer arbítrio ou critério subjetivo para eleger os fatos tributários, em especial o critério de fixação da medida do tributo. Os contornos essenciais do tipo tributário não devem ser criados pelo costume ou por regulamentos. Logo, em síntese, os objetos da tipificação são os fatos e os efeitos tributários.

Dito em outros termos, deve o legislador tributário deixar expressos os pressupostos da obrigação tributária mediante uma formulação precisa de cada um de seus elementos, sob pena de incorrer em ilegitimidade constitucional da concessão de margem de discricionariedade em matéria tributária. Enfim, o princípio da tipicidade tributária impõe ao legislador que as normas instituidoras de tributos devem ser claras e inequívocas, de forma que seu conteúdo, fim e âmbito sejam tão determinados e delimitados que o contribuinte possa prever e medir objetivamente o encargo tributário a ser suportado, ensina Alberto Xavier.

O autor também afirma que a tipicidade se revela compatível com as modernas políticas econômicas, sendo o que melhor se coaduna com os princípios de uma livre economia de mercado.

Na livre iniciativa, descreve o jurista, os planos econômicos são elaborados pelos empresários para um dado período e nos quais se realiza uma previsão dos custos de produção, do volume de investimentos necessários. Tal previsão deve se assentar na presunção de um mínimo de condições de estabilidade. Estas condições de estabilidade pressupõem, por seu turno, segurança quanto aos elementos que a afetam. Partindo desse pressuposto, Alberto Xavier destaca que o volume dos tributos representa para a atividade econômica elevada porcentagem de seus custos de produção e determinam as disponibilidades que representam procura para os produtos de uma empresa. A falta da legalidade-princípio – e seus corolários – representaria condições adicionais de insegurança jurídica e econômica, forçando uma constante revisão dos planos individuais a qual o mercado não resistiria. Pelo contrário, um sistema apoiado na reserva absoluta de lei em matéria tributária confere aos contribuintes a capacidade de prever com objetividade seus encargos tributários, fornecendo, pois, segurança jurídica da qual necessita o mercado.

Em conclusão, Xavier argumenta que a livre iniciativa pressupõe uma rígida fixação legal dos elementos essenciais do tributo, conferindo uma simples e objetiva previsão dos encargos tributários das empresas, o que não ocorre fora do princípio da legalidade tributária e seus desdobramentos.

Desta feita, é de se perceber que, dentre outros elementos, a sujeição passiva, isto é, a determinação do contribuinte do gravame fiscal, deve constar expressamente na lei tributária. Não é admissível, frente aos princípios republicanos da legalidade e da segurança jurídica na tributação, que a lei fiscal não especifique qual seja o sujeito passivo de um gravame.

Tal entendimento não é novidade, mas velha premissa pacificada do Direito Tributário, conforme se pode observar do precedente proferido pela Suprema Corte através do Recurso Extraordinário nº 78.871/SP (relatoria do saudoso Ministro Antonio Neder) em 19 de abril do ano de 1977.

Naquela ocasião, o pretório excelso julgou ilegítima a cobrança de imposto de circulação de mercadorias (antigo ICM) sobre o fornecimento de alimentação e bebidas em restaurante ou estabelecimento similar, afastando, pois, a sua incidência, sob o argumento de que a definição do contribuinte da figura tributária se encontrava no Decreto-lei nº 406/1968 (em seu art. 6º, § 1º, II), quando, na verdade, esta disposição deve ser tratada por lei estadual que disponha sobre a matéria, em estrito cumprimento ao “princípio constitucional da legalidade tributária”.

Destarte, não há que se falar em determinabilidade – e, por extensão, em cumprimento à legalidade e à segurança jurídica tributária – quando o Superior Tribunal de Justiça permite que os municípios promovam a fiscalização e cobrança do IPTU sem que o ente tributante estabeleça em lei ordinária sua qual dos possíveis sujeitos passivos do art. 34 do Código Tributário Nacional (proprietário do imóvel, titular do seu domínio útil, ou seu possuidor a qualquer título) será o contribuinte naquele específico Município.

Autorizar que o agente administrativo municipal eleja o contribuinte do IPTU, consoante seu critério de conveniência, é um precedente que abre as portas da tributação para maiores arbitrariedades, cenário que se revela incompatível com a realização do ideal de previsibilidade e determinabilidade da relação obrigacional tributária buscada pelo que o professor Humberto Ávila, como já dito, chama de princípio da legalidade tributária.

Dito com outros termos, não há como o particular prever a atuação do Fisco, uma vez que fica à critério do seu agente a definição do contribuinte, tampouco se pode determinar os termos da obrigação fiscal, vez que sequer o sujeito passivo é estabelecido antes da autuação fiscal.

“A sujeição passiva de qualquer relação obrigacional tributária é matéria estritamente legal forte na garantia da legalidade tributária (art. 150, I, da CF) ou mesmo da legalidade geral (art. 5º, II, da CF) ”, de acordo com as considerações de Leandro Paulsen. Sob esta ótica, reputa-se inconstitucional por afronta à regra da legalidade a lei municipal que regulamente o seu IPTU, mas que seja omissa na eleição de um dos três possíveis sujeitos passivos, elencados no art. 34 do Código Tributário Nacional, não havendo que se falar em discricionariedade dos agentes do Fisco para suprir lacuna deixada pelo legislador.

6 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO IPTU

Vencidas as noções que concernem as normas de estrutura e como elas se relacionam com o exercício da atividade da tributação, mormente com a pacífica jurisprudência do STJ em comento neste estudo, mister a compreensão das normas de conduta, significa dizer, o estudo da fenomenologia da incidência tributária.

Destarte, indispensável examinar o acurado estudo do saudoso professor Geraldo Ataliba a respeito do assunto, começando da noção introdutória a respeito do fenômeno da incidência da norma.

6.1 INCIDÊNCIA NORMATIVA

Ataliba, em sua doutrina, designa por incidência normativa o fenômeno jurídico da subsunção de um fato à uma hipótese legal, na condição de consequência automática às virtudes jurídicas previstas na norma. Conseguintemente, a incidência do preceito normativo torna jurídico um fato determinado, atribuindo-lhe consequências jurídicas.

Em posicionamento análogo, Alfredo Augusto Becker dispõe que:

“… com o acontecer dos fatos, vão se realizando (existindo no presente e no pretérito), um a um, os elementos previstos na composição da hipótese de incidência, quando ‘todos’ os elementos se realizaram (existem no presente e no pretérito), a hipótese de incidência realizou-se e, então, automaticamente (imediata, instantânea e infalivelmente) aquele instrumento entra em ‘dinâmica’ e projeta uma descarga (incidência) de energia eletromagnética (juridicidade) sobre a hipótese de incidência realizada”. (1972, pág. 279)

Já o professor Roque Antonio Carrazza destaca que a incidência é o resultado automático e infalível do enquadramento de um fato a uma hipótese normativa (operação de subsunção), desencadeando as consequências previstas na própria regra jurídica.

Existe subsunção quando o fato jurídico tributário guardar absoluta identidade com o desenho normativo da hipótese. Esse enquadramento, porém, tem de ser completo. Para que determinada ocorrência seja tida como fato jurídico tributário, imprescindível a satisfação de todos os critérios identificadores tipificados na hipótese da norma geral e abstrata. O não reconhecimento de apenas um critério já tem o condão de comprometer inteiramente a dinâmica da incidência, pontifica o professor Paulo de Barros Carvalho.

Portanto, o autor conclui que todos os critérios da hipótese de incidência tributária devem encontrar suporte manifestado em lei, não se podendo salvar o tributo por intermédio de deduções a respeito do que o legislador não tratou.

6.2 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA SEGUNDO A DOUTRINA DE GERALDO ATALIBA

O legislador constituinte, ao traçar rigorosamente as competências tributárias, de forma a subtrair ao legislador ordinário de cada entidade tributante a possiblidade de definir à seu bel prazer o alcance das normas jurídicas criadoras in abstracto de tributos, acabou por também indicar o que o professor Roque Antonio Carrazza denomina de “conteúdo semântico mínimo” de cada tributo (importar produtos estrangeiros, auferir renda, praticar operações relativas à circulação de mercadorias, prestar serviços de qualquer natureza, transmitir bens ou direitos causa mortis, entre outros). Este conteúdo semântico mínimo deve obrigatoriamente ser observado pelas pessoas políticas ao momento da instituição das exações, ou mesmo em seu lançamento e subsequente cobrança.

Carrazza assinala, portanto, que a Constituição da República, ao discriminar as competências tributárias, traçou implicitamente a norma padrão de incidência, isto é, indiretamente, apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e, sob uma certa ótica, até a alíquota possível de determinados gravames. Destarte, ao criar as hipóteses de incidência tributária, os entes federativos se ocupam com os mencionados elementos estruturais dos tributos, não podendo o legislador, ao exercitar quaisquer das competências tributárias reservadas constitucionalmente à sua pessoa política, fugir do “modelo” constitucionalmente imposto.

Consequentemente, o professor Roque Antonio Carrazza argumenta que somente após a edição de lei ordinária (ou complementar, segundo as exceções constitucionalmente expressas) que desenha a norma jurídica tributária, em todos os seus elementos essenciais (hipótese de incidência, sujeitos ativo e passivo, base de cálculo e alíquota), é que se pode afirmar que o tributo foi devidamente instituído.

Nesse diapasão, assim como qualquer outra norma jurídica, a norma tributária (aquela que trata de tributo, na sua configuração e dinâmica, disciplinando o relacionamento que o instituto enseja estabelecer entre os sujeitos da relação obrigacional tributária e dos respectivos deveres de contorno) tem sua incidência condicionada à materialização do fato conforme os ditames em que é descrito na hipótese normativa. Tal fato, quando concretizado acarreta automaticamente na incidência do mandamento, vale dizer, a obrigação tributária, explica Geraldo Ataliba.

Conclui o autor, em síntese, que “para que de tributo se trate, é mister que o comando ‘pague dinheiro ao estado’ seja preso à hipótese ‘se acontecer um fato X, que não seja ilícito’”.

A hipótese de incidência, portanto, significa uma descrição legal de um estado de fato apto a desencadear uma relação jurídico quando concretizado no mundo fenomênico. Assim, a hipótese de incidência tributária é a descrição legislativa – que será obrigatoriamente hipotética – de um fato cuja ocorrência in concretu a lei atribui a força jurídica de determinar o nascimento da obrigação tributária, ensina Geraldo Ataliba.

Nos dizeres de Hugo de Brito Machado:

“A hipótese de incidência tributária é a descrição, feita pela norma que institui o tributo, do fato ou situação de fato que, uma vez concretizado no mundo fenomênico, faz nascer o dever jurídico de pagar o tributo. Diz-se hipótese de incidência porque situada no plano simplesmente normativo. É mera descrição de algo que, se e quando ocorre, faz nascer no plano da realidade concreta o dever de pagar o tributo”. (2015, pág. 249)

Por seu turno, de modo similar, o professor Paulo de Barros Carvalho – que partiu da noção de norma jurídica em sentido estrito (norma que possui antecedente normativo que, quando concretizado, desencadeia um consequente normativo), construiu a regra-matriz de incidência tributária, teoria alternativa à do professor Geraldo Ataliba – salienta que a hipótese de incidência tributária se trata de entidade lógica que descreve normativamente um evento que, concretizado no nível das realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo abstrato estipulado na consequência normativa, qual seja a relação jurídica tributária.

Há de se observar que uma das grandes contribuições do professor Geraldo Ataliba foi a diferenciação entre os conceitos de hipótese de incidência e fato imponível ou fato gerador. Diferentemente dos conceitos de hipótese de incidência tributária acima narrados, bastante similares entre si, o fato imponível consiste no fato concreto ocorrido no mundo fenomênico, empiricamente verificável, e que pode ser subsumido à descrição legal feita pela hipótese normativa, desencadeando uma norma individual e concreta referente ao dever de pagar tributo.

Pois bem, para a correta subsunção (fenômeno de um fato configurar completa e rigorosamente a previsão hipotética legal) do fato à norma, a hipótese normativa deve se apresentar sob variados aspectos, cuja reunião lhe dá identidade. Tais aspectos, para Geraldo Ataliba, não vêm necessariamente arrolados de maneira expressa pela lei, mas podem também ser implícitos. Pode (apesar de se tratar de raro fenômeno) existir lei que arrole explicitamente todos os aspectos ou pode ser que os aspectos integrativos da hipótese de incidência de uma determinada exação tributária se encontrem esparsos na lei ou em diferentes leis, sendo que muitos são implícitos no sistema jurídico, o que não faz com que a hipótese de incidência perca seu caráter de unicidade e indivisibilidade.

Nessa senda, Geraldo Ataliba doutrina que os aspectos da hipótese de incidência são as qualidades que esta tem de delimitar hipoteticamente os sujeitos da obrigação tributária, seu conteúdo substancial, local e momento de nascimento. Desta feita, designa que os aspectos essenciais da hipótese de incidência tributária são os que seguem: a) aspecto pessoal; b) aspecto material; c) aspecto espacial; e d) aspecto temporal. Ressalte-se que, outrossim, Alfredo Augusto Becker (que adere à linha de Ataliba), descreve que os fatos que realizam a hipótese de incidência acontecem, necessariamente, num determinado tempo e lugar, de modo que a realização do acontecimento do núcleo e seus elementos adjetivos terão realizado a hipótese de incidência apenas se se manifestarem consoante as coordenadas de tempo e de lugar previstas na norma tributária. Adiciona, ademais, que a base de cálculo, perspectiva dimensional da hipótese de incidência, de presença constitucionalmente indispensável em qualquer figura tributária, compõe o núcleo da hipótese de incidência, porquanto fixa critério de mensuração da materialidade que, combinado à hipótese de incidência, determina a natureza jurídica do tributo.

O aspecto material, segundo os ensinamentos de Roque Carrazza, descreve hipoteticamente o proceder da pessoa física ou jurídica. Noutras palavras, o aspecto material da hipótese de incidência tributária descreve uma conduta ou um estado de fato do sujeito passivo que tenha o condão de desencadear o nascimento da obrigação tributária.

Ademais, o autor adiciona que o aspecto material vem sempre expressado por meio de um verbo, que descreve a ação ou omissão de sujeito passivo (“vender”, “dar”, “auferir”, “importar”, etc.), ou a condição (estado de fato) em que ele deve se encontrar (“ser”, “permanecer”, “estar”, etc.), sempre qualificado por um complemento que particularize este verbo pessoal (“auferir renda”, “vender mercadorias”, entre outros).

O professor Geraldo Ataliba comenta que o aspecto material se trata do mais complexo aspecto da hipótese de incidência, porquanto é a própria consistência material do fato ou estado de fato descrito. Contém a indicação de sua substância essencial, sendo o que há de mais importante e decisivo na configuração do tributo.

Em outros termos, Ataliba salienta que este aspecto serve para identificar a figura exacional. Elabora, portanto, a partir do aspecto material do gravame, a classificação dos tributos em “vinculados” ou “não vinculados à uma atuação estatal”. Doravante, sendo o aspecto material um evento não relacionado à uma atuação estatal, o tributo será não vinculado, como é o caso dos impostos, os quais nascem das ações dos particulares que manifestem suposta riqueza tributável. Por outro lado, consistindo o aspecto material em uma ação do Estado ou em consequência da ação estatal, tratar-se-á de tributo vinculado. Exemplo de tributo vinculado são as taxas (prestação de serviço público específico e divisível ou exercício do poder de polícia) ou as contribuições de melhoria (valorização do imóvel como consequência da realização de uma obra pública).

O aspecto temporal consiste nas indicações feitas pela lei continente da hipótese de incidência que remetem às circunstâncias do tempo para a configuração dos fatos imponíveis, podendo esta indicação ser implícita ou explícita, ensina Geraldo Ataliba. É, pois, a indicação, implícita ou explícita, do momento em que se reputa ocorrido, consumado, o fato imponível (e, por extensão, nascida a obrigação tributária).

Tem como limite constitucional intransponível a obediência à regra da irretroatividade da lei tributária (art. 150, III, “a” da Lei Maior), de modo que o fato imponível só pode ser reputado ocorrido se situado em momento posterior ao início da citada lei tributária. Outra limitação é a inconstitucionalidade das antecipações de tributo, vale dizer, o nascimento de obrigações tributárias antes do momento de consumação do fato imponível, alude Ataliba.

O aspecto espacial, por sua vez, é explicado por Roque Carrazza como a indicação do local onde deverá ocorrer a conduta ou estado de fato que será havido por fato imponível originador da obrigação fiscal. Logo, o aspecto espacial se refere às circunstâncias de lugar relevantes ao nascimento do tributo. Conforme esses termos, pode-se exemplificar que o aspecto espacial do IOF é todo o território nacional e que o do IPTU consiste no perímetro urbano municipal.

Carrazza expressa que ao trabalhar o aspecto espacial, o legislador tributário deverá respeitar o mandamento da territorialidade, o qual demanda que a incidência fiscal apenas se dê sobre os fatos ocorridos dentro das fronteiras das pessoas políticas tributantes, onde suas leis têm voga e, portanto, irradiam os efeitos jurídicos que descrevem.

Assim, Ataliba descreve que esta perspectiva genérica do aspecto espacial da hipótese de incidência está presa ao âmbito de competência do legislador originário, de modo que um determinado fato, mesmo que revista todos os caracteres de uma hipótese de incidência, caso não se dê no lugar previsto pela norma (implícita ou expressamente), não será imponível, não se materializando, portanto, a hipótese de incidência tributária.

O aspecto pessoal ou subjetivo, por fim, é a qualidade que determina os sujeitos da obrigação tributária. Trata-se de conexão entre o núcleo da hipótese de incidência e duas pessoas, as quais serão erigidas em sujeitos da obrigação, nascido em virtude do fato imponível e por força da lei, conforme estatui Geraldo Ataliba.

Da leitura do art. 121 do Código Tributário Nacional, verifica-se que o sujeito passivo da obrigação tributária principal “é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária”, podendo ser “contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” ou “responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.

Voltando à doutrina de Geraldo Ataliba, vê-se que a sujeição passiva é àquele comumente chamado de contribuinte. É, pois, a pessoa física ou jurídica que fica na contingência legal de praticar o comportamento objeto da obrigação tributária (cumprir prestação pecuniária à título de tributo), em detrimento do próprio patrimônio e em favor do Fisco, sujeito ativo da relação fiscal.

Apesar de situar o aspecto pessoal (“critério”, em sua doutrina) fora da hipótese de incidência tributária, inserindo-o no âmbito da relação jurídica tributária – em contraponto à visão de Geraldo Ataliba –, indispensável considerar também as anotações do professor Paulo de Barros Carvalho a respeito do tema da sujeição passiva:

“Sujeito passivo da relação jurídica tributária é a pessoa – sujeito de direitos – física ou jurídica, privada ou pública, de quem se exige o cumprimento da prestação: pecuniária, nos nexos obrigacionais; e insuscetível de avaliação patrimonial, nas relações que veiculam meros deveres instrumentais ou formais”.

Em suma, com a verificação do fato imponível – e adotados pela autoridade administrativa os devidos procedimentos legalmente previstos – instaura-se uma relação jurídica tributária na qual a pessoa que realizou o fato fica obrigada a recolher para o Fisco, ou a quem lhe faça as vezes, uma soma em dinheiro, à título de tributo. Dito em outros termos, a pessoa política descreve legislativamente o fato apto a desencadear uma relação jurídica, acrescentando que quem o realizar materialmente ficará incumbido da obrigação de recolher os valores pecuniários referentes a um dado tributo, resume o professor Roque Carrazza.

No caso do IPTU, conforme o estudo da professora Regina Helena Costa, identifica-se que o aspecto material do imposto é “ser proprietário de imóvel urbano”, consoante disposto no art. 32 do Código Tributário Nacional.

Elege-se, ademais, a zona urbana municipal como o aspecto espacial (inclusive, nesse ponto, o § 1º do referido dispositivo legal cuida de definir o conceito de zona urbana, determinando que esta deve configurar, no mínimo, dois melhoramentos apontados nos incisos do § 1º).

O aspecto temporal, por sua vez, é fixado no dia 1º de janeiro de cada exercício financeiro, assim como ocorre com outros impostos incidentes sobre a propriedade.

Quanto ao aspecto quantitativo, o art. 33 do Código Tributário Nacional elege como base de cálculo o valor venal do bem imóvel objeto do IPTU, isto é, o valor de venda do imóvel, em condições normais de mercado, os quais constam nas Plantas Fiscais de Valores, os quais consideram fatores como área, localização, padrão de construção e antiguidade. As alíquotas, por seu turno, sujeitam-se às técnicas de progressividade e da diferenciação, cabíveis em caso de tributação fiscal ou extrafiscal. Usualmente, são fixadas em percentuais menores para bens imóveis residenciais.

Finalmente, é no aspecto pessoal onde reside a controvérsia abordada neste estudo, porquanto, conforme já dito, o art. 34 do Código Tributário Nacional declara que serão três possíveis contribuintes para o gravame: “Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.

Nesse contexto, é de se concluir que se impõe a cada município o dever de, pela via legislativa, estabelecer qual das três figuras apontadas será o contribuinte definitivo do gravame. Deverá descrever rigorosamente as situações em que a sujeição passiva deve ser transferida do proprietário do bem imóvel para os demais “possíveis contribuintes”. Apenas deste modo é que a hipótese de incidência estará completa e apta a ser subsumida à fato que concretamente ocorra no mundo fenomênico, tornando-o jurídico e, portanto, desencadeador da relação jurídica tributária cujo objeto seja o IPTU. Significa dizer que apenas com a escolha de um dos três contribuintes pela via legislativa é que se poderá construir a norma jurídica individual e concreta.

Contudo, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, decidiu que, havendo mais de um contribuinte possível para o pagamento do IPTU, a escolha será da autoridade administrativa tributária, conforme seu critério de conveniência, caso a lei ordinária municipal seja silente em relação ao estabelecimento da sujeição passiva do tributo.

Logo, a referida corte estabeleceu a possibilidade de existirem 3 (três) sujeitos passivos simultaneamente para uma mesma exação, devendo ser escolhidos pelo agente administrativo da Fazenda, sem qualquer critério objetivo.

Trata-se, pois, de anomalia para a fenomenologia da incidência. Uma vez que a incidência tributária demanda um desenho completo do arquétipo da figura tributária, a hipótese de incidência do IPTU resta comprometida em razão do seu nebuloso aspecto pessoal que não é claro quanto à sujeição passiva nos casos de omissão da lei ordinária municipal.

Portanto, resta cristalino que sem a definição explícita do legislador municipal a respeito da escolha entre os 3 (três) possíveis contribuintes do art. 34 do Código Tributário Nacional, a incidência do IPTU resulta inviável, porquanto não se pode subsumir um fato social à norma que não especifique (sequer implicitamente) o realizador do fato imponível, não podendo o Poder Executivo preencher lacunas da hipótese de incidência deste gravame.

É de se concluir também que a deficiência do aspecto pessoal do IPTU quanto ao contribuinte, com a consequente escolha pelo agente administrativo, segundo a sua conveniência, pode levar a aplicações disformes para situações juridicamente equivalentes, comprometendo o mandamento da igualdade tributária (arts. 5º, caput e 150, II do Texto Magno). Imaginemos, à título exemplificativo, que dois municípios omitem em sua legislação a escolha do contribuinte do IPTU e que em ambos tramitam processos de usucapião. Em um dos municípios o agente da Fazenda Municipal decide, por julgar mais oportuno, notificar o proprietário do imóvel a ser usucapido, uma vez que este vive em região central próxima ao órgão administrativo. No outro Município, dada as dificuldades de se notificar o proprietário que vive fora do país, o agente decide notificar o indivíduo que se encontra na posse do imóvel.

Mesmo posicionando o aspecto pessoal no consequente normativo, como feito pela doutrina do professor Paulo de Barros Carvalho (a Regra-matriz de Incidência Tributária), é compulsório que este venha a ser expresso pormenorizadamente no IPTU, por se tratar de elemento chave da relação jurídica tributária.

Percebe-se, deste modo, que a não fixação do aspecto pessoal do IPTU em norma geral e abstrata, com a consequente discricionariedade desmedida do Fisco municipal, levam à situação de indeterminabilidade dos termos da obrigação tributária principal, ocasionando, pois, em insegurança jurídica.

7 CONCLUSÕES

Partindo dos desdobramentos que o regime republicano desencadeia no ordenamento jurídico, em especial na atividade da tributação, pretendeu-se com este trabalho evidenciar que a delegação da eleição do contribuinte do IPTU, do Poder Legislativo para o agente administrativo fiscal, como chancelado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, é inadmissível.

Nessa senda, em termos mais específicos, analisou-se a temática a partir de três prismas: o das regras de competência tributária, da legalidade tributária e da fenomenologia da incidência normativa.

Como discorrido neste estudo, as regras de competência tributária, constitucionalmente concedidas às pessoas políticas, revestem-se do aspecto da indelegabilidade, segundo o qual o exercício da competência tributária não pode ser concedido, parcialmente ou em sua integralidade, à entidade diferente da pessoa política ou mesmo ao seu próprio Poder Executivo. Tal característica desagua no fato de que não há que se falar em preenchimento de lacunas na lei tributária pelo Poder Judiciário ou Executivo, sendo incompatível com os preceitos republicanos que, diante de omissão da lei ordinária municipal, o agente do Fisco fique incumbido da função de fixar o contribuinte (aspecto pessoal) do IPTU, consoante seu próprio interesse. Tal cenário avilta frontalmente o disposto na Súmula 399 do próprio Superior Tribunal de Justiça, que traz os seguintes dizeres:Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU”.

Atrelado à tal premissa, também foi analisado o crivo da legalidade a partir da sua dimensão normativa de princípio, segundo a qual, a partir da exigência do veículo da lei para instituir o tributo e seus elementos essenciais – bem como majorá-lo –, resta devida a realização dos valores de liberdade e segurança jurídica no ato de tributar, isto é, a legalidade-princípio impõe o dever de buscar um ideal de previsibilidade e determinabilidade para o exercício das atividades do contribuinte.

Consequentemente, não condiz com estes valores da segurança jurídica que o agente administrativo, seguindo suas convicções pessoais, indique quem deva suportar a exação fiscal. Inviável determinar os termos de uma obrigação tributária quando sequer seu polo passivo está definido, seja implicitamente no texto constitucional ou em norma geral seja explicitamente na lei reguladora do tributo. Paira, portanto, a insegurança jurídica sobre o município omisso em relação ao contribuinte de seu respectivo IPTU.

Por fim, no que tange à fenomenologia da incidência, estudou-se a hipótese de incidência tributária, segundo a doutrina de Geraldo Ataliba. Constatou-se que a subsunção do fato social à norma jurídica depende do desenho completo do arquétipo do tributo, sendo imprescindível cada aspecto.

Por conseguinte, concluiu-se se tratar de anomalia o caso de Município que seja omisso em relação à determinação do contribuinte do seu IPTU, e admita, amparado em falsa compreensão do art. 34 do Código Tributário Nacional, a existência de 3 (três) sujeitos passivos simultaneamente.

Em tal hipótese, toda a figura tributária fica comprometida, haja vista a impossibilidade de se subsumir o fato à norma.

Diante dos três ângulos trabalhados nesta investigação, conclui-se pela improcedência do referido entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, devendo este ser reformado para inadmitir qualquer cobrança de IPTU sem respaldo legal no que concerne o contribuinte.

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José Américo Veras de Souza; Advogado (OAB/RN nº 16.429);  Americoveras.adv@hotmail.com; http://lattes.cnpq.br/2452756471562327;

Como citar e referenciar este artigo:
SOUZA, José Américo Veras de. Reflexões a respeito da jurisprudência do STJ na eleição da sujeição passiva do IPTU. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/reflexoes-a-respeito-da-jurisprudencia-do-stj-na-eleicao-da-sujeicao-passiva-do-iptu/ Acesso em: 28 mar. 2024