A Fazenda Pública emite, ordinariamente, certidão de dívida com vencimento determinado.
A despeito do curso de Execução Fiscal então ajuizada pela Fazenda em relação ao contribuinte, ela encaminha a CDA respectiva ao Cartório de Protestos.
Não obstante tal particularidade, num bis in idem, ao curso da execução a Fazenda Pública amiúde promove protesto extrajudicial da CDA.
Indiscutível que o Direito e a prática de Justiça repugnam o protesto da CDA, havendo no repertório Jurídico do país u’a miríade de exposições reveladoras da sua ilegalidade/inconstitucionalidade, consideradas a partir da lei que concebeu tal despropósito.
De fato, conforme lembra o lustre Prof. RAUL HAIDAR, in Protesto de Dívida Fiscal é Totalmente Ilegal, Justiça Tributária, 14/03/2016:
“Já existem decisões do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais reconhecendo a suposta legalidade da Lei 12.767, que resultou da MP 577, de 27 de agosto de 2012. Essa MP deveria tratar apenas de assuntos relacionados a energia elétrica. No Congresso, ela recebeu um “contrabando”, por meio de emenda que introduziu um parágrafo único ao artigo 1° da Lei 9.242/1997, que trata de protesto de títulos e documentos de dívida. Ou seja: para tratar de questões de energia elétrica, o Congresso resolveu mexer na lei dos protestos”
Essa crítica, relativa à “origem” da norma legal em destaque tem sido reproduzida em exposições de todos os estudos relativos à odiosa medida criada em Lei que não mereceu sequer uma exposição de motivos ou uma interpretação autêntica.
Demais, ao examinar a questão relativamente ao seu mérito existe um manancial de estudos jurídicos e judiciais contrapondo-se ao ato, como se vê de v. Acórdão de São Paulo:
“Em que pese o entendimento do Colendo Órgão especial, não cabe o protesto em tela, por fundamento diverso, qual seja, o previsto no art. 620, do Código de Processo Civil – Princípios da menor onerosidade ao devedor e da razoabilidade para o credor – A Fazenda Pública já possui prerrogativa de promover a execução fiscal pertinente com constrição judicial de bens ao devedor – Inteligência da Lei n.º 6.830/80 e do Código Tributário Nacional – O protesto da CDA inviabiliza a obtenção de crédito no sistema financeiro causando danos graves aos devedores fiscais. Recurso da FESP improvido”.
A despeito de semelhantes considerações que possam estimular preferência pelo aspecto científico a ser explorado com relação à Lei que autoriza o protesto em evidência, buscamos base para este trabalho em aspecto outro, afastando da obscuridade legal supra explicitada e ao mesmo tempo admitida, como sói acontecer no Brasil, país onde foi ensaiada, por exemplo, determinação de cobrança de “energia solar”, e criada lei que manda meter na cadeia quem deixa de recolher ICMS. Lei esta aplaudida pelo Egr. STF.
Daí que observamos a Lei 12.767, de 2012 contemplando um conjunto legal respeitante a seu uso, no caso, pela Fazenda Pública, e à sua aplicação, pelos julgadores.
Consabido que a norma jurídica tecnicamente não tem função especial se isolada, mas domina se em sintonia com a Carta Constitucional e com o sistema jurídico apropositado vigente.
E onde é inserido o estudo constitucional na discussão?
Surde claramente expressa, uma regra constitucional que garante os interesses da empresa, ainda que para tanto haja de recorrer-se a um critério de equidade (art. 170 – IX/CF).
De fato, determina a Carta Magna de 1988:
“Art. 170 – A ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.”
O que o “princípio” parece consagrar, não é um critério de favor, na acepção vulgar, quando da apreciação de causa em que esteja em jogo considerável interesse da empresa nacional, mas mediante observância ao trabalho humano, à livre iniciativa, à existência digna conforme os ditames da justiça social; ao fazê-lo, isto é, ao aplicar a lei, faz-se necessário tomar em conta a empresa em si, para justa solução da situação de conflítuidade.
E, no presente caso, pondo à frente a própria entidade, é ela, no seu conjunto, que interessa à solução do impasse.
De fato, não faz parte do sistema jurídico brasileiro a possibilidade de se buscar solução para determinada questão através de caminhos múltiplos, como na hipótese ora apreciada, isto é, pela constrição material decorrente da execução fiscal e ao mesmo tempo pela constrição moral provocada pelo protesto em cartório, conservando o contribuinte num estado de opróbrio, a que nãz faz jus o poder público deste país.
Se se admite correta a origem da Lei em referência, e se sua aplicação é tolerada, tudo bem, mas o que parece juridicamente intolerável é a atividade governamental valer-se do executivo fiscal em concomitância com a provocação do protesto, ou promover este legalmente inútil ao curso da execução da CDA com penhora efetivada.
Se não é delegada a “execução” ao tabelionato de protestos não há falar em sincretismo processual, vez que a relação entre as medidas é a de alternatividade, isto é, da discricionariedade à míngua de observância a padrões de conveniência e oportunidade e mesmo de interesse público sério.
De fato, há com relação ao tema, v. Decisão evoluída, decente, justa, proferida pelo Egr. TJMG, como se vê:
“Ainda que o caso dos autos não esteja inserido nas causas de suspensão do crédito tributário, estando o débito exeqüendo sendo discutido em embargos do devedor, com a execução fiscal devidamente garantida, embora reconheça a legalidade do protesto da Certidão de Dívida Ativa pela Administração Fazendária, a medida apresenta-se desproporcional, impondo-se restrições desarrazoadas à atividade da empresa.” (AC. TJMG, Agr. Instr. 1.0000.19.025841-8/001, Rel. Des. TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO, in JUSBRASIL, d. pub. 19-09-2019).
Há, a consignar ainda que, estando, eventualmente, a empresa em regime de Recuperação Judicial, o pretenso crédito da Fazenda Pública haveria de ser habilitado nos autos respectivos, sob pena de violação do princípio da preservação da empresa, e não pelas vias examinadas, inclusive extrajudicial, de odiosas conseqüências.
Eulâmpio Rodrigues Filho
Alma Mater: Universidade Federal de Uberlândia
Professor Titulado de Direito Processual Civil
Pós-Doutor em Direito pela Universidade (pública) de Messina
Advogado em Minas Gerais