Direito Tributário

ISSQN e os serviços cartorários

Stéfano Vieira Machado Ferreira[1]

Resumo: Neste artigo, são apresentados breves comentários acerca do sujeito passivo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN). Dessa forma, o caso concreto analisado refere-se aos serviços cartorários e a cobrança, diga-se de passagem, ilegal, daquele tributo dos tomadores do serviço, quando, na verdade, deveria ser cobrado dos próprios cartorários.

Palavras-chave: EMOLUMENTOS CARTORÁRIOS. ISSQN. REPASSE DO CUSTO DO IMPOSTO PELOS CARTÓRIOS AO CIDADÃO. IMPOSSIBILIDADE.

1. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA – ISSQN

A Constituição da República Federativa do Brasil no ano de 1988 tratou da competência legislativa tributária, e em seu artigo 156, inciso III[2] estabeleceu que a competência para instituir o imposto sobre serviços de qualquer natureza caberia aos municípios.  

No ano de 2003 foi publicada a Lei Complementar n° 116[3], norma geral em matéria tributária que disciplinou especificamente sobre o Imposto Sobre Servicos de Qualquer Natureza – ISSQN.

A lei complementar possui uma função muito importante no sistema tributário, pois através dela são instituídas as normas gerais que irão definir a base de cálculo, os fatos gerados, contribuintes, lançamento, prescrição, decadência e, também, dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre os entes políticos, nos termos do artigo 146 da CF/88:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários[4];

Logo, sendo instituída lei complementar para estabelecer regras gerais sobre determinado tributo, os Estados ou os Municípios ao legislarem sobre os tributos de sua competência, deverão obedecer a uma mesma disciplina normativa no que diz respeito ao fato gerador, à obrigação tributária, aos contribuintes, à prescrição, à decadência, entre outros.

No que tange à Lei Complementar 116/2003, por meio dela podemos construir a Regra-Matriz de Incidência Tributária do ISSQN.

A Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) é a construção lógica do insigne professor Paulo De Barros Carvalho[5], conceituada por ele como a norma tributária por excelência, já que fixa os parâmetros  para a incidência do tributo.

Assim, a efetiva incidência da norma jurídica está condicionada à própria estrutura normativa, composta logicamente de uma hipótese e de uma tese. Logo, se acontecer um fato, deve ser uma consequência.

De acordo com Lourival Vilanova pode-se afirmar que:

[…] a hipótese é descritiva de fato de possível ocorrência, o fato jurídico recortado sobre suporte fático (Pontes de Miranda) – mas a tese, normativamente vinculada à hipótese, tem estrutura interna de proposição prescritiva. É a relação em que o sujeito (S’) fica em face de outro sujeito (S”)[6].

Assim, temos que:

Njt = [ Ht ? Cm (v . c) . Ce . Ct]

                            ?

[ Cst ? Cp (Sa . Sp) . Cq (bc . al)]

Sendo:

Njt = norma jurídico-tributária

Ht = hipótese tributária

Cm = critério material = (v – verbo): prestar. (c- complemento): serviços de qualquer natureza.

Ce = critério espacial = Dependerá do tipo de serviço a ser prestado, podendo ser: o local do estabelecimento prestador do serviço como regra geral; o local do domicílio do prestador do serviço; o local da prestação do serviço; o local do estabelecimento do tomador do serviço, excepcionalmente.

Ct = critério temporal = instante em que se concretiza a prestação do serviço.

Cst = consequência tributária

Cp = critério pessoal 

Sa – sujeito ativo = Municipalidade (ou o Distrito Federal);

Sp – sujeito passivo = é a pessoa física ou jurídica, privada ou pública, detentora de personalidade, e de quem exige-se o cumprimento da prestação.

Cq = critério quantitativo

bc – base de cálculo = regra geral é preço do serviço.

al – alíquota = regra geral é uma percentagem diferenciada conforme o tipo de serviço até o limite de 5%.

? = dever ser interproposicional (neutro)

? = dever ser intraproposicional (modalizado)

Após a breve análise da regra matriz de incidência tributária do ISSQN, passa-se a focar detidamente no sujeito passivo da relação jurídica que é o ponto nevrálgico do artigo.

Nos dizeres de Paulo de Barros Carvalho, sujeito passivo é aquele que figura no polo passivo da relação jurídica tributária. O artigo 121 do Código Tributário Nacional elege duas espécies de sujeito passivo, o contribuinte e o responsável:

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei[7].

Para ser contribuinte, dois requisitos devem estar presentes: (i) realizar o fato jurídico tributário e (ii) figurar no polo passivo da obrigação tributária.

Já a responsabilidade é tratada nos artigos 128 a 138 do Código Tributário Nacional[8], e são três as principais características que podem ser encontradas no instituto: solidariedade, subsidiariedade ou pessoalidade.

A responsabilidade solidária é aquela em que mais de uma pessoa figura no polo passivo da obrigação. Na responsabilidade subsidiária o terceiro só fica obrigado a adimplir a obrigação constatada a obrigação de pagamento pelo devedor originário.

A responsabilidade pessoal se dá quando o terceiro for o único obrigado a adimplir a obrigação desde o início, subdividida em responsabilidade de terceiros, por infração e por substituição.

A responsabilidade por substituição encontra-se prevista no artigo 150, parágrafo 7° da CF/88[9] e prevê a obrigação do substituto adimplir o tributo gerado em virtude de fato jurídico praticado pelo substituído. Por exemplo, o ISS retido pelo tomador do serviço, ou o imposto de renda retido pela fonte pagadora.

Nesses casos, o patrimônio do prestador do serviço está sendo diminuído pelo tomador a fim de adimplir a obrigação. Nos casos em que o substituto pague o tributo às suas expensas, o direito deve lhe conferir uma forma de se ressarcir do pagamento contra o substituído.

A responsabilidade por infrações decorre de um ato ilícito e impõe-se à pessoa responsável a obrigação de adimplir o tributo e a multa.

A responsabilidade de terceiros se dá na impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte.

No caso do ISSQN coube à LC nº 116/03 dizer quem são os sujeitos passivos da obrigação tributária. O artigo 5° estabelece que o contribuinte do imposto é o prestador do serviço, e o artigo 6° disciplina que é possível o município eleger um responsável pelo crédito tributário, vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação:

Art. 5o Contribuinte é o prestador do serviço.

Art. 6o Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais[10].

Pergunta-se: Quem pode figurar como responsável tributário? Qual seria esse vínculo com o fato gerador? Tais perguntas merecem respostas para que possamos prosseguir.

Nos socorremos da doutrina de Luciano Amaro, que assim leciona:

Já o artigo 128 diz que a lei pode eleger terceiro como responsável se ele estiver vinculado ao fato gerador. Por aí já se vê que não se pode responsabilizar qualquer terceiro, ainda que por norma legal expressa. Porém, mais do que isso, deve-se dizer que também não é qualquer tipo de vínculo com o fato gerador que pode ensejar a responsabilidade de terceiro. Para que isso seja possível, é necessário que esse vínculo seja de tal sorte que permita esse terceiro, elegível como responsável, fazer com que o tributo seja recolhido sem onerar o próprio bolso[11].

 Maria Rita Ferragut expõe no mesmo sentido e acrescenta:

Esses limites fundamentam-se na constituição e são aplicáveis com a finalidade de assegurar que a cobrança do tributo não seja confiscatória e atenda à capacidade contributiva, pois se qualquer pessoa pudesse ser obrigada a pagar tributos por conta de fatos praticados por outras, com quem não detivessem qualquer espécie de vínculo (com a pessoa ou com o fato), o tributo teria grandes chances de se tornar confiscatório, já que poderia incidir sobre o patrimônio do obrigado e não sobre a manifestação de riqueza ínsita ao fato constitucionalmente previsto. Se o vínculo existir, torna-se possível a preservação do direito de propriedade e do não-confisco[12].

São esclarecedoras as lições dos renomados juristas, para quem o terceiro responsável por recolher o tributo não esteja utilizando do próprio patrimônio para adimplir a obrigação sob pena de confisco.

Caso este responsável venha se utilizar do próprio patrimônio, lhe deve ser garantido o ressarcimento da quantia em dinheiro por ele recolhida, com raras exceções como, por exemplo, na responsabilidade por infrações.

Isso se dá em respeito ao princípio da capacidade contributiva insculpido no artigo 145, parágrafo 1° da CF/88[13], que estabelece os impostos tenham caráter pessoal e sejam graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Desde já refutamos a classificação dos sujeitos passivos no que tange à repercussão econômica do tributo, contribuinte de direito e contribuinte de fato, tributos diretos e tributos indiretos. A repercussão que importa ao direito deve ser sempre jurídica.

Só se pode transferir o encargo do tributo quando a lei assim dispuser. No direito, tal possibilidade se dá nos casos de reembolso ou retenção na fonte.

Na repercussão jurídica por reembolso, a lei garante ao responsável o direito de receber do realizador do fato jurídico tributário o reembolso do montante do tributo por ele pago.

Na retenção na fonte, permite-se ao sujeito passivo abater do valor que por ele deveria ser pago ao realizador do fato jurídico tributário, o valor do tributo por ele devido.

Fixadas tais premissas, passa-se o estudo do imposto sobre serviços cartorários.

2. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS

Como dito, a Lei Complementar n° 116/03 é o instrumento normativo legal que norteia os Municípios para fins de instituição e cobrança do ISSQN. Está previsto no artigo 1° que o ISS tem seu fato jurídico tributário na prestação dos serviços constantes da lista anexa.

O item 21.01 da lista de serviços prevê a incidência do ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

O ISS sobre tais serviços foi objeto de inúmeras discussões judiciais sobre sua constitucionalidade, com o argumento de se tratarem de “serviços públicos”, as “custas e emolumentos” seriam remunerações de serviços públicos específicos e divisíveis e, portanto, só deveriam ser auferidas por meio de taxas de serviços. E tributo não poderia incidir sobre a receita de outro tributo.

Não obstante, por ocasião do julgamento da ADI n. 3.089-DF, de 2008 o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do dispositivo legal, assim ementada:

 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ITENS 21 E 21.1. DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR 116/2003. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA – ISSQN SOBRE SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. CONSTITUCIONALIDADE. Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.1 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN.

Alegada violação dos artigos 145, II, 156, III, e 236, caput, da Constituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza permitiria a incidência do tributo tão somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Ademais, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofenderia o art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º, da Constituição, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados.

As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º, da Constituição.

O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva.

A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não tributação das atividades delegadas.

Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente[14].

No ano de 2013, o STF reconheceu a repercussão geral da matéria sobre a cobrança do ISS incidente sobre as atividades de cartórios, notários e serviços de registro público, ao prover o RE 756.915[15], no qual o Município de Guaporé (RS) questionava decisão da Justiça gaúcha que havia declarado inconstitucionais os dispositivos da lei do Município sobre o tema. No mérito, a orientação pela constitucionalidade da cobrança foi mantida.

Também é objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial a delimitação da base de cálculo do imposto sobre os serviços cartórios, se o ISS teria base de cálculo fixa ou variável.

A maioria das decisões judicias são no sentido de que a base de cálculo deve respeitar o artigo 7° da LC 116/03, que estabelece a regra geral da base de cálculo corresponder ao preço do serviço, logo, o ISS incidiria sobre os emolumentos cartorários.

O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a hipótese do ISS variável nos casos de serviços de registros públicos, cartorários e notariais. Seguem as decisões das duas turmas:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ISS. SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. BASE DE CÁLCULO. ART. 9º, § 1º, DO DL 406/1968. TRIBUTAÇÃO FIXA. MATÉRIA APRECIADA PELO STF. ADIN 3.089/DF.

1. Hipótese em que se discute a base de cálculo do ISS incidente sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. A contribuinte defende tributação fixa, nos termos do art. 9º, § 1º, do DL 406/1968, e não alíquota sobre o preço do serviço (art. 7º, caput, da LC 116/2003), ou seja, sobre os emolumentos cobrados dos usuários.

2. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a incidência do ISS, in casu, ao julgar a Adin 3.089/DF, proposta pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg. Na oportunidade, ratificou a competência municipal e afastou a alegada imunidade pretendida pelos tabeliães e cartorários (i) ao analisar a natureza do serviço prestado e, o que é relevante para a presente demanda, (ii) ao reconhecer a possibilidade de o ISS incidir sobre os emolumentos cobrados (base de cálculo), mesmo em se tratando de taxas.

3. O acórdão do Supremo Tribunal Federal, focado na possibilidade de os emolumentos (que são taxas) servirem de base de cálculo para o ISS, afastou, por imperativo lógico, a possibilidade da tributação fixa, em que não há cálculo e, portanto, base de cálculo.

4. Nesse sentido, houve manifestação expressa contrária à tributação fixa no julgamento da Adin, pois “descabe a analogia – profissionais liberais, Decreto nº 406/68 –, caso ainda em vigor o preceito respectivo, quando existente lei dispondo especificamente sobre a matéria. O art. 7º da Lei Complementar nº 116/03 estabelece a incidência do tributo sobre o preço do serviço”.

5. Ademais, o STF reconheceu incidir o ISS à luz da capacidade contributiva dos tabeliães e notários.

6. A tributação fixa do art. 9º, § 1º, do DL 406/1968 é o exemplo clássico de exação ao arrepio da capacidade contributiva, porquanto trata igualmente os desiguais. A capacidade contributiva somente é observada, no caso do ISS, na cobrança por alíquota sobre os preços, conforme o art. 9º, caput, do DL 406/1968, atual art. 7º, caput, da LC 116/2003.

7. Finalmente, o STF constatou que a atividade é prestada com intuito lucrativo, incompatível com a noção de simples “remuneração do próprio trabalho”, prevista no art. 9º, § 1º, da LC 116/2003.

8. A Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg, quando propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade, pretendia afastar o ISS calculado sobre a renda dos cartórios (preço dos serviços, emolumentos cobrados do usuário).

9. A tentativa de reabrir o debate no Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, reflete a inconfessável pretensão de reverter, na seara infraconstitucional, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que é, evidentemente, impossível.

10. De fato, a interpretação da legislação federal pelo Superior Tribunal de Justiça – no caso a aplicação do art. 9º, § 1º, do DL 406/1968 – deve se dar nos limites da decisão com efeitos erga omnes proferida pelo STF na Adin 3.089/DF.

11. Nesse sentido, inviável o benefício da tributação fixa em relação ao ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais. 12. Recurso Especial não provido. 

(STJ – REsp nº 1.187.464– RS – 2ª Turma – Rel. Min. Herman Benjamin – DJ 01.07.2010)[16].

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TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO PÚBLICO. REGIME DE TRIBUTAÇÃO FIXA. ARTIGO 9º, § 1º, DO DECRETO-LEI N. 406/68. AUSÊNCIA DE PESSOALIDADE NA ATIVIDADE. INAPLICABILIDADE.

1. A controvérsia do recurso especial cinge-se ao enquadramento dos cartórios no regime de tributação fixa, conforme disposição do artigo 9º, § 1º, do Decreto-Lei 406/68, cuja vigência é reconhecida pela jurisprudência deste Tribunal Superior. Precedentes: REsp 1.016.688/RS, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJe de 5.6.2008; REsp 897.471/ES, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 30.3.2007.

2. Os serviços notariais e de registro público, de acordo com o artigo 236 da Constituição Federal, são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público.

3. Ainda que essa delegação seja feita em caráter pessoal, intransferível e haja responsabilidade pessoal dos titulares de serviços notariais e de registro, tais fatores, por si só, não permitem concluir as atividades cartoriais sejam prestadas pessoalmente pelo titular do cartório.

4. O artigo 20 da Lei n. 8.935/94 autoriza os notários e os oficiais de registro a contratarem, para o desempenho de suas funções, escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados. Essa faculdade legal revela que a consecução dos serviços cartoriais não importa em necessária intervenção pessoal do tabelião, visto que possibilita empreender capital e pessoas para a realização da atividade, não se enquadrando, por conseguinte, em prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, nos moldes do § 1º do artigo 9º do Decreto-Lei n. 406/68.

5. Recurso especial não provido.

(STJ – REsp nº 1.185.119, Rel. Min. Benedito Gonçalves)[17].

Portanto, a base de cálculo é o preço do serviço, que no caso dos cartórios seriam os emolumentos, cuja cobrança tem seu fundamento no parágrafo 2º do artigo 236 da Constituição Federal que estabelece:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

[…]

§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro[18].

Em obediência ao dispositivo constitucional acima foi editada a Lei 10.169/00, que definiu as regras gerais para os Estados e o Distrito Federal fixarem o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro:

Art. 1o Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei.

Parágrafo único. O valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados[19].

Veja-se que o conceito de emolumento perpassa ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.

No caso do Estado do Espírito Santo, os emolumentos estão disciplinados na Lei nº 4.847/93 que trata do regimento de custas e prescreve em seu artigo 9° o seguinte: “Art. 9º. Consideram-se emolumentos as despesas com atos extrajudiciais praticados em razão do ofício e especificados nas tabelas anexas[20]”.

Com isso podemos concluir que o cartório apenas pode cobrar como serviços aos clientes das serventias aquilo que se chama emolumentos.

A legislação do município de Vitória (Lei nº 6.075/03 e alterações), que será utilizada como exemplo estabelece o ISS a uma alíquota de 2% sobre o preço serviço, no caso, os emolumentos.

No ano de 2010 o município de Vitória publicou a Lei n° 7.938/2010, que acrescentou o artigo 23-A à lei nº 6.075/03:

Art. 23-A. Nos casos de prestação dos serviços descritos no subitem 21.01 da Lista de Serviços anexa a esta Lei, relativamente a atos de registros públicos, cartorários e notariais, o imposto será calculado sobre o valor dos respectivos emolumentos, não se integrando, todavia, à sua base de cálculo[21].

A legislação estabelece que o ISS não integra ao preço do serviço. É com base nesse dispositivo legal que os cartórios de Vitória realizam o malfadado “repasse”.

Discordamos da interpretação, isso porque, uma coisa é a lei dizer que o ISS não se integra à base de cálculo dos emolumentos, mas daí se interpretar que o ônus do imposto poderia ser repassado ao tomador do serviço, vai uma distância oceânica.

Ora, o contribuinte do ISS é o tabelião ou o oficial, nomeado como delegatário da serventia extrajudicial, o qual deverá, às suas expensas, administrar o cartório e auferir seus lucros por meio dos serviços prestados ao cidadão.

Como abordado, o sujeito passivo é o contribuinte ou o responsável. Todavia, a legislação do município de Vitória em momento algum elegeu o tomador do serviço como responsável, e ainda que assim tivesse sido feito, o tomador não poderia adimplir a obrigação utilizando-se do próprio patrimônio.

O que vemos é de uma inconstitucionalidade e ilegalidade manifesta, que vulgarmente se chama “repercussão econômica do ISS”, ou “repasse do imposto”, ou “ISS por fora”. Tais conceitos são extrajurídicos e devem ser de pronto rechaçados.

A repercussão do imposto deve ser jurídica. Somente a lei poderia atribuir a responsabilidade a um terceiro, mas não é isso que vem ocorrendo.

Os cartorários simplesmente repassam o imposto para o cidadão pagar como se tal ato tivesse algum amparo legal.

Apenas à título argumentativo, caso o repasse do ISS fosse aceito, o mesmo raciocínio poderia ser feito para o imposto de renda. Nesse caso, o cartório poderia também destacar a alíquota de 27,5% sobre os emolumentos e repassá-la ao tomador do serviço.

É notório o enriquecimento ilícito dos cartorários ao confiscar o patrimônio dos cidadãos tomadores de serviços. Como bem asseverado pelo STF, o recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma capacidade contributiva dos cartorários.

O exemplo poderá aclarar o tema. Imaginem-se os emolumentos (base de cálculo) na quantia de R$1.000,00 e que a alíquota do ISS seja 2%.

Situação 01:

Emolumentos:            R$5.000,00

ISSQN:                       R$100,00

Total a pagar:             R$5.000,00

Situação 02:

Emolumentos:            R$5.000,00

ISSQN:                       R$100,00

Total a pagar:             R$5.100,00

Na situação 01 temos a cenário que reputamos correto. O cartório faz incidir a alíquota de 2%, todavia o tomador do serviço paga apenas pelos emolumentos, já que o contribuinte do imposto é o cartorário. Sobre os R$5.000,00, o cartório ficaria com R$4.900,00 após adimplir o ISS.

Na situação 02 temos o “repasse” do ISS. O cartorário destaca o imposto, mas o tomador do serviço paga por ele, acrescendo tal valor ao patrimônio do cartorário.

Isso nos traz o seguinte raciocínio: Como o valor do ISS é acrescido ao patrimônio do cartorário, então a base de cálculo do seu imposto de renda seria, por exemplo, a incidência da alíquota de 27,5% sobre R$5.100,00 e não sobre R$5.000,00.

O cidadão tomador do serviço não foi eleito responsável tributário e ainda está sendo obrigado a pagar uma “guia” de ISS em nome do cartorário. O confisco ao patrimônio do tomador do serviço é patente.

Ao destacar o ISS da nota fiscal e o receber separadamente é o mesmo que entregar a “guia” de recolhimento do ISS em seu próprio nome para que terceiro pague.

Na prática seria o mesmo que um prestador de serviço de funilaria e lanternagem emitir uma nota fiscal com o preço do serviço R$1.000,00 e emitir a guia do ISS no valor de R$20,00 em seu próprio nome para que o tomador do serviço pague.

Os incautos poderiam questionar: O prestador de serviço de funelaria poderia embutir o preço do ISS na nota fiscal e cobrar do cliente o valor de R$1020,00. Sim, poderia. Contudo, a base de cálculo do ISS seria 2% sobre R$1020,00 e não mais sobre R$1.000,00. E para fins de acréscimo patrimonial ele se enriqueceu de R$1020,00, e não de apenas R$1.000,00.

O cartorário sequer está autorizado a fazer dessa forma, uma vez que os emolumentos são tabelados.

O artigo 3º, inciso III da 10.169/00 consta a expressa vedação de cobrança de quaisquer outras quantias não expressamente previstas nas tabelas de emolumentos. Se o ISSQN não faz parte dos emolumentos, o mesmo não poderia ser cobrado do tomador do serviço.

Os clientes já pagam seus próprios impostos, todavia estão sendo ilegalmente obrigados a pagar os impostos de terceiros sem autorização legal para tanto, em claro confisco de seu patrimônio já que não são quem detém a capacidade contributiva.

Logo, não há como admitir o repasse de tal ônus tributário aos clientes das serventias.

3. CONCLUSÃO

Portanto, o contribuinte do ISSQN sobre serviços cartorários é o prestador do serviço, o cartorário. O tomador somente poderia ser eleito o responsável desde que seu patrimônio não fosse confiscado ou então lhe seja permitido se ressarcir do custo do imposto pago.

A forma como se dá o repasse do imposto, destacado dos emolumentos, faz aumentar o patrimônio do cartorário que se enriquece ilicitamente ao diminuir o patrimônio do tomador do serviço.

Em suma, o imposto que é devido pelo cartorário está sendo ilegalmente cobrado do tomador do serviço.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1997.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

FERRAGUT, Maria Rita, Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2013.

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005.



[1] Graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Especialista em Direito Tributário pelo IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários). Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/ES. Advogado sócio fundador do escritório Vieira Machado & Ferreira Advogados Associados. stefano@vmf.adv.br.

[2] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DOU, 5 out. 1988.

[3] BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar nº 116 de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília: DOU, 2003.

[4] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DOU, 5 out. 1988.

[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

[6] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005.

[7] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília: DOU, 1966.

[8] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília: DOU, 1966.

[9] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DOU, 5 out. 1988.

[10] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília: DOU, 1966.

[11] AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1997.

[12] FERRAGUT, Maria Rita, Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2013.

[13] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DOU, 5 out. 1988.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.089-2/DF. Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG-BR. Relator: Ministro Carlos Britto. Brasília, 13 fev. 2008. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=539087>. Acesso em 06 mar. 2017.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 756.915-RS. Prefeito do Município de Guaporé e Procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Brasília, 17 out. 2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4846976>. Acesso em 06 mar. 2017.

[16] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.187.464-RS. Edite do Amaral e Município de São Leopoldo. Brasília, 01 jun. 2010. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=977944&num_registro=201000536854&data=20100701&formato=PDF>. Acesso em 06 mar. 2017.

[17] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.185.119-SP. Francisco de Assumpção Pereira da Silva e Município de São Carlos. Brasília, 05 out. 2010. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1010059&num_registro=201000470377&data=20101014&formato=PDF>. Acesso em 06 mar. 2017.

[18] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: DOU, 5 out. 1988.

[19] BRASIL. Prefeito de Vitória. Lei nº 6.075, de 20 de maio de 2003. Regula o § 2o do art. 236 da Constituição Federal, mediante o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. Brasília: DOU, 2000.

[20] BRASIL. Governador do Estado do Espírito Santo. Lei nº 4.847, de 30 de dezembro de 1993. Espírito Santo: DOE, 1993.

[21] BRASIL. Prefeito de Vitória. Lei nº 6.075, de 20 de maio de 2003. Estabelece novas regras para o cálculo e pagamento do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) das atividades de construção civil realizados na forma de incorporação imobiliária, concretagem e usinagem, serviços de saúde, planos de saúde e laboratórios, e de serviços cartorários. Vitória: DOE, 2003.

Como citar e referenciar este artigo:
FERREIRA, Stéfano Vieira Machado. ISSQN e os serviços cartorários. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/issqn-e-os-servicos-cartorarios/ Acesso em: 29 mar. 2024