Direito Tributário

O Pacto Federativo e a Guerra Fiscal

Em 12 de abril do corrente ano, o Senado Federal nomeou Comissão, hoje constituída por treze especialistas, a saber: Nelson Jobim (presidente), Everardo Maciel (relator), Bernard Appy, Fernando Rezende, João Paulo dos Reis Velloso, Luís Roberto Barroso, Manoel Felipe Rêgo Brandão, Marco Aurélio Marrafon, Michal Gartenkraut, Paulo Barros Carvalho, Sergio Roberto Rios do Prado e por mim, objetivando um estudo para repensar o pacto federativo, a começar pelos questões tributárias, que amarram o desenvolvimento nacional e atrasam a evolução do País, na certeza de que, sem esses entraves, o Brasil já poderia ter atingido níveis muito mais elevados de progresso e competitividade.

Em diversas reuniões presenciais e em um número maior de reuniões virtuais, os treze participantes elaboraram 12 textos, objetivando: eliminar a guerra fiscal ou reduzi-la a expressão insignificante quanto ao ICMS; definir o nível das dívidas dos Estados, sem provocar descompassos orçamentários para a União, Estados e Municípios; definir as novas regras do Fundo de Participação dos Estados, assim como reformular a partilha do ICMS com os Municípios; equacionar o problema dos royalties do petróleo sem modificar as garantias, hoje outorgadas aos Estados e Municípios, com base no artigo 20, § 1º, da CF, mas universalizando participações para as demais unidades da Federação; agravar a punição deautoridades públicas que gerem o conflito tributário, em patamar penal, estabelecendo outras regras simplificadoras, como o cadastro único do contribuinte, medida esta também discutida e aprovada, ao lado de 19 outras soluções simplificadoras, pelo Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP.

A linha mestra foi corrigir as desigualdades regionais, com o mínimo de resistência das entidades federativas e o máximo de eficiência nos resultados pretendidos. Sob a presidência de Nelson Jobim e relatoria de Everardo Maciel, que se mostrou um incansável coordenador das reuniões virtuais, tem a Comissão a certeza de que, nas 12 propostas já articuladas de projetos de emendas constitucionais, leis complementares, ordinárias e resoluções do Senado, pela primeira vez, de forma coerente e sistemática, forjou-se um verdadeiro sistema equacionador dos problemas mais cruciais da questão tributária.

O mais relevante é o que diz respeito à guerra fiscal do ICMS. Em recente editorial (16/10), O Estado de S. Paulo alertou que a luta dos Estados pela preservação de sua autonomia financeira sobre o ICMS dificulta a reforma tributária, no que tem razão, visto que o ICMS, tributo de vocação nacional foi regionalizado no Brasil, ao contrário do que ocorre na esmagadora maioria dos países, que adotam o princípio do valor agregado. Tais países têm o IVA centralizado, mesmo nas federações como Alemanha e Argentina.

A guerra fiscal, todavia, só aconteceu, por força da omissão da União, que, desde a Constituição de 88, deixou de fazer políticas regionais reequilibradoras dos desníveis entre as unidades da federação, visto que perdeu 14% da arrecadação do IPI e I.Renda a favor de Estados e Municípios. Esta perda, entretanto, foi recuperada com a elevação do Finsocial de 0,5%, para a Cofins de hoje, de 7,6%, assim como o PIS, de 0,65 para 1,65%, sob a alegação de permitir a compensação do tributo, em algumas hipóteses. Por ser, porém, um tributo não partilhável com as outras entidades federativas, transformou-se na estrela maior da arrecadação federal.

Tanto é assim que sua participação no bolo tributário atual foi elevada para aproximadamente 60%, ficando as demais unidades da Federação com apenas 40%. No ponto mais agudo do “nó górdio” tributário, a Comissão preservou a unanimidade do Confaz para a aprovação de estímulos por meio de Convênios, no âmbito do ICMS,abrindo uma única exceção: a possibilidade de aprovação por de 2/3 dos Estados para incentivos fiscais que atendam, simultaneamente, as seguintes condições: 1) aplicação apenas a produtos que saiam da fábrica para outros Estados; 2) o Estado beneficiário tenha uma renda per capita abaixo da renda per capita nacional; 3) prazo de duração do incentivo não superior a 8 anos; e 4) alíquota interestadual de no mínimo de 4%. A nova proposta de lei complementar contemplando esse regime substituiria a LC 24/75.

Paulo de Barros Carvalho e eu convergimos em todas as propostas, dentro da Comissão, apenas divergindo no que concerne à necessidade da unanimidade do CONFAZ para a aprovação de incentivos fiscais regionais. Editamos, com as nossas posições divergentes, o livro “Guerra Fiscal – Reflexões sobre a concessão de benefícios no âmbito do ICMS” (Editora Noeses, 2012) para auxiliar uma reflexão maior sobre a questão, como contribuição ao debate essencial na solução do problema.

Neste breve artigo, para o Digesto Econômico, resumirei, sem preocupação de citações ou referências doutrinárias, a essência de nossos argumentos, mais longamente explicitados naquele livro da Editora Noeses. Interessam-me, para este estudo, os incisos IV, V e VI do § 2º do artigo 155, assim redigidos:

“§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

…………..

IV – resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação;

V – é facultado ao Senado Federal:

a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros;

b) fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da maioria absoluta e aprovada por dois terços de seus membros;

VI – salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto no inciso XII, “g”, as alíquotas internas, nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais;

……….”.

Houve por bem, o constituinte, fortalecendo o princípio desenhado na Lei Complementar 24/75 – de canhestra redação -, estabelecer, conforme o § 2º, incisos IV, V e VI do § 2º do artigo 155 da CF,, todo um sistema de controle da determinação de alíquotas estaduais e interestaduais pelo Senado Federal, objetivando: a) eliminar os riscos de que incentivos outorgados por um Estado tivessem impacto de descompetitividade em relação a Estados que dele recebessem mercadorias com ICM estimulado, mediante a exigência de aprovação de alíquotas mínimas para as operações internas e máximas nas mesmas operações, em caso de conflito entre os Estados; b) estabelecer as alíquotas aplicáveis para as operações interestaduais e de exportação; c) exigir a unanimidade de Estados e DF para aprovar tratamento mais favorável às operações internas –e, implicitamente, para as externas-; d) exigir que as alíquotas internas não fiquem abaixo das previstas para as operações interestaduais, salvo acordo de todos os Estados e Distrito Federal.

E ao falar em Estados e Distrito Federal no que concerne a isenções, incentivos e benefícios, impôs a necessidade de votação unânime, para não provocar favorecimento que desse a qualquer um deles maior competitividade, no mercado interno, o que resta reforçado pela disposição de que as alíquotas internas não sejam inferiores às definidas para as operações interestaduais. E a unanimidade decorre de não ter o constituinte estabelecido “quorum” menor para aprovação dos estímulos fiscais.

O inciso VI, portanto, determina que, só pela deliberação unânime dos Estados, as alíquotas internas podem ser inferiores às interestaduais, muito embora para a definição das alíquotas interestaduais e de exportação –idênticas para Estados e Distrito Federal- o Senado, por maioria absoluta, determinará quais são as alíquotas aplicáveis.

Repito, para alíquotas internas diferenciadas, ou seja, estimuladas entre Estados e Distrito Federal, falou o constituinte em “Estados e Distrito Federal”, o que representa unanimidade, pois não oferta exceções deliberativas, nem a possibilidade de exclusões de Estados ou do Distrito Federal.

Não se referiu a 2/3 ou maioria de tais entidades federativas, como ocorre nas deliberações do Senado, quanto ao voto dos Senadores representantes dos Estados. Vale dizer, tal deliberação terá que ser dos Estados, ou seja, todos eles mais o Distrito Federal. Isto ocorre porque concedidos sem autorização unânime, poderiam provocar descompetitividade. Para a definição de uma alíquota uniforme entre Estados, basta a maioria absoluta do Senado, pois nenhuma descompetitividade será gerada; não havendo mercadorias menos ou mais oneradas, por força de incentivos dados. As alíquotas seriam idênticas, mesmo levando em consideração a existência de regiões diversas de Estados e D.Federal, pois alíquotas uniformes para cada uma delas. Para tal definição, basta, pois, a maioria do Senado, que é a Casa Legislativa da Federação, com representação equalitária de todos os Estados.

Se houver, de qualquer forma, conflito entre os Estados para alíquotas internas –não interestaduais-, apenas por 2/3 o Senado poderá deliberar para fixar ALÍQUOTAS MÁXIMAS, ou seja, as alíquotas válidas para todos os Estados e D.Federal, que não poderão ser ultrapassadas, lembrando-se sempre que as alíquotas internas, não podem ser inferiores às aplicáveis às operações interestaduais.

Neste caso, o Senado age em nome da Federação, prevalecendo pois a possibilidade de “quorum” inferior à unanimidade.

No caso de acordo entre os Estados, não, pois cada Estado fala em nome próprio, razão pela qual a unanimidade é requisito essencial. É de se lembrar que o inciso VI referiu-se

expressamente à letra “g” do inciso XII do § 2º do artigo 155 referente a estímulos fiscais.

Por esta razão, interpreto que a unanimidade, que para incentivos fiscais é exigida do CONFAZ, não é senão um reflexo infraconstitucional do regime de fixação de alíquotas,

imposto pela Constituição ao Senado Federal, ou seja, a) unanimidade deliberativa dos Estados e Distrito Federal para alíquotas estimuladas e diferenciadas internas, sem o piso das alíquotas interestaduais; b) maioria absoluta do Senado para as alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais e de exportação; c) maioria absoluta do Senado para estabelecer alíquotas interestaduais; d) 2/3 dos senadores para fixar alíquotas máximas em caso de conflito; e

e) as alíquotas internas não poderão ser inferiores às interestaduais.

Em outras palavras, o inciso VI estabelece regra deunanimidade para evitar descompetitividade nas deliberações de Estados e Municípios. Por isto, o constituinte não fala em maioria, nem em 2/3, como nos incisos anteriores para definição das alíquotas internas QUE PODERÃO SER INFERIORES ÀS ALÍQUOTAS INTERESTADUAIS, mas em unanimidade, ou seja, a deliberação de todos os entes regionais.

Concluo esta parte do estudo, dizendo que o texto constitucional, quando se refere à deliberação dos Estados e Distrito Federal no tocante a estímulos fiscais outorgados, necessariamente impõe a deliberação de todos os Estados e Distrito Federal, VISTO QUE NÃO ESTABELECEU QUALQUER “QUORUM” MÍNIMO.

Por esta linha de raciocínio, entendo que a unanimidade exigida pelo CONFAZ não decorre da legislação infraconstitucional, mas decorre, à luz da Constituição de 1988, do próprio texto supremo, tese, aliás, fortalecida com a interpretação que agora darei do artigo 146-A da Lei Suprema.

Reza o artigo 146-A da CF:

Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).

Embora aplicável a todos os tributos previstos na lei suprema, diz respeito especialmente ao ICMS, onde mais aguda se faz a descompetitividade, e vem, definitivamente, reforçar a interpretação que ofertei aos retro incisos IV, V e VI, ou seja, de que apenas a concordância unânime de todos os Estados e do Distrito Federal pode justificar isenções, incentivos ou benefícios fiscais diferenciados, a privilegiar um Estado, na competitividade de seus produtos, em relação a outros.

O artigo, porém, dá valor especial à lei complementar como veículo de prevenção à “descompetitividade tributária”, reforçando a interpretação que desde a década de 60 tenho dado a esse instrumento legislativo de que, quando cuidando de normas gerais em matéria tributária, obriga todas as entidades da Federação: é uma lei nacional, uma lei da Federação, produzida pelo aparelho legislativo da União e emprestado a todas as entidades federativas. Tanto é que abre espaço, o constituinte, para a União estabelecer lei federal com igual teor, à evidência, obrigando apenas à própria União.

Admitir que a lei federal produzida poderia, também, obrigar Estados e Municípios nulificaria a produção de lei complementar, pois tanto uma quanto outra poderiam ter a mesma eficácia no mesmo campo de abrangência. Vale dizer, promulgaria a União, uma Lei Complementar ou uma lei ordinária e seus efeitos seriam os mesmos!!! Por respeito ao constituinte, não posso admitir tal exegese.

O que o dispositivo torna claro é que aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios não foi outorgada a mesma faculdade de produzir uma norma geral capaz de obrigar toda a federação, a fim de evitar a descompetitividade. Nitidamente, o artigo 146-A consagra o princípio da “livre concorrência”, esculpido no inciso IV, do artigo 170, assim redigido:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

………

IV – livre concorrência;,

que, à evidência, poderia desaparecer, – embora, a meu ver, esteja implícito em vários pontos da lei suprema – se não fosse explicitado pela Emenda Constitucional n. 45/05.

O artigo 146-A é principiológico, sendo, a meu ver, de aplicação imediata, muito embora, com o advento da lei complementar explicitadora, sua aplicação virá a ganhar forma procedimental.

Ocorre com o artigo 146-A o que ocorreu com o artigo 102, inciso I, da Lei Suprema:

“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

………”,

em que, apesar de a Lei 9868/99 só ter surgido 11 anos depois de promulgada a Constituição, isso não impediu que mais de mil ações diretas fossem propostas e julgadas por rito regimental do próprio STF, dando à norma constitucional aplicação imediata. Só com a Lei 9868/99 é que o rito atual tornou-se obrigatório; mas a ausência de lei por 11 anos, não impediu a aplicação do preceito constitucional. Assim, para o ICMS –antes ICM–, a própria Constituição anterior, como demonstrei na primeira parte deste estudo, já proibia a descompetitividade, ao exigir a unanimidade dos Estados e Distrito Federal para autorização de instituição de incentivos fiscais. É que sua concessão por um Estado, sem o aval dos demais, poderia tornar seu produto menos oneroso, devido à carga de ICMS menor, por força da não cumulatividade, de observância obrigatória pelo Estado receptor de mercadorias.

É de se lembrar que, qualquer política para reequilibrar desequilíbrios regionais, em matéria tributária, só pode ser de responsabilidade da União, como se verifica da leitura do artigo 151, inciso I, da Lei Suprema:

“Art. 151. É vedado à União:

I – instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentesregiões do País; (grifos meus)

…….”.

Nem Estados, nem Municípios têm tal responsabilidade, a não ser que concordem, por unanimidade, com uma política comum de incentivos.

Sabiamente assim agiu o constituinte, pois tem a União –e agora mais do que em 1988, por força das contínuas elevações de alíquotas de COFINS e PIS, tributos não partilháveis- maiores recursos tributários e pode fazer política nacional de estímulos, sendo ESTA A ÚNICA HIPÓTESE DE DESCOMPETITIVIDADE TRIBUTÁRIA admitida pela Lei Suprema, que não fere o artigo 150, inciso II da CF, assim redigido:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

………

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;……”.

Em outras palavras, apenas e exclusivamente a União pode fazer políticas que afetem a competitividade, em prol de desenvolver regiões mais pobres do país. Essa é a única forma de descompetitividade que é considerada constitucional e que não fere nem o inciso II do art. 150, nem o inciso IV do artigo 170, porque viabiliza alcançar o objetivo previsto no art. 3º, III da CF e se coaduna com as regras do artigo 155, § 2º, incisos IV, V e VI da Lei Maior.

Por esta razão, com sede na Constituição –-e exclusivamente na Constituição— é que entendo que a unanimidade dos Estados para autorizar incentivos, estímulos e benefícios no ICMS, que possam reduzir o peso do tributo nas operações internas e interestaduais, gerando, pois, descompetitividade tributária, é elemento fundamental. Está a Lei Complementar 24/75, portanto, recepcionada. Qualquer outra que venha a ser produzida DENTRO DAS FRONTEIRAS PREVIAMENTE ESTABELECIDAS pela Lei Suprema, não poderá fugir deste preceito. A unanimidade do apoio de Estados e Distrito Federal a qualquer tipo de estímulo fiscal a ser instituído no âmbito do ICMS é, a meu ver, princípio fundamental, porque destinado a evitar a descompetitividade interestadual e a preservar a Federação.

O artigo 155, § 2º, letra “g” do inciso XII da Constituição Federal, assim redigido:

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

…………….

XII – cabe à lei complementar:

……..

g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

…….”,

não pode, portanto, quebrar tal preceito fundamental, que permitiu que um tributo de vocação nacional fosse regionalizado, sem que unidades federativas viessem a ser prejudicadas quando contrárias à concessão de estímulos. Vale dizer, que não tenham seus produtos sujeitos à concorrência predatória, em virtude de incentivos concedidos por outras unidades da federação, para os mesmos produtos nelas produzidos.

E isto me leva à observação final deste estudo, ou seja, de que tal preceito é uma cláusula pétrea. Reza o artigo 60, § 4º, inciso I, da Lei Suprema, que:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II – do Presidente da República;

III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

………… § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

……….”.

Como se pode verificar, o dispositivo falou em “abolir”, significando que o sistema federativo é assegurado como cláusula imodificável da lei suprema. É que o sistema federativo poderia restar modificado e sensivelmente desfigurado, passando a ser apenas formalmente federativo, se emendas constitucionais ou leis infraconstitucionais reduzissem à expressão quase nenhuma a autonomia política, financeira ou administrativa das unidades federativas.

Na autonomia financeira é de se compreender inserta a liberdade de decidir sobre seus destinos conforme as regras constitucionais. Não podem, a Constituição ou outras leis, criar condições que retirem das entidades federativas o direito de exercer tal autonomia.

Na autonomia financeira dos Estados, é o ICMS a sua grande fonte de receita, tributo cuja estadualização implica a existência de regras na lei Suprema destinadas a evitar que os Estados sejam privados do direito de dirigir suas políticas regionais, ou que sejam pressionados a conceder benefícios, por autênticos “leilões” provocados por investidores que escolhem o local de sua instalação em função dos benefícios que este ou aquele Estado lhes ofereçam. Na atual guerra fiscal, são os investidores que negociam e impõem às Secretarias dos Estados sua política, obtida, por se instalarem naqueles que lhes outorgarem maiores vantagens. Tal fato representa, de rigor, que a verdadeira política financeira não é definida pelos governos, mas exclusivamente pelos investidores. E, muitas vezes, gera descompetitividade no próprio Estado para estabelecimentos, já há longo tempo lá estabelecidos, que não poderão dos estímulos se beneficiar.

Ora, é exatamente este tipo de “leilão” que a Suprema Corte atalhou recentemente, exigindo que, para a concessão de estímulos no âmbito do ICMS, haja unanimidade autorizativa dos 26 Estados e do Distrito Federal, em clara sinalização de que, agir de forma contrária, sobre ferir a Constituição, DIRETAMENTE, feriria, também, o sistema federativo do Estado Brasileiro.

É que sem autonomia financeira, a autonomia política fica reduzida e a administrativa limitada. A Federação, fragilizada, manter-se-ia apenas por força de um formalismo legal e não de uma autêntica realidade, construída, a duras penas, desde 1891 com a 1ª. Constituição Republicana. Se um Estado sofre, na Federação, desfiguração tributária devido à sistemática não cumulativa do ICMS, sendo obrigado a reconhecer créditos presumidos, mas inexistentes, concedidos por outros Estados, SEM A SUA CONCORDÂNCIA, as empresas estabelecidas em seu território tornam-se descompetitivas e sem condições concorrenciais, dada a invasão de produtos estimulados, à margem do consenso unânime. Nitidamente, o pacto federativo torna-se uma farsa e a Federação, um sistema debilitado, restando a tríplice autonomia (política, administrativa e financeira) seriamente maculada. Por esta razão, entendo que a expressão “abolir” deve ser entendida como abrangendo todas as situações em que o verdadeiro sistema federativo é fragilizado por atos que ponham em xeque a tríplice autonomia de que gozam as unidades federativas, a ponto de se digladiarem, sem objetivo comum e ficarem à mercê dos interesses dos investidores, e não de seu povo ou seu governo para o atendimento do interesse público.

A meu ver, retirar o direito de ?dentro das regras constitucionais de que os Estados não estão obrigados a suportar políticas destinadas a promover o reequilíbrio regional, cabendo esta atribuição exclusivamente à União? o Estado opor-se a incentivos fiscais de ICMS de outra unidade que lhe prejudiquem diretamente, é abolir o verdadeiro pacto federativo, mantendo-se uma Federação apenas formal, o que, manifestamente, não desejaram os constituintes, ao instituírem a regra da unanimidade em nível de Lei Suprema, hoje com conformação legislativa infraconstitucional e jurisprudencial.

A unanimidade exigida para a concessão de incentivos, estímulos ou benefícios fiscais de todos os Estados e Distrito Federal é, a meu ver, cláusula pétrea constitucional, não podendo ser alterada nem por legislação inferior e nem por emenda constitucional, por força do § 4º, inciso I, do artigo 60 da CF.

Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Pacto Federativo e a Guerra Fiscal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2013. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-pacto-federativo-e-a-guerra-fiscal/ Acesso em: 29 mar. 2024