Direito Tributário

A iniciativa de lei em matéria tributária resultando em eventual inconstitucionalidade

A iniciativa de lei em matéria tributária resultando em eventual inconstitucionalidade

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

1. Distinção entre norma tributária e norma orçamentária

 

     Como os tributos – receitas derivadas – integram o orçamento anual, ao lado das receitas originárias e receitas creditícias, são freqüentes as confusões estabelecidas entre as normas de natureza tributária e as normas de natureza orçamentária ensejando, em conseqüência, dúvidas quanto à iniciativa de lei. Essas dúvidas e hesitações ocorrem com maior freqüência, quando as leis tributárias, de iniciativa do Poder Legislativo, por meio de isenções, remissões, anistias ou incentivos fiscais específicos acarretam interferência na execução orçamentária em curso, diminuindo a arrecadação das receitas estimadas e consignadas na lei orçamentária anual. Sempre que isso acontece, grande parte dos estudiosos da matéria entende que essas leis tributárias padecem do vício de iniciativa, porquanto teriam natureza orçamentária.

 

     Entendemos que não se pode definir a natureza da norma – no caso, tributária – pelo seu efeito, qual seja, a sua repercussão no orçamento sob execução, posto que, não seria possível buscar identidade de duas coisas distintas pelo seu resultado. Se isso fosse possível todo o edifício jurídico estaria irremediavelmente comprometido.

 

     A matéria orçamentária é objeto de estudo, pelo menos, por três Ciências, cada qual abordando sob seu enfoque próprio: a Ciência das Finanças, o Direito Financeiro e o Direito Tributário.

 

     Como é sabido, tanto a Ciência das Finanças, quanto o Direito Financeiro estuda a atividade financeira do Estado, que se desdobra em receita pública, despesa pública, orçamento público e crédito público. A primeira, que não é uma Ciência Jurídica, estuda a atividade financeira do Estado sob o prisma estritamente especulativo, e o segundo, sob o prisma jurídico, por isso mesmo conhecido como a disciplina jurídica da atividade financeira do Estado. O Direito Tributário, por sua vez, tem como objeto parte da receita pública, aquela que o Estado faz “derivar” para os seus cofres parcela de riqueza de seus súditos; a receita originária ou industrial, bem como a receita creditícia (crédito público ou dívida pública) são objetos estranhos ao Direito Tributário, pois só interessam ao Direito Financeiro. Na sintética e esclarecedora definição de Ruy Barbosa Nogueira, “Direito Tributário é a disciplina da relação entre fisco e contribuinte, resultante da imposição, arrecadação e fiscalização dos impostos, taxas e contribuições” (Curso de Direito Tributário, Ed. Saraiva, 9ª ed., p. 31).

 

     O fato de a receita tributária integrar o orçamento não pode conduzir à confusão entre o tributo e o orçamento e, consequentemente, entre a norma tributária e a norma orçamentária.

 

     Orçamento, na opinião unânime dos autores – aliás, isto está dito na nossa Carta Magna – é lei que contém previsão de receitas e fixação de despesas, programando a vida econômica e financeira do Estado, por um certo período de tempo. É lei de natureza concreta. Integra objeto de Direito Financeiro, que nada tem a ver com a relação jurídica entre Estado e contribuintes, própria da norma tributária, que se caracteriza pela generalidade e abstração. O destinatário imediato da norma orçamentária ou de Direito Financeiro não é o particular, mas o agente público, ao passo que, o destinatário imediato da norma tributária ou de Direito Tributário é o contribuinte ou o responsável tributário.

 

 

2. Só as leis orçamentárias são de iniciativa exclusiva do Executivo

 

     A Constituição Federal vigente contempla três leis orçamentárias, todas de iniciativa do Executivo: a lei do plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e as leis orçamentárias anuais (orçamento fiscal, orçamento de investimento e orçamento da seguridade social) conforme art. 165(1), cabendo privativamente ao Presidente da República o envio dos projetos respectivos ao Congresso Nacional segundo art. 84(2), XXIII e § 6º do art. 166(3). Disposições equivalentes estão na Constituição Estadual, em seus artigos 174 e 47, XVII e na LOMSP, arts. 137 e 69, X.

 

     Não há prescrição de iniciativa do Executivo ou de iniciativa privativa do Presidente da República em matéria tributária a não ser em relação a Territórios, conforme letra “b”, do inciso II, do § 1º, do art. 61 da CF, onde se refere à matéria tributária e orçamentária, circunstância que, por si só, revela tratar-se de coisas distintas.

 

     A Carta Política anterior, também cometia competência exclusiva ao Presidente da República na iniciativa de leis que “disponham sobre matéria financeira” (art. 57, I da Emenda 1/69), e quando fosse para abranger norma tributária o fazia de forma expressa, como no art. 55, II em que, nos casos de urgência ou de interesse público relevante autorizava o Chefe do Executivo a expedir decretos-leis em matéria de “finanças pública, inclusive normas tributárias”.

     Positivamente, inconfundíveis as leis orçamentárias, de iniciativa exclusiva do Executivo, e leis tributárias, de iniciativa do Executivo e do Legislativo.

 

     Assim, quando o Legislativo toma iniciativa de lei em matéria tributária descabe falar-se em vício de inconstitucionalidade formal, isto é, em usurpação de competência privativa do Executivo no que tange à deflagração do processo legislativo.

 

(1) Art. 165 – “Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:

     I – o plano plurianual;

     II – as diretrizes orçamentárias;

     III – os orçamentos anuais”.

(2) Art. 84 – “Compete privativamente ao Presidente da República:

     XXIII – enviar ao Congresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstos nesta Constituição”.

(3) Art. 166, § 6º – “Os projetos de lei do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e do orçamento anual serão enviados pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, nos termos da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.

 

 

3. Inconstitucionalidade da lei tributária que interfere na execução do orçamento em curso

 

     Uma coisa é reconhecer a competência concorrente em matéria de elaboração de norma tributária e, outra coisa bem diversa é afirmar a legitimidade e constitucionalidade de o Poder Legislativo, por meio de instrumento tributário, interferir na execução orçamentária em curso, obrigando o Executivo a remanejar as dotações orçamentárias, ou até mesmo a alterar as metas prioritárias antes aprovadas. O Executivo não pode ser tolhido em sua ação de executar a política governamental (plano de ação do governo) de conformidade com os recursos orçamentários previamente aprovados, principalmente se atentarmos para o fato de que a aprovação da lei orçamentária anual, pelo Parlamento, implicou a aprovação do programa de governo. Isso representaria uma afronta direta ao princípio da independência e harmonia dos Poderes, inserto no art. 2º da CF, no art. 5º da CE e no art. 6º da LOMSP. Tão importante é esse princípio que a Constituição Federal o incluiu entre as cláusulas pétreas tornando-o insusceptível de supressão ou alteração.(4) Assim, é necessária que a lei tributária não implique a diminuição da receita estimada.

 

(4) Art. 60, § 4º – “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

     III – a separação dos Poderes”.

 

 

4. A lei de diretrizes orçamentárias e as alterações da legislação tributária

 

     Importante assinalar que, após o advento da lei de diretrizes orçamentárias, pela Carga Magna de 1988, há possibilidade de a lei isentiva interferir na estimativa orçamentária mesmo que tenha sido promulgada antes da aprovação da lei orçamentária anual. É que a lei de diretrizes orçamentárias tem por objetivos, dentre outros, os de orientar a elaboração da lei orçamentária anual e dispor sobre as alterações na legislação tributária, conforme prescrição do § 2º, do art. 165 da CF. Idêntica disposição está contida no § 2º do art. 137 da LOMSP. Isso significa que, ao orientar a elaboração da lei orçamentária anual, a lei de diretrizes deve levar em conta as isenções ou os incentivos fiscais em vigor, sem o que não seria possível oferecer as estimativas corretas das receitas tributárias. De fato, com base na lei de diretrizes “o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia” (art. 165, § 6º da CF e art. 137, § 6º da LOMSP). Por causa disso, a lei isentiva deve anteceder a elaboração do projeto de lei de diretrizes, fato que reduz o período em que o Legislativo pode, validamente, propor a diminuição de tributos vigentes, por qualquer uma das espécies de incentivos fiscais. No Município de São Paulo esse prazo é bem exíguo.

 

     Realmente, segundo a LOMSP o projeto de lei de diretrizes orçamentárias deve ser enviado à Câmara no dia 1º de abril de cada ano, ao passo que, o projeto de lei orçamentária anual deverá ser enviado no dia 30 de setembro (art. 138, § 6º, incisos I e II). Não há dúvida, pois, que a Câmara Municipal terá que propor e aprovar a lei tributária que implique a redução de receita, bem antes da elaboração do projeto de lei orçamentária anual. Durante a tramitação legislativa deste último projeto só serão permitidas emendas que sejam compatíveis como plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias, conforme determina o inciso I, do § 3º, do art. 138 da LOMSP, fato que confirma o que foi dito linhas atrás. Em outras palavras, o projeto de lei orçamentária anual promove as estimativas de receitas com base nos dados fornecidos pela lei de diretrizes orçamentárias que, por sua vez, para projetar o montante das receitas leva em conta as isenções fiscais, remissões, anistias, etc. vigentes.

 

     Logo, implicará a diminuição de receita estimada, ainda que por via indireta, sempre que a lei isentiva entrar em vigor após colhidos todos os elementos necessários à formulação da proposta de lei de diretrizes orçamentárias, que irá embasar o projeto de lei orçamentária anual. Uma forma de evitar essa dúbia situação de inconstitucionalidade, por afronta ao princípio da separação dos Poderes, seria a de diferir, em hipóteses tais, a vigência da lei isentiva para o exercício subsequente àquele objetivado pelo orçamento aprovado ou em discussão. Quando o efeito da lei isentiva atinge o orçamento sob execução a sua inconstitucionalidade passa a ser manifesta. Aliás, neste caso, qualquer instrumento normativo de iniciativa da Câmara, independentemente de sua natureza tributária ou não, agride, às escâncaras, o princípio constitucional da independência e harmonia dos Poderes. Quando, porém, a lei tributária, por não ter sido levada em conta pela lei de diretrizes orçamentárias, importa na incorreta estimação da receita tributária pela lei orçamentária anual a sua inconstitucionalidade não é indiscutível, por inexistir afronta direta ao princípio da separação dos Poderes.

 

 

5. Conclusões

 

     Concluindo o tema exposto, pode-se afirmar que a norma tributária, que não tem e nem pode ter natureza de norma orçamentária, não poderá causar vício de inconstitucionalidade formal, por invasão da esfera de competência privativa do Executivo, no que tange à iniciativa de lei, mas, poderá conter vício material de inconstitucionalidade, a exemplo de qualquer instrumento legislativo de outra natureza, sempre que repercutir na execução do orçamento, atingindo o princípio do equilíbrio orçamentário, inserto na própria formulação da respectiva proposta legislativa anual.

 

SP, 08.04.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. A iniciativa de lei em matéria tributária resultando em eventual inconstitucionalidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/a-iniciativa-de-lei-em-materia-tributaria-resultando-em-eventual-inconstitucionalidade/ Acesso em: 28 mar. 2024