Direito Tributário

ISS – majoração e criação de obrigação acessória inútil por decreto

ISS – majoração e criação de obrigação acessória inútil por decreto

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Complementando os comentários anteriores sobre a Lei nº 13.476/02, que introduziu inovações na legislação do ISS, neste artigo, enfocaremos duas questões: o aumento abusivo do imposto sobre serviços e a inútil obrigação acessória instituída por decreto, no equivocado pressuposto de que a revogação do art. 6º da Lei nº 10.423/87 implicou criação dessa obrigação.

    

O art. 1º da Lei nº 13.476/02 conferiu nova redação ao art. 4º da Lei nº 10.423/87, nos seguintes termos:

 

“Art. 4º – Sempre que os serviços a que se referem os itens 1, 4, 7, 24, 51, 87, 88, 89, 90 e 91, da relação consignada pelo artigo 1º, forem prestados por sociedades de profissionais, o Imposto devido será calculado mediante a multiplicação da importância anual de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais) pelo número de profissionais habilitados, sócios, empregados ou não, que prestem serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal nos termos da lei aplicável.

§ 1º – As sociedades a que se refere o “caput” são aquelas cujos profissionais habilitados, sócios, empregados ou não, sejam pessoas físicas, não consideradas como tais as firmas individuais, habilitadas ao exercício da mesma atividade profissional, dentre as especificadas nos itens mencionados no “caput”, e que prestem os serviços de forma pessoal, em nome da sociedade.

§ 2º – Não são consideradas sociedades de profissionais as que:

I – tenham como sócio pessoa jurídica;

II – sejam sócias de outra sociedade;

III – desenvolvam atividade diversa daquela a que estejam habilitados profissionalmente os sócios;

IV – tenham sócio que não preste serviço pessoal em nome da sociedade, dela participando tão-somente para aportar capital ou administrar;

V – explorem mais de uma atividade de prestação de serviços.

§ 3º – Quando não atendido qualquer dos requisitos fixados no “caput” e no parágrafo 1º ou quando se configurar qualquer das situações descritas no parágrafo 2º, o Imposto será calculado com base no preço do serviço, mediante a aplicação da alíquota correspondente fixada pela Tabela em anexo.

§ 4º – A importância anual prevista no “caput” será atualizada na forma do disposto no artigo 2º e seu parágrafo único, da Lei nº 13.105, de 29 de dezembro de 2000.”

 

    

Conforme prescrição do art. 3º da Lei nº 10.423, de 29-12-1987, mantido pela lei sob comento, ‘quando se tratar de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, na forma da Tabela em anexo, sem se considerar a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho’. Nessa hipótese, o imposto deverá ser pago por alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, tudo na forma da Tabela, atualmente anexa à Lei nº 13.476/02, oscilando de R$150,00 à R$600,00 por ano. As alíquotas proporcionais, por sua vez, variam de 2% a 5% para os itens de atividades mencionadas. Evidentemente, essas alíquotas variáveis só têm aplicação nas hipóteses de desqualificação da forma de ‘trabalho pessoal do próprio contribuinte’.

    

Porém, em se tratando de sociedade de profissionais, o tratamento dispensado é completamente diferente, embora o serviço devesse ser, necessariamente, executado pelo mesmo profissional liberal. De um lado, a nova lei introduziu vários requisitos a serem preenchidos para a configuração da sociedade de profissionais como se verifica dos parágrafos 1º e 2º. Faltando qualquer um desses requisitos, a sociedade deverá recolher o imposto com base no preço do serviço, mediante aplicação da alíquota proporcional de 5%, fixada na tabela própria (§ 3º). De outro lado, promoveu um brutal aumento do imposto que, de R$202,54 por ano, passou para R$1.200,00 anual, por número de profissionais habilitados, sócios, empregados ou não. Se aplicasse o índice de variação do IPCA, previsto na Lei nº 13.105/00, mantido pela lei sob comento, o valor da alíquota fixa seria de R$227,91 (202,54 x 12,53% ).

    

Em ambas as hipóteses, o legislador municipal acatou a determinação da lei de regência da matéria (art. 9º, §§ 1º e 3º do DL nº 406/68), instituindo a alíquota fixa e a base de cálculo segundo a natureza do serviço, e no caso de sociedade, introduzindo, também, a quantidade de profissionais a ela vinculados. Porém, cometeu um pecado na mensuração do valor da alíquota fixa, promovendo um aumento brutal, abusivo e desarrazoado. Anulou a finalidade visada pelo DL 406/68, que outorgou um tratamento privilegiado aos profissionais liberais e a sociedades por eles constituídas, vedando a utilização do preço do serviço como base de cálculo do ISS. A finalidade última, era a de evitar bi-tributação econômica (IR e ISS) para categoria de profissionais que o legislador complementar considerou útil ou necessária à sociedade. Graças à fúria fiscal do Município, o tiro saiu pela culatra. Sociedades com grande número de profissionais ficaram inviabilizadas economicamente. Esse valor de R$1.200,00 anuais, por profissional liberal integrado na sociedade, que representa um aumento de 492,5% em relação ao exercício passado, se confrontado com o valor de R$600,00 anuais, que cada profissional liberal deve pagar individualmente, fere o princípio constitucional da isonomia. Não há razão para esse tratamento diferenciado, como se o profissional integrado na sociedade auferisse rendas do capital e não do trabalho por ele desenvolvido. Mas, não é só. O inusitado aumento ofende, às escâncaras, os princípios da moderação e da razoabilidade, caracterizando efeito confiscatório do tributo, vedado pelo art. 150, IV da CF. Como já afirmamos, para saber se um tributo é confiscatório ou não, deve-se analisar o mesmo sob o princípio da capacidade contributiva que, por sua vez, precisa ser examinado em consonância com o princípio da moderação ou da razoabilidade da tributação, verificando, ainda, se a eventual onerosidade da imposição fiscal se harmoniza com os demais princípios constitucionais, garantidores do direito de propriedade, da liberdade de iniciativa, da função social da propriedade etc’ (Cf. nosso Direito tributário e financeiro, Atlas, 2002, 11ª edição, p. 359).

    

A fúria legislativa, neste caso, agride, ao mesmo tempo, os princípios da capacidade contributiva, da vedação do efeito confiscatório do tributo e da isonomia tributária, expressos nos artigos 145, § 1º, 150, IV e 150, II da CF, respectivamente, bem como o princípio da razoabilidade implícito no art. 37 da CF e expresso no art. 111 da CE. A decorrência lógica da tributação confiscatória é a afronta ao princípio do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, insculpido nos artigos 5º, inciso XIII e 170 e seu parágrafo único, da Constituição da República, inibindo a liberdade de iniciativa que, juntamente com a liberdade de contratação e de liberdade de lucro, constituem os marcos mínimos que dão embasamento ao regime econômico privado, adotado pela Constituição Federal.

    

O decreto regulamentador fez pior. No equivocado pressuposto de que a revogação da isenção de a sociedade de profissionais escriturar livros e emitir notas fiscais implicou, ipso fato, no ‘restabelecimento’ dessa obrigação, que nunca existiu, por incompatível com o regime da tributação fixa, o art. 95 e 109 do Decreto nº 42.8360 instituiu a obrigação de escriturar livros fiscais e de emitir notas fiscais, respectivamente. Fixou o início do cumprimento dessa obrigação, pelas sociedades de profissionais, a partir de 8/4/2003 (art. 223). Nada mais absurdo.

    

Essa exigência é flagrantemente ilegal e despropositada, uma vez que essas sociedades não pagam ISS com base na remuneração dos serviços que prestam, nos termos da legislação municipal. A obrigação de escriturar livros e emitir notas fiscais é absolutamente incompatível com o regime da tributação fixa anual. Pergunta-se, em que essa obrigação acessória esdrúxula e desarrazoada, imposta contra a letra e espírito da lei, ajudaria na eficiência da fiscalização e da arrecadação tributária?

    

De fato, nos termos do artigo 113, § 2º do CTN:

 

“A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.”

 

    

Logo, se a emissão de notas fiscais e a escrituração dos livros, nos quais estará expresso o valor dos serviços prestados, em nada interessará ao fisco no que concerne à fiscalização ou arrecadação do tributo, qual seria a causa desta obrigação acessória? Não se sabe, nem se descobre.

    

Nos termos da lei (§ 3º do art. 4º da Lei nº 10.423/87, com a redação dada pela Lei nº 13.476/2002), a sociedade profissional passa a pagar com base no preço do serviço prestado e, por conseguinte, passa a emitir nota fiscal a ser escriturada em livro próprio, somente na hipótese de deixar de cumprir os requisitos mencionados no caput do referido art. 4º e seus parágrafos 1º e 2º. Veja-se o que diz o citado § 3º:

 

§ 3º – Quando não atendido qualquer dos requisitos fixados no “caput” e no parágrafo 1º ou quando se configurar qualquer das situações descritas no parágrafo 2º, o Imposto será calculado com base no preço do serviço, mediante a aplicação da alíquota correspondente fixada pela Tabela em anexo.

 

    

Tem-se, portanto, que somente se for desenquadrada do regime especial da tributação fixa é que a sociedade de profissionais ficará sujeita à tributação pelo preço do serviço, à taxa de 5% e, por conseguinte, sujeitar-se-á, também, às obrigações acessórias decorrentes, no caso, escrituração e emissão de documentos fiscais.

    

Esse ato regulamentar, instituidor de obrigação acessória, não tem menor apoio na lei regulamentanda e, portanto, afronta o art. 99 do CTN, que prescreve:

 

“Art. 99 – O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas em lei.”

 

    

Logo, é ato timbrado de improbidade administrativa, que atenta contra os princípios da administração pública, ao teor do art. 11 da Lei nº 8.429, de 2-6-1992. O legislador palaciano, como que por um sadismo, cria um ônus desnecessário para contribuintes, favorecidos pela tributação fixa anual, obrigando-os à prática rotineira e cansativa de atos inúteis, sem menor proveito para a Administração Tributária Municipal, que já recebe o imposto, por antecipação, na forma de tributação fixa anual.

    

Qualquer outra obrigação acessória, que efetivamente concorresse para a eficiência da fiscalização e da arrecadação seria legítima. Nunca a obrigação de escriturar livros e emitir notas fiscais, absolutamente incompatível com o regime adotado pela lei municipal, consistente na tributação fixa anual. Neste caso, a Administração não tem, e nem pode ter interesse em saber quanto a sociedade de profissionais recebeu a título de preço dos serviços prestados, a menos que se confunda a vontade da lei, a vontade da Administração com a vontade do agente público, que quer impor uma obrigação legalmente inexistente e incompatível com o imposto cobrado, tão só pelo prazer de bisbilhotar.

    

Ao que tudo indica, a autoridade que promulgou o Decreto, ora guerreado, confundiu revogação da isenção da obrigação acessória, por desnecessária, com criação dessa obrigação. Ora, uma lei que revoga a isenção não pode implicar criação de obrigação. A obrigação só pode surgir de lei. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei (art. 5º, II da CF). Se for revogada, por exemplo, a isenção de imposto, na hipótese abrangida pela imunidade, não há de se concluir que passou a incidir o imposto. E a legislação municipal é rica na concessão de isenção tributária para os casos contemplados pela imunidade. No caso sob comento, o art. 31 da Lei nº 13.476/02 revogou o art. 6º da Lei nº 10.423/87, porque aquele dispositivo tinha mero caráter interpretativo. A desnecessidade de escriturar livros e emitir notas fiscais decorria do próprio regime de tributação fixa anual, adotado pela lei. Qualquer outra obrigação acessória seria útil à Administração Tributária, menos a de escriturar livros e emitir notas fiscais.

    

Em suma, diante da falta de razoabilidade, de ausência de válido pressuposto ou de causa jurídica bastante para legitimar sua instituição, a obrigatoriedade de emissão de notas fiscais e de sua escrituração em livros próprios, constitui exigência exorbitante, abusiva e inválida perante a ordem jurídica, afastável por via do writ.

 

SP, 20.02.03.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. ISS – majoração e criação de obrigação acessória inútil por decreto. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/iss-majoracao-e-criacao-de-obrigacao-acessoria-inutil-por-decreto/ Acesso em: 29 mar. 2024