Direito Tributário

Sistema tributário desfigurado

Sistema tributário desfigurado

 

 

Ives Gandra Silva Martins*

 

 

Uma das características da evolução dos sistemas tributários é de que, gradativamente, os tributos destinados à manutenção das estruturas burocráticas e atendimento de necessidades gerais do Estado (impostos) vão perdendo importância para os tributos vinculados à determinadas atividades (taxas e contribuições em geral, entre elas as sociais, ambientais e de intervenção no domínio econômico), em face da integração, cada vez maior, entre o Estado e a sociedade, na construção de um Estado Democrático equilibrado.

 

   Os princípios que regem as duas categorias de imposições (impostos e tributos vinculados) são nitidamente distintos, apesar de um resíduo de princípios que lhes é comum -como, por exemplo, a equidade, a legalidade, a capacidade contributiva, o efeito não-confisco e outros- e que promove a eficiência de um sistema tributário justo.

 

   A importância crescente, no mundo inteiro, dos tributos vinculados decorre, em grande parte, da necessidade de o Estado não ficar na dependência de suas receitas tradicionais e utilizar imposições fiscais estimuladoras, reguladoras ou contraprestacionais, que permitem, à evidência, maior transparência em sua utilização e maior controle pela sociedade.

 

   A parafiscalidade e a extrafiscalidade, que exteriorizam tal atuação do Estado, como demonstra Ricardo Lobo Torres, em seu estudo para livro “O tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza” (Ed. Forense, 2007), de minha coordenação, enfatiza tais aspectos da moderna fiscalidade no mundo.Esta é a razão pela qual preocupa a pretendida junção da Receita Previdenciária com a Receita Fiscal, criando-se uma super-estrutura de administração de tributos com características absolutamente distintas.

 

   Tais receitas tributárias, estão inclusive ligadas a ministérios distintos. Ao da Previdência cabe administrar seu orçamento, de natureza nitidamente social. Ao da Fazenda, gerar receita para a Administração do Estado, como um todo.

 

   As contribuições sociais, principalmente as previdenciárias, têm nítida coloração de Estado do Bem Estar Social, vale dizer, devem ser administradas de acordo com as necessidades de programas sociais. Por exemplo, ninguém melhor do que os ministérios da Previdência ou da Educação para definir, nesta área sensível da Administração (programas de Seguridade), a forma de coaptar a participação das entidades privadas filantrópicas ou sem fins lucrativos, mediante concessão de isenções ou reconhecimento de imunidades constitucionais, visto que complementam a Seguridade Social.

 

   Por outro lado, ninguém melhor que o Ministério da Fazenda para definir política fiscal, superávits primários, níveis da arrecadação, esforço fiscal, a fim de que o Estado possa ter orçamentos equilibrados.

 

   Ora, nem o ministro da Fazenda tem preocupação imediata com o bem estar social do povo, uma vez que o foco de sua atuação é a finalidade fiscal, nem o Ministério da Previdência deve estar subordinado -senão em linhas gerais- a fazer política fiscal, à custa de suas funções nitidamente sociais.

 

   A junção dos dois tipos de imposições e das duas políticas distintas da Administração Pública sob um único Ministério e a um único departamento (Receita Federal), significa, de rigor, subordinar toda a política social, ambiental e de desenvolvimento aos exclusivos interesses arrecadatórios do Estado, de vez que o único e exclusivo objetivo dessa Pasta, nos últimos 15 anos, tem sido aumentar cada vez mais a arrecadação e o peso da carga tributária sobre o contribuinte, mesmo que a título de gerar, exclusivamente, “superávits primários”.

 

   A criação, portanto, de uma Super-Receita -será um órgão mais forte do que qualquer outro do Poder Executivo- não só esvazia o Ministério da Previdência, como torna permanente o risco de que, em sua política de que o céu é o limite para o aumento de tributos, venha a provocar distorções, desequilíbrios, desajustes, nas interpretações da legislação tributária “pro domo sua”, desfigurando as finalidades extrafiscais das contribuições previdenciárias e fragilizando, ainda mais, a participação da sociedade civil como “longa manus” do Estado, nas áreas sociais.

 

   Enquanto o Brasil , por não querer mexer na esclerosada máquina burocrática, estiver preso a produzir “superávits primários tranquilizadores”, a Receita Federal terá como exclusiva finalidade obtê-los, mesmo ao preço de violências à legalidade. Ora, se também tiver o controle das receitas vinculadas de natureza previdenciária ou social, certamente desfigurará, por inteiro, a verdadeira razão de ser de tais contribuições, descaracterizando-as, mediante interpretações, convenientes e coniventes da lei.

 

   Em Congresso Interamericano de que participei, em Buenos Aires, no ano de 1978, discutia-se se o “princípio da ilegalidade eficaz” não seria tão importante como o da “legalidade”, nos países latino-americanos, pois tudo aquilo que é arrecadado ilegalmente pelo Estado e não contestado pelo contribuinte, por temor, falta de recursos ou conhecimento, transforma-se em receita orçamentária.

 

   E, no Brasil, em que qualquer discussão tributária dura anos, à evidência, muitos contribuintes preferem pagar o ilegal, a permanecer por décadas litigando com o Estado. Por esta razão, temo que a criação de uma Super-Receita, sobre tirar ainda mais direitos dos contribuintes -que ficarão mais distantes das “cúpulas normativas” da entidade- certamente terminará por distorcer a verdadeira essência das contribuições de natureza previdênciária.

 

   Quando a maior parte dos países simplifica seus sistemas tributários (mantendo como principais tributos apenas o IVA, e o I.Renda, em quase todo o mundo) e desvinculam as imposições sociais, ambientais, de intervenção ou contraprestacionais, das políticas exclusivamente fiscais, para assegurar sua destinação específica ao atendimento das necessidades básicas do ser humano, para crescimento da sociedade, o Brasil, com a confiscatória carga tributária de 38,5% -sem se considerar nela as penalidades- caminha na contramão. Como já ocorreu com a CPMF, Cofins e outras exações, se aprovada a Super-Receita, a maioria das contribuições passará a ter este rótulo, mas, de rigor, transformar-se-á em impostos de fato, para atender às necessidades do “Estado Fiscal”.

 

   A matéria merece, portanto, atenta reflexão.

 

 

* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra Silva. Sistema tributário desfigurado. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/sistema-tributario-desfigurado/ Acesso em: 28 mar. 2024