Direito Tributário

O Grande Irmão Tributário

O Grande Irmão Tributário

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

George Orwell é hoje o autor mais revisitado pelo Fisco Brasileiro. Recente despacho do Min. Palocci (D.O. 29/09/04) outorgou poderes de “Grande Irmão” a todos servidores federais vinculados a administração orçamentária para determinarem a quebra de sigilo bancário e quaisquer informações referentes a cidadãos brasileiros e residentes a fim de que, no dizer irônico do parecerista “compartilhar a guarda de sigilo”, tudo sem autorização do Judiciário.

 

S.Exa., a quem rendo minha homenagem por notáveis acertos na política econômica, à evidência, não pode ser elogiado por esta demonstração de vocação totalitária, violência a direitos fundamentais e maculação de cláusulas pétreas da Constituição.

 

A Constituição é manifestamente pisoteada. O artigo 5º, incisos X e XII da Constituição Federal resta atirado no calabouço da Ditadura e as “luzes” de seus auxiliares provocam fantástico curto circuito nos mais fundamentais direitos da Democracia e da Cidadania.

 

O Poder Judiciário –poder neutro— é escanteado, pois o Fisco, que é parte nos litígios entre Tesouro e o contribuinte, passa também a ser juiz, no melhor estilo robesperriano, quando, na “era do terror”, os juízes togados franceses foram afastados e as decisões passaram para os Tribunais populares, gerando o maior banho de sangue da história da França (1792-94).

 

Em parecer que Miguel Reale e eu ofertamos a OAB-Seccional de São Paulo (Dialética 89-145), transcrevemos inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal declarando que nem mesmo os membros do Ministério Público podem quebrar o sigilo bancário –a não ser de servidores da Administração Pública direta ou indireta—sem autorização judicial, pois carecem de imparcialidade própria do Poder Judiciário.

 

Esta é a razão pela qual até a Lei Complementar n. 105/01, que está tendo sua constitucionalidade contestada em duas ações diretas de inconstitucionalidade (CNI e CNC), não admite a extensão que se pretende dar ao “compartilhamento de sigilo” pretendido pela ilustre procuradora, que parafraseou o digno Secretário Rachid, em sua frase de que a transferência de dados dos contribuintes do setor bancário para a Receita, representava apenas “a transferência da guarda de sigilo dos bancos para o Tesouro Nacional!!! Agora, a nobre procuradora, num plagio –que acredito autorizado– declara que aquela guarda de sigilo será compartilhada!!! E admite que poderá transferir a outros servidores de outras entidades federativas e da Administração Pública em geral, tornando o compartilhamento de sigilo, algo a ser guardado por mais de 1 milhão de servidores!!!

 

É de se lembrar que a Receita Federal não é a melhor guardiã de sigilo. Lembre-se o episódio ainda não esclarecido de mais de 1 milhão de declarações de contribuintes que chegaram às mãos de jornalistas, seqüestradores, narcotraficantes e do público em geral.

 

Estamos começando a entrar numa Ditadura semelhante aquela imaginada no romance “1984”. A CPI do Banestado quebrou o sigilo –sem qualquer prova— de meio milhão de cidadãos e estes dados, embora salvaguardados pela Justiça, continuam lacrados no Congresso Nacional, sem qualquer justificação.

 

As trevas da ditadura, de controle gestapiano, de falta de privacidade, dos métodos da KGB, que permitiam manter a vida de cada cidadão fiscalizada, como Orwell apresentou em seu notável romance parecem envolver as autoridades governamentais, inclusive o excelente Ministro, que é Palocci. E o mais interessante de tudo o que tem sido desventrado aos jornais nestas revelações quebradas, curiosamente, jamais tal quebra ocorre em relação aos aliados do governo. Basta verificar-se a CPI do Banestado, em que entre os inúmeros nomes revelados à imprensa ou pela imprensa descobertos não se encontravam os dos inúmeros seguidores do Presidente. É que também parecem imitar um outro livro de Orwell (A revolução dos bichos) que afirmava “que todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.

 

Que o Presidente Lula e o Ministro Palocci compreendam que esta quebra permanente de direitos dos cidadãos é antidemocrática e que restabeleçam o princípio de que todo o cidadão tem direito à sua privacidade, deixando ao Poder Judiciário a função de permitir a quebra de sigilo por parte do Fisco, sempre que haja indícios de sonegação ou atos ilícitos, mas que garanta o povo contra a arbitrariedade fiscal. Só assim, há de se manter a democracia, que se torna cada vez mais frágil, com atos como este aqui comentado.

 

* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Grande Irmão Tributário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-grande-irmao-tributario/ Acesso em: 29 mar. 2024