Direito do Trabalho

Aplicação no processo do trabalho do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no novo Código de Processo Civil

Application in the labor procedure of the incident of disregarding of legal personality provided in the new Code of Civil Procedure

Resumo

O novo Código de Processo Civil instituiu um regramento procedimental específico para a desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de uma inovação no campo processual e não no direito material, de forma que as hipóteses de aplicação do instituto em si não foram alteradas. Subsiste hoje na doutrina e jurisprudência acirrada discussão a respeito do cabimento do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho estabelece que as normas de direito processual comum serão aplicadas no processo trabalhista apenas quando for a legislação especializada omissa e houver compatibilidade, requisitos este que, em princípio, se encontram no caso do incidente da desconsideração da personalidade jurídica.

Palavras-chave: Incidente. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Processo do Trabalho. Omissão. Compatibilidade.

Abstract

The new Code of Civil Procedure created a specific procedural rule for disregarding the legal entity. It is an innovation in the procedural field and not in the substantive law, therefore, the hypotheses of application of the institute itself have not changed. Currently, there is a strong discussion in the academic and jurisprudence fields regarding the applicability of the incident of disregarding the legal entity in the labor process. The Labor Code establishes that the rules of common procedural law will be applied in the labor process only when the specialized legislation lacks provision and when there is compatibility, requirements that, in principle, are present in the case of the incident of disregarding the legal entity.

Key words: Incident. Disregarding of Legal Personality. Labor Procedure. Omission. Compatibility.

 Introdução

Com o passar dos anos, verifica-se que foi instalado um sistema de insegurança jurídica no direito no que se refere à concreta prestação jurisdicional. Diversas circunstâncias contribuíram para a falta de efetividade no momento da satisfação de créditos que aflige o direito atualmente, como, por exemplo, a evolução dos meios fraudadores de credores.

Como bem afirma o doutrinador Hermelino de Oliveira Santos, a prestação jurisdicional não se restringe à declaração de um título executivo, mas à sua concreta entrega ao credor.

Embora de forma morosa, o direito, tanto material como processual, foi obrigado a se adaptar de maneira a criar medidas para coibir as tentativas de frustração de créditos por parte dos devedores, principalmente no que diz respeito a fase de execução, que visa a efetivar a entrega da tutela jurisdicional.

Nesse diapasão, surgiu no sistema jurídico da common law a chamada doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, que visa, em suma, à ignorância da existência da pessoa jurídica para a extensão da responsabilidade patrimonial, a fim de satisfazer determinado crédito em determinados casos em que for constatado abuso de direito e fraude contra credores.

Hoje, difusa e evoluída perante todo sistema jurídico pátrio, a doutrina que entende ser cabível a invocação do ato de levantar o véu da personalidade jurídica é amplamente estudada e aplicada, principalmente no ramo do direito do trabalho. A relevância para esta área jurídica decorre fundamentalmente da natureza alimentar e prioritária do crédito do empregado, que com o intuito de assegurar a sua concreta satisfação, utiliza-se de todos os meios executivos existentes.

Ocorre que, em muitos casos, sua aplicação tem sido realizada de forma abusiva. Isto ocorre principalmente pela falta de positivação, até então, de um sistema procedimental da aplicação da doutrina.

Visando coibir os constantes abusos em sua utilização, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, o novo Código de Processo Civil instituiu um regramento procedimental específico para a desconsideração da personalidade jurídica.

Preocupado com os possíveis impactos das mudanças no direito processual comum no processo do trabalho, amparado nos artigos 769 e 889 da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como no artigo 15 do novo Código de Processo Civil, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa nº 39/2.016, na qual, em suas próprias palavras na exposição de motivos, mais do que aconselhar, impõe um posicionamento sobre diversas matérias, dentre elas o reconhecimento da aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista.

A orientação do Tribunal Superior do Trabalho acirrou os debates doutrinários e jurisprudenciais acerca da aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho.

Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar esta controvérsia acerca da aplicabilidade do procedimento previsto no novo Código de Processo Civil sob uma perspectiva cientifica, legal e à luz do posicionamento que vem manifestando a jurisprudência.

Para tanto, no intuito de contextualização temática, sem a pretensão de esgotar os assuntos, que isoladamente ensejariam longos estudos, inicialmente serão apresentadas noções gerais sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Em sequência, será feita a análise das regras de aplicação subsidiária do direito processual comum no processo do trabalho. Por fim, será analisado a compatibilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista.

1.1.  Conceito

Como bem assinala Osmar Vieira da Silva, para se entender o conceito de desconsideração da personalidade jurídica deve-se compreender a utilização da expressão desconsideração, sendo que para o doutrinador o termo é utilizado “para indicar ignorância para um caso concreto, da personificação societária”[1], ou seja, a existência da personalidade atribuída legalmente será ocultada em situação específica.

Flávia Lefèvre Guimarães, compartilhando esse entendimento, afirma em sua obra sobre a desconsideração da personalidade jurídica que a doutrina se trata do ato de “ignorar a atribuição legal de direitos e obrigações”[2] estabelecida pelo Código Civil.

Eduardo Gabriel Saad, por sua vez, entende que a invocação da quebra da autonomia subjetiva da personalidade jurídica “consiste na desconsideração da pessoa jurídica, num caso concreto, para alcançar os bens que, ardilosamente, passaram a integrar seu patrimônio”[3].

Segundo Ives Gandra da Silva Martins Filho, a teoria da disregard of legal entity “é aquela segundo a qual a constituição da pessoa jurídica pode ter por escopo a subtração do patrimônio de outra pessoa jurídica ou de pessoa física envolvidas na garantia da obrigação não cumprida”.[4]

O que se busca, portanto, é colocar de lado a constituição legal de uma empresa. Assim, como bem anota Fábio Ulhoa Coelho, a aplicação da doutrina “não implica a anulação ou desfazimento do ato constitutivo da sociedade empresária, mas apenas a sua ineficácia esporádica”[5], tendo desta maneira uma natureza excepcional.

Posto isto, Hermelino de Oliveira Santos, assim como Fabio Ulhoa Coelho, anota a existência de outro ponto a ser estudado para a compreensão da disregard doctrine. Ambos afirmam ser necessário estabelecer diferenças entre a responsabilidade patrimonial extraordinária e o ato de levantar o véu da pessoa jurídica.

A responsabilização extraordinária não decorre do ato de ignorar a constituição da pessoa jurídica, como ocorre na doutrina em estudo. Trata-se de extensão da responsabilidade à determinada pessoa em virtude de expressa previsão legal. Assim, a prática de atos por sócios e administradores da sociedade em desconformidade com suas atribuições legais e estatutárias, como nos casos de má-administração, implicaria ampliar o foco da responsabilidade patrimonial – já que nestes casos o ato é imputável diretamente àquela pessoa, pois o ilícito foi identificado desde logo como seu, não sendo a pessoa jurídica um entrave para essa expansão patrimonial.

Sobre essa questão da responsabilidade extraordinária e da desconsideração, Fabio Ulhoa Coelho destaca que o pressuposto de licitude da constituição da pessoa jurídica serve como parâmetro para identificar a distinção existente. Nesse sentido, afirma:

O pressuposto de licitude serve, em decorrência, para distinguir a desconsideração de outras hipóteses de responsabilização de sócios ou administradores de sociedade empresária, hipóteses essas que não guardam relação com o uso fraudulento da autonomia patrimonial. A responsabilização, por exemplo, do administrador da instituição financeira sob intervenção por atos de má administração faz-se independentemente da suspensão da eficácia do ato constitutivo da sociedade. Ela independe por assim dizer, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica da instituição financeira.[6]

Suzy Elizabeth Cavalcante Koury também realiza contribuição doutrinária no tocante a este debate sobre a distinção existente entre a responsabilidade extraordinária, decorrente de lei, e a desconsideração. Utilizando-se da terminologia de despersonalização, referindo-se à responsabilidade extraordinária, afirma a professora que:

Na primeira, (despersonalização) visa-se à anulação da personalidade jurídica, fazendo-se desaparecer a pessoa jurídica como sujeito autônomo por lhe faltaram condições de existência, como nos casos de invalidade do contrato social ou dissolução de sociedades. Na segunda (desconsideração), o que se pretende é desconsiderar a forma da pessoa jurídica, no caso particular, sem negar sua personalidade de maneira geral.[7]

Assim, a despersonalização indica a ausência de existência da pessoa jurídica por motivo que a invalidou legalmente, enquanto na desconsideração da personalidade não é negada para todos os fins de direito, pois o que se pretende é sua sobreposição temporária para atingir patrimônio de terceiro.

É possível concluir, em suma, que a disregard visa ignorar a autonomia patrimonial entre os sócios e a sociedade empresária em um caso concreto.

Percebe-se, portanto, que a elaboração de um conceito para a desconsideração da personalidade jurídica implica uma tarefa complexa, frente aos diversos elementos que a envolvem. Na tentativa de facilitar a compreensão e o estudo do tema, Suzy Elizabeh Cavalcante Koury enuncia conceito

[…] a Disregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.[8]

1.2.  Origem e evolução

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica teve sua primeira aparição significativa em meados do século XIX, em julgados dos tribunais da Inglaterra e dos Estados Unidos.

O caso precursor a tratar sobre os limites da ficção da pessoa jurídica, influenciando por conseguinte na evolução da desconsideração da personalidade jurídica, ocorreu em 1.809 na Suprema Corte norte-americana. Em um litígio envolvendo Bank of United States e Deveaux, o magistrado foi obrigado a entender a pessoa jurídica como um ente composto por pessoas físicas detentoras de direitos e obrigações como cidadãos, a fim de preservar a competência da jurisdição dos Estados Unidos. Com base no artigo 3º, II, da Constituição Federal norte-americana, que prevê como competência da jurisdição federal norte-americana as causas que tratem sobre cidadãos de Estados diferentes, foi proclamado pela Suprema Corte que o litígio abrangia substancialmente as pessoas físicas e individuais que compunham a corporação, sendo, portanto, aquele juízo competente para conhecer e apreciar a matéria.

Outro caso de destaque foi o litígio Salomon e Salomon & Co, em 1.897, na Inglaterra. A pessoa física Aaron Salomon constituiu uma sociedade, com membros de sua família, denominada Salomon & Co. Quando da insolvência da empresa, não foi possível a satisfação de todos os credores, que pleitearam a extensão da responsabilidade da sociedade à pessoa natural de Aaron Salomon. Foi então prolatada decisão julgando procedentes os pleitos dos credores para afastar a limitação da responsabilidade à pessoa jurídica, o que foi confirmado pela corte inglesa. A questão, entretanto, foi reformulada pelo Supremo Tribunal, que atestou a validade legal da constituição da pessoa jurídica, o que impediria a sua desconsideração.

Frisa-se que os casos supramencionados não merecem destaque pela decisão final atribuída, mas pelo surgimento de teses no sentido de relativização das sociedades, gerando controvérsias nas jurisdições norte-americana e inglesa. Portanto, desde então se passou a discutir, ainda que primariamente, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, dando-se origem à chamada disregard of legal entity.

Hermelino de Oliveira Santos aponta obra de grande valor para o estudo da doutrina em referência[9], qual seja, a compilação de casos apresentada por J. Maurice Wormser em 1.927. O grande avanço na teoria de Wormser que posteriormente influenciou grandes doutrinadores na área se dá ao fato de estabelecer uma separação entre a responsabilidade e o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios que a compõem, conceito essencial para a aplicação da disregard of legal entity. Trata-se de chamada autonomia patrimonial, amplamente estudada por Fábio Ulhoa Coelho.

As teses de Wormser serviram de base para o surgimento das doutrinas mais importantes sobre a temática. Desse modo, em 1.955, Rolf Serick publicou obra chamada “Forma e Realidade da Pessoa Jurídica”, que trazia um estudo minucioso sobre a aplicação do instituto na doutrina e jurisprudência alemã. Em sua tese buscou o doutrinador alemão principalmente analisar o ato de levantar o véu da pessoa jurídica sobre o prisma de critérios objetivos, haja vista que a desconsideração da personalidade jurídica é um problema de todos os países. A maior contribuição de Rolf Serick foi a formulação de quatro princípios que norteiam a concreta aplicação da desconsideração: (a) poderá o juiz, com o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua constituição legal, invocar a desconsideração ante a pratica de ato abusivo que desvirtue a finalidade para a qual foi criada, para reparação de danos de terceiros; (b) a desconsideração não poderá ser realizada ante a mera impossibilidade de aplicação de norma ou não realização de negócio jurídico; (c) normas e regulamentos sobre atributos pessoais, capacidade ou valores humanos podem ser aplicadas à pessoa jurídica, desde que não haja conflito com a finalidade de sua criação; e (d) poderá ser desconsiderada a autonomia subjetiva da pessoa jurídica quando se observar que os atos praticados ocultam a realidade de que decorreram de vontade da pessoa física de seus sócios.

Em 1.964, outra obra de grande importância sobre a desconsideração da personalidade jurídica foi publicada por Piero Verrucoli, que focou seu estudo na aplicação prática do instituto nos sistemas jurídicos da common law e da civil law. Ressalta o doutrinador que nos sistemas baseados nos costumes (common law), as decisões são proferidas sempre dentro dos limites estabelecidos pelos princípios de Rolf Serick, em razão da ausência de legislação específica. Por outro lado, no civil law a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica se dá por meio dos dispositivos legais criados pelo legislador, que se utiliza dos mesmos princípios de Serick para embasar a elaboração das normas, mencionando ainda que para existência de eficácia desses regulamentos o legislador deve adaptar-se rapidamente às situações novas eventualmente encontradas.

J. Maurice Wormser, com sua compilação de casos práticos, Rolf Serick, com seus princípios, e Piero Verrucoli, com suas teorias sobre a aplicabilidade nos sistemas da common law e civil law, formaram juntos a verdadeira base para o desenvolvimento de todas as teorias sobre a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, sendo certo que ainda hoje embasam os estudos sobre a temática.

1.3.  No Direito Brasileiro

1.3.1. No Direito do Consumidor

Primeira área do direito pátrio a tratar expressamente sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica, o direito do consumidor tem grande influência na doutrina como um todo e, principalmente, no processo trabalhista.

Devido à sua natureza protecionista ao consumidor, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1.990, buscou estabelecer em seu artigo 28 uma forma ampla e genérica de resguardar direitos de terceiros.

No tocante à ampliação de esfera de alcance do referido dispositivo, é necessário um estudo mais aprofundado. Embora se destaque a iniciativa de positivar a aplicação da disregard doctrine, o legislador acabou prevendo hipóteses de responsabilidade extraordinária de agentes – e não situações em que a desconsideração da personalidade jurídica efetivamente se projeta.

Fábio Ulhoa Coelho afirma que somente a questão do abuso de direito constitui fundamento legal que ampara a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, posto que se trata de situação em que a ficção da sociedade implica uma barreira para a extensão da responsabilidade patrimonial.

Outrossim, o doutrinador critica o dispositivo quando se refere a excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou do contrato social e má administração, por se tratar de questões societárias nas quais já existe previsão legal expressa da extensão da responsabilidade. Segundo o doutrinador, a imputação de forma secundária e direta aos sócios ocorre em razão da existência de uma obrigação pessoal, surgida na prática de irregularidade que gerou dano a terceiros, não sendo a personalidade jurídica empecilho para esta ampliação do foco de responsabilidade. Portanto, trata-se de casos de responsabilidade extraordinária.

A doutrina se divide quanto à sua aplicabilidade no processo do trabalho. Não obstante, fato é que o Código de Defesa do Consumidor influenciou o direito do trabalho, servindo inclusive de base para fundamentação de decisões acerca do tema. Essa influência pode ser constatada, por exemplo, no aspecto da forma extensiva e abrangente na aplicabilidade da desconsideração, eis que também na Justiça do Trabalho a doutrina é utilizada para a responsabilização de sócios, ex-sócios e representantes legais de sociedades empresárias.

1.3.2. No Direito Comercial

Seguindo a linha do Código de Defesa do Consumidor, o direito comercial trouxe o segundo dispositivo do direito nacional que prevê expressamente a aplicação da disregard doctrine.

Trata-se da previsão legal do artigo 18 da Lei nº 8.884/1.994 (Lei Antitruste). Fundamentalmente a norma estabelece a possibilidade da extensão da responsabilidade quando houver infração da ordem econômica e também como forma de aplicação de sanção.

Ainda no ramo do direito comercial, é necessário destacar a repercussão da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica nas questões societárias. Embora tratem de responsabilidade extraordinária, é inegável a influência dos fundamentos da disregard doctrine nos artigos que visam a estender a responsabilidade patrimonial a sócios gerentes, administradores e acionistas, como, por exemplo, as previsões contidas nos artigos 10 do Decreto nº 3.708/1.919 e artigos 115 117 e 118 da Lei nº 6.404/1.976.

1.3.3. No Direito Civil

No ramo do direito civil também podemos encontrar expressa previsão quanto à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se do artigo 4º da Lei n.º 9.605/1.998, que dispõe a possibilidade de extensão da responsabilidade quando a pessoa jurídica for obstáculo para ressarcimento de danos causados ao meio ambiente.

Embora no Código Civil não haja previsão expressa quanto à aplicação da disregard doctrine, faz-se necessário destacar a existência de norma legal que tem a finalidade de coibir a prática de atos abusivos e fraudulentos, resguardando-se os direitos de eventuais credores – qual seja, o artigo 50.

Parte da doutrina (é o caso de Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas e Suzy Elizabeth Cavalcante Cury) entende que referido dispositivo legal não trata de preceito normativo que consagra a aplicação da disregard doctrine, na medida em que prevê hipótese de responsabilização dos sócios pela prática de atos ilícitos, o que por si só justificaria a dissolução da sociedade e alcance das pessoas físicas dos sócios. Essa corrente defende que a desconsideração visa a coibir práticas abusivas ou fraudulentas por meio da superação de casos concretos, quando as pessoas físicas ou jurídicas, sob o manto da personalidade jurídica, praticam atos que desvirtuem sua função, não havendo relação com o teor do Código Civil.

Entretanto, é necessário observar que o ato de levantar o véu da personalidade jurídica deve ser analisado sobre o prisma de casos concretos, eis que o desvio de finalidade, o abuso da personalidade e a prática de fraude dependem das circunstâncias fáticas envolvendo os casos, sendo, portanto compatível a norma com o estudo da doutrina de desconsideração da personalidade jurídica.

1.3.4. No Direito Tributário

O direito tributário é regido pelo princípio da legalidade, que se encontra inserido no campo do direito público. Ao contrário do direito privado, no qual, não havendo expressa proibição legal, pode-se praticar atos livremente, aqui somente é permitida a prática de ato previsto em lei especifica – motivo pelo qual se faz necessário buscar nas esparsas leis tributárias hipóteses legais de aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, como, por exemplo, os artigos 60, 61 e 62 do Decreto-Lei nº 1598/1.977, que autorizam a desconsideração em casos de lucros distribuídos disfarçadamente.

Partindo-se do conceito da desconsideração, a priori poder-se-ia concluir que, justamente em decorrência do princípio da legalidade, não haveria que se falar da aplicação da disregard of legal entity no direito tributário. Isso porque a existência de expressa previsão legal de situações em que se projeta a extensão da responsabilização à terceiros que não a sociedade, refere-se à responsabilidade extraordinária e não a casos autorizantes à invocação do ato de ignorar a autonomia patrimonial.

Nesse sentido, o artigo 135 do Código Tributário Nacional, que versa sobre situações específicas em que as circunstâncias autorizam a extensão da responsabilidade, não seria, em princípio, caso no qual a desconsideração da personalidade jurídica produziria efeitos.

Entretanto, conforme já estudado, a doutrina da disregard legal entity também é interpretada no sentido de levantar o véu da personalidade jurídica para coibir a prática de fraude e de simulações a partir da sociedade jurídica.

Percebe-se da leitura do artigo exposto que a extensão da responsabilização patrimonial aos terceiros dependerá de elementos subjetivos da análise dos casos em concreto, como a configuração de excesso de poderes ou infração de contrato social, restando evidente a existência da desconsideração no ramo do direito tributário.

Oportuno destacar que sua inserção como norma legal expressa visa principalmente a assegurar ao fisco que o princípio da legalidade, já mencionado supra, não possa ser invocado pelo contribuinte em tese defensiva de eventual litígio, o que não afasta sua interpretação como previsão da doutrina da disregard doctrine.

2. Aplicação subsidiária do Direito Processual Comum no processo do trabalho

A interdependência dos sistemas processuais do Direito do Trabalho e do Direito Comum sempre foi assunto problemático cuja discussão ganhou novos contornos e acentuada relevância com o advento do novo Código de Processo Civil.

É fato notório que o Direito Processual do Trabalho reconhece o Direito Processual Comum como fonte subsidiária, o que se extraí do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Conforme leciona Carlos Henrique Bezerra Leite[10], a necessidade de inserção do artigo surgiu da própria natureza do processo do trabalho, que foi criado para ser simples e efetivo. Neste contexto, o intuito da edição do artigo foi de, tão somente, complementar e/ou suplementar eventuais lacunas na Consolidação das Leis do Trabalho.

Devido à simplificação do processo trabalhista, o legislador antecipou a possibilidade de determinadas situações não estarem abrangidas pelas previsões do Direito Processual do Trabalho, motivo pelo qual apontou o Direito Processual Comum como fonte de apoio e reforço.

Á época, temia-se a utilização dos institutos do Direito Processual Comum de forma indiscriminada e aleatória, visando criar obstáculos e atrasar o regular processamento do Direito Processual do Trabalho, criado para ser mais célere e efetivo.

Justamente com o intuito de impedir o uso arbitrário do Direito Processual Comum, especialmente considerando que este somente é fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho, foram instituídos dois requisitos no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

O objetivo dos pressupostos foi de conter a utilização subsidiária do Direito Processual Comum, conduta esta que, em tese, poderia retardar o procedimento trabalhista.

Os requisitos apontados na lei são: (i) a existência de lacuna no sistema de regras processuais trabalhistas a respeito do caso em concreto; e (ii) a compatibilidade da norma a ser aplicada com os princípios norteadores do Direito Processual do Trabalho.

De suma importância salientar que ambos os elementos devem estar conjuntamente presentes na hipótese analisada para a utilização das normas do Direito Processual Comum, sendo que, em primeiro lugar, deve-se constatar a existência de lacunas na legislação processual trabalhista e em uma fase posterior a sua compatibilidade com os princípios e regras peculiares do Direito do Trabalho.

2.1. Omissão

De acordo com Mauro Schiavi, trata-se a omissão de requisito para aplicação do Direito Processual Civil ao Direito Processual do Trabalho (artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho) e, em uma análise superficial, se configura “quando a CLT e as legislações trabalhistas extravagantes (Leis ns. 5.584/70 e 7.701/88) não disciplinam a matéria”[11].

A omissão ou lacuna ocorre na falta ou no silêncio de algo.

Inevitavelmente, sob a óptica do Direito Positivo, a primeira ideia extraída do conceito de omissão é a hipótese de lacuna normativa, caracterizada pela ausência de previsão legal – no caso, de procedimento – para o caso concreto.

No entanto, parte da doutrina tem se curvado à necessidade de uma renovação do conceito de omissão previsto no diploma legal que trata da subsidiariedade do Direito Processual Comum ao Direito Processual do Trabalho.

O conceito de lacuna carece de ser repensado, de forma a possibilitar a integração dos sistemas processuais civil e trabalhista, fenômeno que a doutrina dá o nome de heterointegração.

Conforme leciona Maurício Godinho Delgado, a heterointegração “ocorre quando o operador jurídico vale-se da norma supletiva situada fora do universo normativo principal do direito. A pesquisa integrativa faz-se em torno de outras formas que não as centrais do sistema jurídico (por isso é chamada heterointegração)”.[12]

Em outras palavras, a heterointegração ocorre quando o operador do direito aplica, primariamente, outro sistema jurídico que não as normas postas do Direito Processual do Trabalho.

Essa vertente da doutrina trabalhista, que busca ampliar o conceito de omissão inserido na Consolidação das Leis do Trabalho, propõe a adoção de uma classificação abrangente com fundamento nos estudos realizados Maria Helena Diniz, em sua obra intitulada Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.

A doutrinadora defende que as normas de direito não podem ser analisadas sob o ponto de vista estático, havendo necessidade de integração das normas entre si, sob aspecto não só normativo, mas, também, valorativo e fático, quando da aplicação do direito a um caso concreto. A respeito das lacunas, Maria Helena Diniz conclui pela existência de três diferentes espécies de omissão: (i) normativa, quando se tiver ausência de norma sobre determinado caso; (ii) ontológica, se houver norma, mas ela não corresponde aos fatos sociais; e (iii) axiológica, ausência de norma justa, isto é, existe um preceito normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta.[13]

Assim, em termos de interpretação do conceito de omissão inserido no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, a doutrina trabalhista processual atualmente admite dois posicionamentos.

De forma unânime, reconhece-se a alusão às chamadas lacunas normativas, isto é, quando inexiste norma processual no Direito Processual do Trabalho que contemple o caso em concreto.

Em uma corrente doutrinária mais moderna e não pacífica, admite-se uma interpretação ampliativa do conceito de omissão, através da adoção de uma classificação de lacunas não só fundada no aspecto positivista, mas também, sob a óptica ontológica e axiológica.

2.2. Compatibilidade

O artigo 769 do Diploma Consolidado fixa como parâmetro de incompatibilidade todas as normas previstas no Título relativo ao Processo Processual do Trabalho constante no Diploma Consolidado (Título X).

É prudente salientar que a compatibilidade não alcança somente as regras efetivamente inseridas no Título pertinente ao processo do trabalho, mas abrange igualmente todos os princípios do Direito Processual Trabalhista, característica esta, inclusive, devidamente salientada por Mauro Schiavi.

Para Francisco Gérson Marques de Lima[14], a análise da compatibilidade do Direito Processual Comum, realizada sempre do ponto de vista dos princípios, do objeto tutelado e do rito das ações, pode ser classificada de três formas: (i) institutos inteiramente compatíveis; (ii) institutos inteiramente incompatíveis; e (iii) institutos compatíveis mais que precisam ser amoldados aos postulados do Direito Processual Trabalhista.

Na primeira categoria se enquadram os casos perfeitamente aplicáveis na Justiça do Trabalho, sem qualquer ressalva ou adaptação como, por exemplo, a previsão contida no artigo 218, § 3, do novo Código de Processo Civil, que dispõe do prazo de cinco dias para a prática de ato processual, quando inexistente preceito legal ou fixação pelo juiz.

Os institutos incompatíveis, por sua vez, são aqueles totalmente inadequados ao Direito Processual do Trabalho por contrariarem os seus princípios e objeto, caso dos procedimentos inerentes ao Direito de Família, por exemplo.

Por fim, o último grupo é representado pelos institutos do Direito Processual Comum que, embora tenham aplicabilidade, devem sofrer mutações para preservar os princípios e características do Direito Processual Obreiro, citando-se, exemplificativamente, as ações civis públicas, as quais, ajuizadas na Justiça do Trabalho, na prática tem adquirido feições procedimentais inerentes ao Direito Processual Obreiro como apresentação de defesa em audiência.

3. Aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho

Como introdutoriamente ressaltado, o incidente da desconsideração personalidade jurídica é um instituto processual e não de direito material.

O novo Código de Processo Civil criou um itinerário procedimental a ser observado nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, para suprir a falta de padrão.

 Nesse sentido, o Procurador do Trabalho Élisson Miessa bem ressalta que o “ordenamento previa os requisitos para desconsideração da personalidade jurídica, sem estabelecer um procedimento para tanto”[15].

Assim, a despeito das breves considerações a respeito do instituto em si anteriormente, o presente artigo não tem por escopo debater as hipóteses e os requisitos de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, especialmente no processo do trabalho, mas sim a aplicabilidade do incidente criado pelo novo Código de Processo Civil enquanto procedimento (artigos 133 a 137), tema este que tem suscitado grande controvérsia na doutrina.

Uma parcela pequena da doutrina tem defendido a aplicação plena e sem restrições do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho, valendo destacar os Enunciados nº 124 e 126 do Fórum Permanente de Processualistas Civis.

Em sentido diametralmente oposto, defendida por magistrados como Ben-Hur Silveira Claus, Carlos Henrique Bezerra Leite e Mauro Schiavi, uma corrente da doutrina tem sustentado que, a despeito da incontestável omissão normativa da Consolidação das Leis do Trabalho, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica é incompatível com os princípios do processo do trabalho, o que inviabilizaria sua aplicação.

Finalmente, uma outra parte da doutrina, defendida por Élisson Miessa, Estevão Mallet e Jorge Pinheiro Castelo, amparados pelo posicionamento que vem manifestando as Cortes Trabalhistas, em especial o Tribunal Superior do Trabalho, segue o entendimento de que o incidente da desconsideração da personalidade jurídica deve sim ser aplicado ao processo do trabalho, todavia, o deve ser feito de forma compatibilizada e ajustada aos princípios e normas que regem o Direito Processual do Trabalho.

A análise da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica passa necessariamente pelos filtros da omissão e da compatibilidade previstos no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Quanto à omissão, dúvidas não restam, pois como já apontado e é notório, não havia no ordenamento jurídico brasileiro até então qualquer previsão procedimental a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, incluindo, nesse sentido, a legislação trabalhista.

O grande cerne de controvérsia da doutrina reside na compatibilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica com os princípios do processo do trabalho.

A vertente doutrinária que sustenta a inaplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica apresenta diversos pontos que supostamente demonstrariam a incompatibilidade com os princípios do processo trabalhista, destacando-se: (i) a restrição da prerrogativa de pedir a instauração do incidente à parte e ao Ministério Público (art. 133); (ii) a obrigatoriedade de suspensão do processo principal com a instauração do incidente (art. 134, §º 3º); (iii) a questão do ônus da prova supostamente atribuído ao credor (art. 134, §º 4º); (iv) a previsão de recurso autônomo contra decisão interlocutória (art. 136); e (v) a natureza instrumental do processo do trabalho voltada para efetivação do crédito trabalhista de natureza alimentar, em detrimento do exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório prévio.

De início, deve se afastar a ideia de que eventuais e isoladas incompatibilidades do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com os princípios que regem o processo trabalhista ensejam o afastamento completo das regras procedimentais instituídas pelo novo Código de Processo Civil.

Como já visto nos itens precedentes, existem institutos que são compatíveis, mais que precisam ser amoldados aos postulados do Direito Processual Trabalhista.

Rechaçar a aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica de forma absoluta por incompatibilidades pontuais implicaria em uma verdadeira contradição, trazendo como reflexo irremediável a revisão de inúmeros institutos que hoje são importados do Direito Processual Comum para o Direito Processual do Trabalho com adaptações.

Tanto a doutrina como a jurisprudência devem ser coerentes com seus estudos e suas teses passadas, sendo no mínimo questionável a aplicação de teorias seletivas a cada instituto.

Partindo desta premissa, há de se ressaltar que as incompatibilidades do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, e elas existem, devem passar por um processo de adaptação aos postulados do processo trabalhista e não implicar a sua rejeição.

Tome-se, por exemplo, a suposta incompatibilidade pela restrição da iniciativa para instauração do incidente. O artigo 878 da Consolidação das Leis do Trabalho prevê ampla possibilidade de promoção da execução, inclusive de ofício pelo Juiz. É evidente que a restrição do novo Código do Processo Civil afronta os princípios do processo de execução trabalhista, o que, todavia, não afasta a aplicação do incidente como um todo, bastando a simples assimilação de que esta regra especificamente deve ser sobrepesada, de forma a admitir a instauração ex officio pelo próprio Magistrado.

A obrigatoriedade de suspensão do processo principal com a instauração do incidente, por sua vez, sequer implica em uma incompatibilidade propriamente dita. Embora os recursos e os embargos no processo trabalhista não possuam efeito suspensivo via de regra, é fato que o prosseguimento da execução em face daquele incluído no polo passivo por conta de desconsideração da personalidade jurídica apenas poderá ter seu patrimônio definitivamente retirado de sua esfera após uma decisão em definitivo de suas eventuais impugnações. Em outras palavras, na prática, a suspensão dos atos executivos já ocorre, não havendo, por outro lado, óbice do seu prosseguimento em face de outros devedores em paralelo. O argumento de que a suspensão do processo poderia favorecer ocultação de patrimônio não se sustenta, até porque o novo Código de Processo Civil prevê mecanismos contra, notadamente, através da concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o artigo 301.

A questão do ônus da prova supostamente atribuído ao credor, à rigor, também não funciona como válido argumento contra a aplicação do incidente no processo do trabalho, porquanto está intrinsicamente ligado ao direito material e as hipóteses e requisitos de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica (se teoria mais ampla ou mais restrita), até por conta da distribuição do ônus da prova dinâmico estabelecido no novo Código de Processo Civil, já há muito tempo utilizado no processo do trabalho.

Uma aparente incompatibilidade entre as regras procedimentais do incidente é a previsão de recurso autônomo (Agravo de Instrumento) contra decisão interlocutória no novo Código de Processo Civil e o princípio da irrecorribilidade imediata do processo trabalhista. Embora haja parcial incompatibilidade, não há como se rechaçar a aplicação do incidente por completo, carecendo ao aplicador do direito realizar os ajustes necessários ao processo trabalhista. Nesse sentido, como bem ressalta Estevão Mallet[16], na fase de conhecimento deve prevalecer o princípio da irrecorribilidade em atenção ao artigo 893, §º 1, da Consolidação das Leis do Trabalho, e na fase de execução a recorribilidade se dá por meio do Agravo de Petição em desdobramento do artigo 897, alínea a, do Diploma Consolidado.

Finalmente, e talvez mais importante, equivocado o entendimento de que a natureza instrumental do processo do trabalho, voltada para efetivação do crédito trabalhista de natureza alimentar, deve prevalecer sobre o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório prévio.

O novo Código de Processo Civil, seguindo a nova ordem do processo constitucional, consagra em seus princípios basilares a observância do contraditório substancial (artigos 7º, 9º e 10º). Como ressalta Élisson Miessa, ao defender a aplicação do princípio no processo do trabalho, o contraditório substancial substituiu o binômio informação e reação do contraditório formal do Código de Processo Civil de 1.973. A visão do novo contraditório deve ser ampliada para contemplar o trinômio:  informação, possibilidade de reação e poder de influenciar o julgador. Nesse sentido, “os princípios da efetividade e celeridade, dentro de um processo minimamente democrático, não podem ser utilizados de forma genérica para dar validade a decisões surpresas” [17].

Seguindo na mesma linha, ao defender a aplicação do incidente no processo do trabalho com as devidas adaptações, Estevão Mallet afirma que “a estrutura elementar do incidente não envolve mais do que o conteúdo mínimo e elementar do contraditório”[18], compreendendo: ouvir a pessoa atingida pela decisão, dar oportunidade de provar suas alegações e decidir. Prossegue ainda afirmando que a “legítima preocupação com a efetividade do processo, especialmente para a satisfação do crédito do trabalhador, não pode ser exacerbada e levada a paradoxismos a ponto de comprometer a garantia do devido processo legal”, havendo que “se compatibilizar a eficiência do processo com as garantias dos litigantes, o que se faz com a utilização de medidas de urgência” [19].

Como se vê, o argumento de que existe incompatibilidade entre o incidente da desconsideração da personalidade jurídica devido à natureza instrumental do processo, voltada para efetivação do crédito trabalhista de natureza alimentar, não pode prevalecer sobre o direito constitucionalmente garantido à ampla defesa e ao contraditório prévio.

Jorge Pinheiro Castelo, ao tratar da aplicabilidade do instituto, afirma que “sem dúvida alguma confere maior segurança e regularidade aos atos executivos sobre a esfera jurídica e o patrimônio de terceiro que não é devedor original e não tem contra ele um título executivo judicial, mas, é o responsável patrimonial pela obrigação inadimplida fixada no título judicial”[20].

Assim, não se sustenta a tese de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não se aplica ao processo trabalhista em razão de sua incompatibilidade. De fato, se muito, o incidente comporta aplicação com adaptações nos aspectos de incongruência, mas jamais o afastamento de seu cabimento por completo.

E se houvesse alguma dúvida, para colocar uma pá de cal na questão da alegada incompatibilidade instrumental com os princípios do processo trabalhista, vale lembrar que o artigo 1.062 do novo Código de Processo Civil prevê expressamente que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais, processos estes que são regidos por princípios análogos ao do processo e que primam pela celeridade e concentração dos atos.

O entendimento sustentado no presente artigo encontra respaldo no entendimento que vem manifestado as Cortes Trabalhistas.

O Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa nº 39/2.016, na qual, em suas próprias palavras na exposição de motivos, mais do que aconselhar, impõe um posicionamento sobre diversas matérias, dentre elas o reconhecimento da aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista, exatamente com as adaptações acima debatidas, como, por exemplo, reconhecimento da possibilidade de instauração por iniciativa do Juiz, além da irrecorribilidade imediata se instaurado incidente em fase de conhecimento e a previsão do cabimento de Agravo de Petição se em fase de execução.

Os Tribunais Regionais do Trabalho, seguindo a Instrução Normativa nº 39/2.016, bem como Recomendação do Tribunal Superior do Trabalho nº 1/GCGJT/2.016, também tem admitido o cabimento do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, com os ajustes necessário para compatibilização do procedimento previsto no novo Código de Processo Civil:

AGRAVO DE PETIÇÃO – INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. CABIMENTO. A excepcionalidade do cabimento do recurso de agravo de petição em face de decisão interlocutória, que resolve incidente de desconsideração de personalidade jurídica, tem previsão no inciso II, § 1º, art. 6º, da resolução nº 203, de 15 de março de 2016, do Tribunal Pleno do C. TST.

 (Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Trabalho. Agravo de Petição. Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Agravo de Petição nº 0159300-53.2004.5.01.0018, Rio de Janeiro, 12 de julho de 2.016)

Em que pese as discussões doutrinárias sobre o tema, o TST, através da Instrução Normativa 39/2016, que dispõe sobre as normas do CPC de 2015 aplicáveis e inaplicáveis ao Processo do Trabalho, publicada no DEJT de 16/3/2016, fixou que é aplicável ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no CPC, contudo, assegurando a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução: (…) Portanto, deve ser aplicado ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC. Diante disso, acolho o recurso e determino que os autos retornem ao Juízo de origem para o prosseguimento da execução em face dos sócios da Agravada MASTERBUS TRANSPORTES LTDA. (MASSA FALIDA), conforme indicado na ficha cadastral da JUCESP (fls. 244/251), observando-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC.

(Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Trabalho. Agravo de Petição. Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Agravo de Petição nº 0008800-72.2001.5.02.0043, São Paulo, 11 de agosto de 2.016)

(Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Trabalho. Agravo de Petição. Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Agravo de Petição nº 00712-2015-146-03-00-2, Minas Gerais, 12 de setembro de 2.016)

EXECUÇÃO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DAPERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 135 DO CPC/2015. SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL FECHADO. É possível a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica ainda que a executada se trate de sociedade empresária constituída na modalidade de sociedade anônima.

(Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Trabalho. Agravo de Petição. Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Agravo de Petição nº 00260-1996-030-12-00-2, Santa Catarina, 12 de julho de 2.016)

Sendo assim, à luz de todo o exposto, não se sustenta a tese de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não se aplica ao processo trabalhista em razão de sua incompatibilidade. De fato, se muito, o incidente comporta aplicação com adaptações nos aspectos de incongruência, mas jamais o afastamento de seu cabimento por completo.

Conclusão

A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto de direito material que, em síntese, consiste em ignorar os efeitos da personificação jurídica em casos concretos para satisfação de execuções judiciais.

No ordenamento jurídico brasileiro existem diversas previsões e diferentes requisitos que justificam a sua aplicabilidade a depender da área de atuação do operador do direito, de teorias mais conservadoras, como aquela prevista no artigo 50 do Código Civil, que exige prova de abuso de direito e desvio de finalidade da pessoa jurídica desconsiderada, a teorias mais amplas e genéricas, como no caso do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1.990), que tipifica inúmeras situações que ensejam a desconsideração da personalidade jurídica e que influencia diretamente a forma como o instituto é utilizado no processo do trabalho.

O novo Código de Processo Civil trouxe uma importante inovação nos artigos 133 a 137, estabelecendo um procedimento e itinerário processual para instauração e julgamento da desconsideração da personalidade jurídica, cuja aplicabilidade no processo trabalhista tem suscitado acirrados debates na doutrina.

A análise da aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica do novo Código de Processo Civil na seara trabalhista demanda uma verificação do instituto à luz do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, que reconhece a possibilidade de utilização do Direito Processual Comum como fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho em casos de omissão e naquilo em que for incompatível.

O requisito omissão não suscita grandes controvérsias, havendo clara lacuna normativa no ordenamento trabalhista vigente no tocante o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, justificando, ao menos por este aspecto, a aplicabilidade do incidente previsto no novo Código de Processo Civil.

Por outro lado, o requisito (in)compatibilidade não comporta mesmo consenso na doutrina, existindo diferentes correntes: (i) uma que defende a aplicabilidade ampla e irrestrita do incidente, (ii) outra que defende a sua inaplicabilidade total e (iii) uma derradeira, da qual se filia o presente artigo, de que o instituto comporta aplicabilidade com ajustes e adequações nos pontos isolados de incongruência das normas do novo Código de Processo Civil com os princípios que regem o processo do trabalho.

Não há dúvidas de que o incidente da desconsideração da personalidade jurídica apresenta determinadas regras incompatíveis com os princípios do processo do trabalho, como, por exemplo, a restrição da prerrogativa de pedir a instauração do incidente à parte e ao Ministério Público (art. 133) ou a previsão de recurso autônomo contra decisão interlocutória (art. 136).

Todavia, a mera incompatibilidade parcial ou de determinados aspectos isolados do novo Código de Processo Civil não pode servir como supedâneo para se rechaçar a aplicação do instituto completamente no processo do trabalho, especialmente considerando que tanto a doutrina como a jurisprudência já admitiram no passado e até hoje se utilizam de outros institutos importados do Direito Processual Comum com as adaptações e as adequações necessárias, a exemplo do que ocorre com as ações civis públicas.

De fato, cabe ao operador do direito lutar contra o sentimento primário de rejeição da novidade, baseando-se em premissas gerais como a da instrumentalidade e celeridade do processo do trabalho, que, aliás, também permeia o novo Código de Processo Civil pautado na nova ordem do processo constitucional.

Não se pode olvidar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica encontra seus pilares no Direito Constitucional, notadamente, na consagração da garantia do devido processo legal e do direito à ampla defesa e ao contraditório substancial, este último pautado pelo trinômio informação, possibilidade de reação e poder de influenciar o julgador.

A preocupação dos operadores do Direito Trabalhista com a celeridade e efetividade do processo não pode cegá-los a ponto de comprometer a garantia ao devido processo legal.

Portanto, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no novo Código de Processo Civil deve sim ser aplicado ao processo do trabalho, com as devidas adaptações necessárias aos princípios que o regem. Para tanto, parecem adequados e corretos os ajustes de importação do procedimento propostos pelo Tribunal Superior do Trabalho no artigo 6º da Instrução Normativa nº 39/2.016, recomendação esta que inclusive já tem encontrado amparo nas Cortes Regionais Trabalhistas.

Referências

CASTELO, Jorge Pinheiro. Da aplicação subsidiária e supletiva do novo CPC ao processo do trabalho (art. 15) – exemplos de institutos, estruturas, conceito, esquemas lógicos, técnicas e procedimentos incidentes sobre o processo do trabalho decorrentes da aplicação subsidiária e supletiva de procedimentos do novo CPC. Revista LTr, São Paulo, v. 79, n. 08, p. 981-1002, 2.015.

CLAUS, Ben-Hur Silveira. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC/2015 e o direito processual do trabalho. LTR – Suplemento Trabalhista Jurisprudência, São Paulo, v. 80, n. 1, p. 70-86. jan. 2.016; Revista Jurídica, São Paulo, v. 64, n. 459, p. 128.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 2. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.006.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 07ª ed. São Paulo: LTr, 2.008.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.008

GUIMARÃES. Flávia Lefévre. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código do Consumidor. [S.l.]: Max Limonad, 1.998.

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2.002.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 07ª ed. São Paulo: LTr, 2.009.

LIMA, Francisco Gérson Marques de. A supletividade do direito processual do trabalho pelo processo comum. Notas para uma sistematização minimizadora do uso pessoal arbitrário dos institutos trasladados. Procuradoria Regional do Trabalho 7ª Região (Artigos).  Fortaleza: 2.007. <http://servicos.prt7.mpt.gov.br/artigos/18_06_2007_supletividade_do_direito_processual_do_trabalho.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2.016.

MALLET, Estevão. Novo CPC e Processo do Trabalho à luz da IN nº 39. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v.3, n.82. p. 142-154. jul./set. 2.016.

MIESSA, Élisson. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica: forma de aplicação no Direito Processual do Trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v.3, n.82. p. 101-141. jul./set. 2.016.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Org.); SILVESTRE, Rita Maria (Org.). Os Novos Paradigmas do Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2.001.

SAAD, Eduardo Gabriel. Direito Processual do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2.002.

SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2.008.

SANTOS, Hermelino de Oliveira. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2.003.

SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Renovar, 2.002.

Claudio Giovanni Pieroni

E-MAIL:  cgpieroni@yahoo.com.br



[1] SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Renovar, 2.002. p.87.

[2] GUIMARÃES. Flávia Lefévre. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código do Consumidor. [S.l.]: Max Limonad, 1.998. p.17.

[3] SAAD, Eduardo Gabriel. Direito Processual do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2.002. p. 742.

[4] NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Org.); SILVESTRE, Rita Maria (Org.). Os Novos Paradigmas do Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2.001. p. 452.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 2. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.006. p. 40.

[6] COELHO, op. cit. p. 40.

[7] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2.002. p. 88.

[8] KOURY, op. cit. p. 87.

[9] SANTOS, Hermelino de Oliveira. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2.003. p. 108/110

[10] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 07ª ed. São Paulo: LTr, 2.009. p. 99.

[11] SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2.008. p. 93.

[12] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 07ª ed. São Paulo: LTr, 2.008. p. 242/243.

[13] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2.008. p.446.

[14] LIMA, Francisco Gérson Marques de. A supletividade do direito processual do trabalho pelo processo comum. Notas para uma sistematização minimizadora do uso pessoal arbitrário dos institutos trasladados. Procuradoria Regional do Trabalho 7ª Região (Artigos).  Fortaleza: 2.007. <http://servicos.prt7.mpt.gov.br/artigos/18_06_2007_supletividade_do_direito_processual_do_trabalho.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2.016.

[15] MIESSA, Élisson. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica: forma de aplicação no Direito Processual do Trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v.3, n.82. p. 101-141. jul./set. 2.016. p. 116.

[16] MALLET, Estevão. Novo CPC e Processo do Trabalho à luz da IN nº 39. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v.3, n.82. p. 142-154. jul./set. 2.016. p. 153.

[17] MIESSA, op. cit. p. 118/119

[18] MALLET, op. cit. p. 152.

[19] MALLET, op. cit. p. 152.

[20] CASTELO, Jorge Pinheiro. Da aplicação subsidiária e supletiva do novo CPC ao processo do trabalho (art. 15) – exemplos de institutos, estruturas, conceito, esquemas lógicos, técnicas e procedimentos incidentes sobre o processo do trabalho decorrentes da aplicação subsidiária e supletiva de procedimentos do novo CPC. Revista LTr, São Paulo, v. 79, n. 08, p. 981-1002, 2.015.

Como citar e referenciar este artigo:
PIERONI, Claudio Giovanni. Aplicação no processo do trabalho do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no novo Código de Processo Civil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/aplicacao-no-processo-do-trabalho-do-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica-previsto-no-novo-codigo-de-processo-civil/ Acesso em: 25 abr. 2024