Direito do Trabalho

Participação nos lucros ou resultados. Sua natureza jurídica

Participação nos lucros ou resultados. Sua natureza jurídica

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

     1. Introdução

 

     O legislador constituinte, procurando incentivar as empresas em geral a repartir seus lucros ou resultados com os trabalhadores, como meio de encontrar o justo equilíbrio entre o capital e o trabalho, de um lado, assegurou aos empregados a participação nos lucros ou resultados e, de outro lado, desvinculou o produto dessa participação nos lucros ou resultados da remuneração para efeitos trabalhista e previdenciário. Trouxe benefícios, tanto aos empregados com a possibilidade de percepção de lucros ou resultados, como às empresas que se viram livres de encargos trabalhista e previdenciário.


     De fato, prescreveu a Constituição Federal em seu art. 7º, inciso XI:

 

‘Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social:

……………………………………………………..
XI – participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei.’

 

     A regulamentação desse inciso XI veio com a Medida Provisória nº 794, de 29 de dezembro de 1994, reeditada ao longo dos cinco anos, até que a de nº 1.982, de 23 de novembro de 2000, converteu-se na Lei nº 10.101, de 19 de dezembro de 2000.


     Verifica-se o texto constitucional retrotranscrito que se trata de garantia fundamental do trabalhador, insusceptível de supressão por Emendas (art. 60, § 4º, IV da CF). Em torno desse inciso XI duas correntes formaram-se na doutrina e na jurisprudência como veremos no tópico seguinte.

 

 

2. Auto-aplicabilidade da primeira parte do inciso XI do art. 7º da CF

 

     Seguindo a orientação doutrinária acerca dos direitos fundamentais, parcela da doutrina e da jurisprudência consideram auto-aplicável a primeira parte do inciso XI sob exame. Apenas a participação dos trabalhadores na gestão da empresa estaria na dependência de regulamentação.


     Segundo essa corrente, a regulamentação eventual de norma constitucional auto-aplicável deve ser feita com muita cautela, a fim de não extrapolar os limites da constitucionalidade, pois norma da espécie contém estrutura que basta a si mesma prescindindo de qualquer complementação.


     E mais, mesmo as chamadas normas de eficácia contida, desde que entram em vigor, devem ser aplicadas até onde possam. É o caso da desvinculação da participação nos lucros ou resultados da remuneração devida aos empregados. O preceito constitucional que a desvincula da remuneração é ‘norma cheia’. O que a Constituição desvinculou, desvinclulado continuará. O legislador ordinário não poderia promover a sua vinculação parcial ou total à remuneração, sob pena de ferir a literalidade do texto constitucional, que expressa um conceito unívoco.


     Nesse sentido decidiu o Colendo STJ no Resp nº 283.512, Rel. Min. Franciulli Netto:

 

‘EMENTA.
RE CURSO ESPECIAL. ALÍNEA ‘A’. TRIBUTÁRIO. SALÁRIO-DE-CONTRIBUIÇÃO. VERBAS PERCEBIDAS PELOS EMPREGADOS A TÍTULO DE PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS. NÃO INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ARTIGO 7°, INCISO XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NORMA DE EFICÁCIA CONTIDA, APENAS EM PARTE. ART. 28, § 9°, LETRA ‘J’, DA LEI N. 8.212/91.
RECURSO NÃO CONHECIDO.

A questão merece ser apreciada no âmbito exclusivamente infraconstitucional, notadamente à luz do art. 28, § 9°, letra j’, da Lei n. 8.212/91, com observância do inciso XI do artigo 7° da Carta Magna.

Deve prevalecer o entendimento segundo o qual a análise da aplicação de uma lei federal não é incompatível com o exame de questões constitucionais subjacentes ou adjacentes. A competência somente seria deslocada para a Máxima Corte se a v. decisão recorrida tivesse julgado o feito única e exclusivamente sob o prisma constitucional, o que se não verifica na espécie.
A letra fria desse dispositivo da Carta Maior embora não totalmente auto-aplicável ou de eficácia contida, é plenamente eficaz num ponto, mesmo antes da Medida Provisória n. 794/94, de 29 de dezembro de 1994, ou seja, no que diz respeito à desvinculação entre participação nos lucros e remuneração do trabalhador.

Recurso não conhecido.’ (DJ de 31-03-2003, p. 190).

 

     Entretanto, há uma corrente doutrinária em sentido oposto, ou seja, não só a participação nos lucros ou resultados, como também a própria desvinculação desta da remuneração depende de regulamentação. Essa corrente tem apoio em duas decisões monocráticas do STF, adiante referidas, proferidas com base no suposto entendimento manifestado pelo Plenário daquela Corte nos atos do Mandado de Injunção nº 102 impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pombos (Rel. p/ acórdão Min. Carlos Velloso, DJ de 25-10-2002).


     De fato, no RE 380.636-SC, de que foi Relator o Min. Gilmar Mendes, chegou a afirmar que a ‘regulamentação do art. 7º, XI da Constituição somente ocorreu com a edição da Medida Provisória nº 794, de 1994, que implementou o direito dos trabalhadores na participação nos lucros da empresa. Desse modo, a participação nos lucros somente pode ser considerada desvinculada da remuneração (art. 7º, XI da Constituição Federal) após a edição da citada Medida Provisória’ ( DJ de 24-10-2005, p. 0057).


     No RE 351.506-RS de que foi Relator o Min. Eros Grau, também, ficou decidido:

 

‘Conforme se infere dos votos proferidos no Mandado de Injunção 102-PE, Plenário, DJ de 25.10.2002, Redator para o acórdão o Ministro Carlos Velloso, somente com a superveniência da Medida Provisória nº 794, sucessivamente reeditada, foram implementadas as condições indispensáveis ao exercício do direito dos trabalhadores no lucro das empresas. Dessa maneira, embora o inciso XI do artigo 7º da Constituição assegurasse o direito dos empregados à participação nos lucros da empresa e previsse que essa parcela – participação nos lucros – é algo desvinculado da remuneração, o exercício desse direito não prescindida de lei disciplinadora que definisse o modo e os limites de sua participação, bem assim a natureza jurídica dessa benesse, quer para fins tributários, quer para fins de incidência de contribuição previdenciária’ (DJ de 04-03-2005, p. 0083).

 

     Verifica-se, entretanto, que no invocado Mandado de Injunção o Plenário da Corte Suprema não chegou a examinar o mérito do pedido, julgando prejudicada a ação conforme ementa do V. Acórdão:

 

‘Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária , na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por votação majoritária, reconhecer a legitimidade ativa da entidade sindical para impetrar mandado de injunção coletivo, vencido o Ministro Relator. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, também por votação majoritária, julgou prejudicada a ação de mandado de injunção, em face da superveniência de medida provisória disciplinando o art. 7º, inciso XI, da Constituição Federal, vencido o Ministro Sepúlveda Pertence. (MI nº 102, Rel. p/ Acórdão Min. Carlos Velloso, DJ de 25-10-2002).

 

     Ora, difícil concluir que essa decisão do Plenário firmou a tese da negativa de auto-aplicação de preceito constitucional concernente à participação dos empregados nos lucros ou resultados, principalmente no que diz respeito à desvinculação do produto dessa participação da remuneração devida ao trabalhador.

 

 

3. Natureza jurídica da Participação nos Lucros ou Resultados e não-incidência da contribuição previdenciária

 

     Transcrevamos novamente o inciso XI do art. 7º da Constituição Federal para melhor exame:

 

‘XI – participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração , e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei;

 

     Como se verifica, a Constituição Federal excluiu, de forma expressa, a natureza remuneratória das participações dos empregados nos lucros ou resultados auferidos pela empresa.


     Ora, se a PLR está excluída do conceito de remuneração, por óbvio, a contribuição social de que trata o art. 195, I, a da CF incidente sobre a ‘folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício’ , não poderá levar em conta aquela PLR na definição do fato gerador da contribuição previdenciária, nem integrar o aspecto quantitativo desse fato gerador. Em outras palavras, a participação nos lucros ou nos resultados não poderá servir de suporte fático da tributação. A participação nos lucros ou resultados é, por assim dizer, fato não jurígeno em termos de direto tributário.


     É certo que cabe ao legislador infra-constitucional definir o fato gerador dos tributos, mas é certo, também, que essa definição legal há de ser feito nos termos desenhados pela Carta Política, não podendo desrespeitar as limitações constitucionais ao poder de tributar. E uma dessas limitações é exatamente a imunidade tributária. Não importa a denominação ‘imunidade’, ‘isenção’, ‘não-incidência’, ou quaisquer outros vocábulos ou termos utilizados na Constituição Federal. Basta simples exame dos textos constitucionais para verificar que o legislador constituinte utilizou-se de diferentes expressões, ao estatuir, dentre outras, as seguintes imunidades: a imunidade de custas judiciais na ação popular (art. 5º, LXXVIII da CF); a imunidade de taxas, aos reconhecidamente pobres, para expedição de registro civil de nascimento e de óbito (art. 5º, LXXVI, a e b da CF); a imunidade de taxas nas ações de hábeas corpus e hábeas data (art. 5º, LXXVII da CF); imunidade recíproca (art. 150, VI, a da CF); imunidade genérica dos partidos políticos, das instituições de educação e de assistência social, dos sindicatos, dos templos e do livro (art. 150, VI, b e c da CF); imunidade do IPI (art. 153, § 3º, III da CF); imunidade do ITR sobre pequenas glebas rurais (art. 153, § 4º da CF); imunidade das contribuições sociais (art. 195, § 7º da CF); imunidade do IVMS em realação ao ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial (art. 15r, X, c, c.c art. 153, § 5º da CF) etc.


     O importante é que as imunidades externam vedações absolutas ao poder de tributar certas pessoas (subjetivas) ou certos bens (objetivas), ou ainda, uns e outros. Conceituamos a imunidade como uma limitação constritucional ao poder de tributar(1). Por isso, são inconstitucionais as leis ordinárias que afrontam a imunidade.


     No caso sob exame, o legislador constituinte, objetivando incentivar as empresas a repartirem seus lucros ou resultados com os seus empregados, promovendo a ‘socialização dos lucros’ como meio de alcançar o justo equilíbrio entre o capital e o trabalho, prescreveu no inciso XI do art. 7º da Carta Política, que a PLR fica desvinculada da remuneração. Em outras palavras, retirou do campo do exercício da competência impositiva prevista no art. 195, I, a da CF tudo o que for pago pela empresa a título de participação nos lucros, ou resultados.


     Forçoso é concluir que o inciso I do art. 22 da Lei nº 8.212/91, que define a contribuição a cargo da empresa em ‘vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados …’, há de ser interpretado com a exclusão das parcelas correspondentes à participação nos lucros ou resultados. A PLR, uma vez imunizada pela Constituição, jamais poderia integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária, sem gravíssima ofensa ao texto constitucional.
     Ainda que pudesse, em tese, sustentar que a obrigatoriedade da empresa de promover a distribuição do lucro ou resultado a seus empregados somente surgiu com o advento da MP nº 794/94, o certo é que o montante pago voluntariamente pela empresa antes dela, a título de participação nos lucros ou resultados, jamais poderia integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária, porque imunizada pela Carta Política. Afinal, a exclusão da participação nos lucros ou resultados do conceito de remuneração não é algo que dependa de definição legal. Desde que os lucros ou resultados do exercício sejam distribuídos entre empregados da empresa, por meio de critérios objetivos, o respectivo montante fica ipso fato excluído do conceito de remuneração, base de cálculo da contribuição previdenciária.


     Nesse sentido veio prescrever o § 3º, do art. 3º, da Lei nº 10.101/2000:

 

§ 3º Todos os pagamentos efetuados em decorrência de planos de participação nos lucros ou resultados, mantidos espontaneamente pela empresa, poderão ser compensados com as obrigações decorrentes de acordos ou convenções coletivas de trabalho atinentes à participação nos lucros ou resultados.’

 

     Esse parágrafo, na verdade, parte do princípio da auto-aplicabilidade da primeira parte do inciso XI do art. 7º da CF/88 ao permitir a compensação dos pagamentos espontaneamente feitos pela empresa, a título de participação nos lucros e resultados, com as obrigações decorrentes de acordos ou convenções coletivas de trabalho atinentes a participação nos lucros ou resultados.


     Ora, se a lei está permitindo a compensação de valores pagos espontaneamente, desde que não tenham natureza salarial, com aqueles referentes ao cumprimento da obrigação resultante de acordos e convenções retro referidos, é porque aqueles valores têm a mesma natureza jurídica desses últimos.


     Concluindo, a participação nos lucros ou resultados, desvinculada da remuneração devida aos empregados, tem a natureza de imunidade tributária objetiva. Por expressa determinação constitucional foi retirado da atividade legislativa da União o poder de instituir contribuição social a que alude o art. 195, I, a da CF incidindo sobre o montante pago pela empresa a seus empregados, a título de participação nos lucros ou resultados.

 

 

(1) Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2005, p. 386.

 

SP, 05.01.05.

 

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Participação nos lucros ou resultados. Sua natureza jurídica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/participacao-nos-lucros-ou-resultados-sua-natureza-juridica/ Acesso em: 19 abr. 2024