Direito Penal

Consentimento do ofendido como excludente supralegal: impropriedade terminológica e breves anotações jurídicas

 

Precipuamente, há que se gizar que durante os anos nos bancos da Faculdade de Direito, parcos e tímidos são os ensinamentos acerca do consentimento do ofendido.

 

                        De regra, os professores explicam quais as hipóteses de excludentes de antijuridicidade ou ilicitude (art. 23, incisos I, II e III do Código Penal), e arrematando, sapecam que o consentimento do ofendido é uma causa de excludente de ilicitude supralegal, ilustrando rapidamente seus requisitos.

 

                        De plano, irrefutável a ponderação do eminentíssimo Professor Luiz Régis Prado acerca do emprego impróprio do termo “supralegal”, o qual, para ele, não sem razão, tem sabor atécnico.

 

                        Aludido ensinamento recebi do próprio doutrinador citado, na Universidade Estadual de Maringá, tendo ele me perguntado o que era o consentimento do ofendido e o que o instituto excluía.

 

                        Óbvio, sem pestanejar, seguindo a esmagadora doutrina de manuais de Direito Penal respondi que era uma “excludente de ilicitude supralegal”, a qual fazia elidir a ilicitude, e por vezes, a tipicidade. Após minha exposição o douto lente questionou: “dizer supralegal significa que essa hipótese então está acima da lei?”.

 

                        Percebendo meu inicial desconcerto, fruto de uma “bitola jurídica”, como doutrinador preocupado com as minúcias, inclusive às de ordem terminológica, explicou-me que afirmar “supralegal” implicaria reconhecer existência acima do ordenamento jurídico, oferecendo-me então, naquela oportunidade, um ensinamento utilíssimo lecionando-me que poderia ser denominada de causa “inominada” ou “extralegal” da ilicitude, mas jamais “supralegal”.

 

                        Sem reparos o argumento do ilustre professor, visto que no esteio do que se encontra no Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio, o vocábulo “supra”, que é equiparado a “super”, significa: “posição acima”, “por cima”, “em cima”, “superioridade”. Dessa forma, trata-se de um adjetivo de dois gêneros formados por justaposição, e que dá a idéia de “superlei”

 

                        O consentimento do ofendido é uma solução doutrinária em face dos crimes materiais, e que restam presentes todos os substratos do delito (termo utilizado por Giuseppe Betiol), máxime no que tange ao fato típico como conduta dolosa, resultado querido ou assumido, nexo causal e tipicidade, mas que houve prévia permissão do titular para lesão do seu bem jurídico. Por isso, ante a inevitável incongruência de eventual responsabilização, exsurge a utilidade do instituto.

 

                        Quanto ao que o consentimento do ofendido exclui a doutrina não é unânime, embora haja predomínio dos que entendem exclusão de ilicitude, inclusive com o dístico de “supralegal”, sendo que em determinados casos concretos também poderá excluir a tipicidade.

 

                        A maioria da doutrina entende que se trata de uma causa de exclusão da ilicitude ou consentimento em sentido estrito, esta é a regra, espécie em que o professor Luiz Régis Prado entende como “renúncia à proteção jurídica”. Contudo, quando o dissenso for elementar do tipo, a toda evidência, excluirá a própria tipicidade, constituindo-se em um “acordo”, conforme termo utilizado por Hans-Heinhich Jescheck.

 

                        De outra banda, capitaneados pelo alemão Claus Roxin, há o entendimento que o consentimento do ofendido, em qualquer circunstância, terá o condão de fazer desaparecer a tipicidade. Para essa corrente, espraiada na teoria constitucionalista do delito, e ainda minoritária, não basta a tipicidade formal da conduta, mas sim a tipicidade material.

 

                        Significa asseverar que urge estar demonstrada a lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, logo, havendo consentimento, não há que se falar em lesão ou perigo de lesão ao objeto jurídico, inexistindo desvalor da ação

 

                        O pano de fundo está em se aferir se o consentimento do ofendido pode interferir na construção teórica punitiva do Estado, isto é, frente ao caráter instrumental do Direito Penal que é a proteção dos bens jurídicos, é razoável ou não admitir-se o desalijamento do Estado quando o particular não o autoriza a agir.

 

                        Essa dicotomia é discutida pelas Escolas Histórica e Sociológica do Direito. A primeira afasta do particular a disponibilidade, e esta, a seu turno, defende que, sob sua perspectiva, por ser a infração penal uma lesão de interesses, o consentimento seria hábil a impedir a atuação estatal, já que o particular é quem teria a prerrogativa de admitir aventada lesão.

 

                        A doutrina clássica é um meio-termo ao embate ventilado, uma vez que, se os bens tiveram natureza de disponíveis e o agente que apuser seu consentimento for capaz de fazê-lo e não haja nenhum vício de consentimento, há sim a exclusão de ilicitude. De outro lado, se o dissenso do particular integrar o próprio tipo, de forma que fique ao alvedrio do particular suportar a lesão ao seu bem jurídico, há exclusão da tipicidade.

 

                        No mesmo sentido de exclusão da tipicidade, mas sobre outros fundamentos, e sem prever a hipótese de exclusão de ilicitude, o consentimento do ofendido, segundo lições de Claus Roxin, novamente invocado, elimina sempre a tipicidade, uma vez que se deve atentar para as liberdades individuais. Já prevendo as indagações acerca do consentimento nos casos de bens relevantes e indisponíveis, aduz que nesse caso não se exclui nem ilicitude nem tipicidade.

 

                        Assim, ora o Estado deverá atuar inevitavelmente, e em outras vezes deverá ficar inerte, respeitando a construção dogmática do delito, ou seja, se não há tipicidade não subsiste crime.

 

                        No tocante à apreciação do consentimento, se o erro incidir sobre o próprio consentimento trata-se de erro de tipo, circunstância em que sobrevirá eliminação do dolo, conforme previsão do art. 21 do CP. De outra ponta, se o erro recair sobre os pressupostos da causa de exclusão, sua valoração e existência, será caso de erro de proibição, com exclusão da ilicitude, de acordo com o art. 21 do CP.

 

                        Para a existência do consentimento do ofendido faz-se mister o preenchimento de certos requisitos, que na didática de Luiz Régis Prado são: “objetivos, que é a capacidade de consentir, anterioridade do consentimento, atuação nos limites do consentimento; subjetivo, que se traduz na ciência do consenso e vontade de atuar (de acordo com a diretiva do consentimento”. (Luiz Régis Prado. Comentários ao Código Penal. 3ª ed. Revista dos Tribunais, 2006, p.23).

 

                        Interessante a indagação a respeito de definir quais conseqüências adviriam do fato com todos os requisitos expendidos, mas com o consentimento do ofendido posterior nos casos de crimes perseguidos por ação penal pública incondicionada. A maioria entende que é irrelevante consentimento superveniente, já que o consentimento tem de ser impreterivelmente prévio. É solução consentânea com o ordenamento jurídico, a meu sentir, a aplicação do art. 66 do Código Penal, que trata das atenuantes inominadas, conforme sustentado por alguns.

 

                        São exemplos de consentimento do ofendido como exclusão de tipicidade: violação de domicílio (art. 150 do CP) e violação de correspondência (art. 151 do CP), como exclusão de ilicitude, que ocorre quando o titular exclusivo do bem jurídico pode dele livremente dispor: furto (art. 155 caput do CP), alteração de limites (art. 161 do CP).

 

* João Romano da Silva Junior, Delegado de Polícia do Mato Grosso, Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Paraná/Maringá, Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso.

 

Como citar e referenciar este artigo:
JUNIOR, João Romano da Silva. Consentimento do ofendido como excludente supralegal: impropriedade terminológica e breves anotações jurídicas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/consentimento-do-ofendido-como-excludente-supralegal-impropriedade-terminologica-e-breves-anotacoes-juridicas/ Acesso em: 29 mar. 2024