Direito Penal

A Lei Maria da Penha como política pública (in)suficiente ao combate à violência doméstica contra a mulher

Juliana Neves Ayello[1]

A violência contra a mulher é uma realidade dolorosa no Brasil, a qual, durante séculos, teve espaço para se desenvolver na sociedade, principalmente em razão da história de subjugação da mulher, pautada em uma longa opressão sofrida em decorrência do gênero.

Contudo, dados os acontecimentos sociais ocorridos com o passar dos anos, o tratamento indigno e desigual em relação ao homem e à mulher se tornou inconcebível, principalmente no que tange às relações domésticas, âmbito mais fortemente revelador da discrepância dos papeis ocupados pelo o homem e a mulher na sociedade e na família (ZACARIAS, et. al, 2013).

Nesse sentido, o Mapa da Violência de 2012 verificou que, em 68% dos atendimentos a mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu na residência da vítima. Em pouco menos da metade dos casos, o perpetrador é o parceiro ou ex-parceiro da mulher (WAISELFISZ, 2012).

O que antes era entendido como assunto estritamente íntimo e familiar, passou a interessar ao Estado, na medida em que se identificavam comportamentos sociais discriminatórios e questões de saúde e violência públicas. Assim, o Estado precisou intervir e, já em 1988, com a Constituição Federal, determinou expressamente a igualdade jurídica entre o homem e a mulher.

Todavia, a previsão constitucional se mostrava inócua, pois a ideologia patriarcal subsistiu, tendo por base a desigualdade sociocultural e a dominação da mulher pelo homem.

Diante disso, outros dispositivos precisaram ser criados, além de mecanismos públicos a fim de coibir a violência doméstica contra a mulher. Inclusive porque o Brasil assumiu obrigações perante a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), assinando a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulher (BRASIL, 2002) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (BRASIL, 2002).

De forma mais marcante, tem-se em 2006, a criação da Lei n. 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, responsável por tratar sobre o tema de maneira ampla, definindo esse tipo de violência, as medidas disponibilizadas pelo Estado para coibição, tais como as medidas protetivas, e a consequência que essa espécie de violência gerava em âmbito criminal, em conjunto com o Código Penal Brasileiro (BRASIL, 2006).

A Lei Maria da Penha pode ser entendida como uma política pública, na medida em que, com ela, ganham as mulheres que vivem no Brasil, bem como toda a sociedade, afetada de maneira geral. Isso porque os prejuízos causados em decorrência da violência doméstica afetam o bem-estar das famílias, em especial das crianças, gerando consequências também na produtividade no trabalho. A sociedade, portanto, ganha, pois, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a promoção do bem de todos, sem preconceitos.

Entretanto, treze anos após a promulgação da referida lei, tida como uma ação afirmativa, ainda se faz necessário o desenvolvimento de mais meios para que a violência doméstica contra a mulher seja coibida, haja vista que a mera previsão legal se mostra insuficiente, ante, principalmente, o despreparo dos profissionais ao lidar com esse tipo de questão.

Uma das tentativas de se aplicar maior rigor à violência contra a mulher, foi a edição da Lei n. 13.871 de 2019, que alterou a Lei Maria da Penha, para acrescentar a obrigação do agressor a arcar com todas as despesas relativas aos danos causados por sua conduta lesiva ou violenta, ressarcindo tanto a mulher quanto o Poder Público, quando houver prestação de serviço pelo Sistema Único de Saúde. Além disso, ele estará obrigado a arcar com os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas. Importa ressaltar, porém, que tais medidas não substituem ou atenuam as penas e não poderão gerar qualquer ônus ao patrimônio da mulher e seus dependentes (BRASIL, 2019).

Não se trata da única alteração sofrida pela Lei n. 11.340/06 ao longo dos anos. Pelo contrário. As alterações propostas pelo legislador são, a bem da verdade, tentativas de se prevenir e erradicar a violência contra a mulher, haja vista se tratar de uma questão pública de extrema relevância.

A mais recente alteração se mostra digna. Contudo, o sancionamento da lei, por si só, talvez não seja apto a gerar os resultados buscados, devendo ser encarados com cautela alguns dos aspectos aprovados. Como exemplo, tem-se que a lei não prevê a necessidade de condenação do agressor para o ressarcimento dos danos, de forma que poderia causar insegurança jurídica e até mesmo desrespeito ao princípio da presunção da inocência.

O que se vê, nada mais é, do que a criação desenfreada de leis, teoricamente, adequadas, porém desprovidas de eficácia prática, uma vez que o combate da violência contra a mulher não deve se pautar na repressão unicamente, mas de forma mediata, na desconstrução cultural de opressão da mulher, através de políticas públicas e serviços adequados, inclusive, com a própria capacitação de funcionários públicos no atendimento de mulheres vítimas. Afinal, segundo Pequeno (2007, apud FONSECA; RIBEIRO; LEAL, 2012), a violência contra a mulher é um fenômeno multicausal, multidimensional, multifacetado e intransparente e, como tal, deve ser encarado de forma ampla, com o apoio de toda a sociedade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 1.973, de 2 de agosto de 1996. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Belém do Pará, 9 de junho de 1994. Disponível em http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm Acesso em 18 de setembro de 2019.

______. Decreto nº 4.377, de 16 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, de 1979, e revoga o Decreto nº 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em:  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm Acesso em 18 de setembro de 2019.

_______. Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em 18 de setembro de 2019.

________. Lei n. 13.871, de 17 de setembro de 2019.
Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13871.htm Acesso em 18 de setembro de 2019.

WAISELFISZ, Julio Jacob. Mapa da Violência 2012. Caderno Complementar 1: homicídio de mulheres no Brasil. São Paulo, 2012.

ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho. Maria da Penha – comentários à Lei nº. 11.340/2006. Leme: Anhanguera Editora Jurídica, 2013.



[1] Advogada Cível. Formada pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo – U.E. LORENA. E-mail:  juliana@falce.adv.br

Como citar e referenciar este artigo:
AYELLO, Juliana Neves. A Lei Maria da Penha como política pública (in)suficiente ao combate à violência doméstica contra a mulher. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/a-lei-maria-da-penha-como-politica-publica-insuficiente-ao-combate-a-violencia-domestica-contra-a-mulher/ Acesso em: 28 mar. 2024