Direito Penal

Do gueto ao cárcere: o estigma sociorracial do negro no sistema penal brasileiro

Dominick Luzolo Veloso Bongo[*] 

RESUMO: O presente artigo propõe uma critica ao conceito de criminalidade e aborda sobre o fato de ela ser uma construção social representada pela atribuição do status de criminoso aos sujeitos estigmatizados no processo de seletividade penal. Através de pesquisas bibliográficas, buscou-se compreender como ao longo da história diversas teses foram criadas para legitimar a construção do delinquente como o inimigo social. Na atual conjuntura do Direito Penal brasileiro pode se observar como o processo de seletividade se apresenta sobre um ideal punitivo cujo foco é principalmente a população negra e pobre desassistida pelo Estado nos mecanismos de inserção para o exercício da cidadania, sendo subjugadas e vistas como potencialmente perigosas. A perpetuação da desigualdade se dá através da estrutura política e ideológica que permite atribuir maior proteção aos bens jurídicos patrimoniais e que por vezes se manifesta muito mais voltada ao encarceramento e a exclusão das classes marginalizadas. A ausência de políticas públicas que promovam uma maior inserção das populações socialmente excluídas para o exercício pleno da cidadania tem se tornado um entrave para solucionar as diversas demandas sociais e os conflitos ocasionados pela falta de interação ente a sociedade e o Estado. Dessa forma, depreende-se que ao se evitar debater sobre determinadas demandas sociais pela sociedade cria-se uma ineficiência e uma maior dependência do sistema punitivo como único meio capaz de solucionar os conflitos do meio social.

Palavras-chave: Seleção penal. Contenção social. Estigma racial. Subcidadania. Desigualdade social.

ABSTRACT: This article proposes a critique of the concept of crime and focuses on the fact that it is a social construction represented by the attribution of criminal status to individuals stigmatized in the criminal process selectivity. Through bibliographical research sought to understand how throughout history various theses were created to legitimize the construction of the offender as the social enemy. In the current situation of the Brazilian criminal law can be seen as the selectivity process is presented on an ideal punitive whose focus is primarily black and poor unassisted by the state in the insertion mechanisms for the exercise of citizenship being subjugated and seen as potentially dangerous. The perpetuation of inequality is through the political and ideological structure that allows you to assign greater protection of economic and legal interests that sometimes manifests itself much more focused on incarceration and exclusion of marginalized classes. The absence of public policies that promote greater integration of people socially excluded to the full exercise of citizenship has become an obstacle to solving the various social demands and conflicts caused by the lack of interaction being the society and the state. Thus, it appears that by avoiding debate on certain social demands of society it creates inefficiency and a greater reliance on punitive system as the only means able to solve the conflicts of the social environment.

Keywords: Criminal Selection. Social Restraint. Racial Stigma. Undercitizenship. Social Inequality.

1. INTRODUÇÃO

Considerando a atual conjuntura do Direito penal brasileiro, pode se observar que os interesses sociais são subjugados pelos interesses políticos e econômicos de um pequeno grupo que detêm o monopólio. Assim há uma preocupação maior em excluir da sociedade os indivíduos rotulados como delinquentes do que buscar alternativas ao sistema penal. Compreende-se também que a Escola Positivista da Criminologia, que possui grandes estudos biológicos e antropológicos, ainda pode ser observada em diversos discursos presentes tanto no senso comum quanto nos sistemas de justiça.

O presente artigo gira em torno do seguinte problema: Como o atual estudo da criminologia crítica pode contribuir na construção do processo emancipatório dos grupos excluídos e na criação de um direito penal que leve em conta o dano causado a sociedade e não o estereótipo de criminoso?

Diante do problema exposto, formulou-se a hipótese de que deve ser compreendido que o Direito Penal, por vezes, serve de elemento legitimador das desigualdades sociais a partir do momento em que se exerce um controle social para aqueles que foram excluídos, principalmente negros e pobres, do processo de cidadania pelos grupos economicamente dominantes.

Portanto, além de promover uma releitura histórica da relação da população negra com o encarceramento, irá se travar também um diálogo intertemporal entre as legislações mostrando como determinadas práticas se perpetuam mesmo em um período democrático.

2. INFLUÊNCIA DA ESCOLA POSITIVISTA NO ESTIGMA SOCIORRACIAL DO NEGRO

Diversas teorias científicas foram utilizadas ao longo da história para legitimar a desigual distribuição dos atributos criminais. Dentre elas está a Escola Positivista, que surgiu no final do século XIX e início do XX, contrapondo-se a Escola Clássica vigente até aquele momento. A Escola Clássica era baseada nos ideais humanistas em que o enfoque era a compreensão do delito como ente jurídico presumido em lei, cuja violação do direito consistia também na violação do pacto social, atribuindo responsabilidade moral ao criminoso, que possuía livre arbítrio para a escolha ou não de cometer crimes. A pena, nesse sentido, servia de exemplo para evitar novos crimes. Um de seus precursores é Cesare Beccaria com a obra Dos delitos e das penas de 1764 (BARROS FILHO, 2013).

A Escola Positivista surgiu como resposta à incapacidade da Escola Clássica de atender as demandas sociais perante a criminalidade, em que se via necessária uma intervenção estatal para prevenir diretamente antes que o delito acontecesse, buscando as causas da criminalidade na personalidade do criminoso, o qual possuía influências bioantropológicas que o tornavam predisposto a cometer crime. Desta feita, a polícia era incumbida de assumir a tarefa de exercer a vigilância sobre os indivíduos virtualmente perigosos (BARROS FILHO, 2013).

Durante o período em que preponderou a concepção de sua ideia, a criminologia positivista desenvolveu diversas técnicas para identificação criminal, utilizando aspectos físicos como forma de reconhecer o criminoso, como o tamanho do crânio, a observação de algum tipo de anomalia no corpo e o ambiente social em que vivia. A obra considerada como uma grande expoente da criminologia positivista foi O Homem Delinquente de 1876 de Cesare Lombroso, que reunia uma série de dados sobre criminosos e suas deformações físicas, concluindo que isso seria inato a todos os criminosos. Também de grande importância a esta Escola criminológica Enrico Ferri, que atribuía fatores sociais como influenciadores da personalidade do indivíduo, e Rafaelle Garofalo, que se utilizava da teoria do “darwinismo social” em que havia indivíduos que não possuíam a noção de ofensa a sentimentos morais coletivos por pertencerem a uma raça que estaria atrasada no processo de evolução (BARROS FILHO, 2013). Assim, conforme Vera Regina Andrade (2016),

Com seu proceder, a Criminologia positivista contribui para mistificar os mecanismos de seleção e estigmatização ao mesmo tempo em que lhes confere uma justificação ontológica de base científica (uma base de marginalização científica aos estratos inferiores). (2016 p.65)

No Brasil o autor que mais difundiu as ideias da criminologia positivista foi o maranhense Raimundo Nina Rodrigues, formado em medicina e que tinha grande conhecimento acerca das teorias positivistas, cujo método buscou aplicar no sentido de se adequar a realidade brasileira, produzindo muitos trabalhos científicos. Inegavelmente é considerado como uma das mentes mais brilhantes da época e um dos responsáveis pelo desenvolvimento da disciplina de medicina legal no curso de Direito no Brasil (BARROS FILHO, 2013). Para isso, é necessário compreender o contexto social e histórico onde o país se encontrava durante o surgimento dessas ideias e de que forma elas foram fundamentais no processo de legitimação da desigualdade no sistema penal.

No final do século XIX o Brasil se encontrava em um processo de transição entre o Império e a República, o fim da escravidão e a igualdade formal oferecida pela Constituição de 1891. Muitos debates a cerca da verdadeira identidade nacional foram travados em torno das divisões de raças e da inferiorização daquelas que não eram de origem europeia:

[…] extremando as especulações teóricas sobre o futuro e o destino das raças humanas, do exame concreto das consequências imediatas das suas desigualdades atuais para o desenvolvimento do nosso país, consideramos a supremacia imediata ou mediata da Raça Negra nociva à nossa nacionalidade, prejudicial em todo o caso a sua influência não sofreada aos progressos e à cultura do nosso povo. (RODRIGUES, 2010, p.15)

Dessa forma Nina Rodrigues defendia a relativização da responsabilidade penal que deveria ser atribuída, mas severamente para as raças consideradas inferiores como a raça negra, pois para estas seriam impossíveis à adaptação com a raça mais “evoluída”, a branca, e estariam fadados a serem sempre elementos de grande potencial criminoso:

O negro não tem mau caráter, mas somente caráter instável como a criança, e como na criança – mas com esta diferença que ele já atingiu a maturidade do seu desenvolvimento fisiológico –, a sua instabilidade é a consequência de uma celebração incompleta. Num meio de civilização adiantada, onde possui inteira liberdade de proceder, ele destoa… como eram nossos países d’Europa, essas naturezas abruptas, retardatárias, que formam o grosso contingente do delito e do crime. As suas impulsividades são tanto melhor e mais frequentemente frequentadas para o ato antissocial, quanto às obrigações da coletividade lhes aparecem mais vagas, quanto elas são, em uma palavra, menos adaptáveis às condições de sua moralidade e do seu psíquico. O negro crioulo conservou vivaz os instintos brutais do africano: é rixoso, violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na criminalidade colonial atual.(RODRIGUES, 2011, p.49)

Para o autor a igualdade pretendida pela legislação penal e a Constituição Federal vigentes no período era errônea e falha, visto que já existia a desigualdade natural entre os indivíduos relacionados à raça. Desta forma:

[…]insisto no contingente que prestam à criminalidade brasileira muitos atos ante-jurídicos [sic] dos representantes das raças inferiores, negra e vermelha, os quais, contrários à ordem social estabelecida no país pelos brancos, são, todavia, perfeitamente lícitos, morais e jurídicos, considerados do ponto de vista a que pertencem os que os praticam.

III. A contribuição dos negros a esta espécie de criminalidade é das mais elevadas. Na sua forma, esses atos procedem, uns do estádio da sua evolução jurídica, procedem outros do das suas crenças religiosas. (RODRIGUES, 2010, p.301)

De acordo com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1998), essa dicotomia entre bem e mal nasce com a utilização da linguagem como forma de expressão de poder dos “senhores” que se fortalecem no consciente coletivo como verdades absolutas, moldando o comportamento da sociedade criando o chamado instinto de rebanho. Nessa toada, são construídos no meio social elementos que legitimam as desigualdades e injustiças baseadas em valores criados pelos próprios detentores do poder. Michel Foucault em Microfísica do Poder (2014) assevera que:

[…] estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT,2014, p.279)

Conforme é abordado por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, o fetiche por cometer atos de agressividade e violência contra a população negra na sociedade brasileira vem enraizado desde á época da escravidão, como se pode ver em um trecho citado por ele de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis:

Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo[…] Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mão no chão recebia um cordel nos queixo à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado e ele obedecia, – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai nhonhô”! ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”(ASSIS,1881 apud FREYRE, 1999,p. 370)

Na obra Criminologia e modos de controle social no Maranhão no início do século XX de José Barros Filho (2013), o autor contextualiza essa fase de início de república no Brasil, o processo de legitimação da discriminação e a intervenção estatal para o controle social dos indivíduos socialmente excluídos. Os espaços sociais que estavam inter-relacionados para o crime se confundiam com as forma de diversão popular como os bilhares, o álcool e a prostituição, representados pelo crescimento de diversos botequins e casas de pensão.

Assim, uma nova polícia foi sendo estruturada mais voltada a vigilância e ao controle preventivo, indo para lugares que na sua visão poderiam ser mais propensos a criminalidade, em geral frequentados por pessoas de baixa renda. Apesar do advento de uma nova Constituição cuja prática de prisões correcionais havia sido eliminada formalmente, ainda eram aplicadas como medidas coercitivas de contenção social. Segundo relatos da época é possível observar que a atuação policial neste período fez uso de prisões correcionais como forma de controlar aqueles que se comportavam de maneira indevida ou que cometiam infrações consideradas menores, o que eventualmente ocorria com o uso de prisões arbitrárias e espancamentos (BARROS FILHO, 2013).

Compreende-se então que a criminalização do indivíduo estigmatizado na sociedade surge antes do cárcere em uma situação em que a população subjugada passa por um processo de segregação e isolamento dos demais grupos sociais em que toda a sua rede cultural e simbólica é destruída (CARVALHO, 2014). Nei Lopes, em Bantos, Malês e Identidade Negra, afirma que:

Pelo menos desde a abolição da escravatura, desenvolveu-se no Brasil, na educação e nos meios de comunicação principalmente, um processo de desvalorização da contribuição do negro, sob um ponto de vista branco e europeu. Assim, só é sério e importante o modo de ser de origem europeia: os produtos culturais do negro são considerados apenas como exóticos, engraçados, estranhos, pitorescos. Mas em contrapartida, as classes dominantes quando querem, para consumo externo, classificar algo como tipicamente brasileiro, recorrem à cultura negra e à simbologia, como são os casos do traje de “baiana”, das comidas típicas, da capoeira, do samba e do “futebol-espetáculo” (LOPES, 1988, p.181).

3. A ATUAL CONJUNTURA DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Pode se observar na atual conjuntura do direito penal brasileiro que a gravidade do crime na legislação está muito mais relacionada ao bem patrimonial do que a preservação da vida, e que conforme os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (BRASIL, 2016) 64% da população prisional do país é composta por pessoas negras, sobrepondo-se aos 53% da população brasileira na faixa etária acima dos 18 anos da mesma cor. Assim, compreende-se a criminalidade como status que é atribuído a determinados sujeitos através de dupla seleção dos bens protegidos penalmente nos tipos penais e dos indivíduos estigmatizados no processo de criminalização (BARATTA, 2002).

A ideia de exclusão e legitimação da desigualdade na lei e no sistema penal se perpetuou e se perpetua durante toda a república, como se pode observar na Lei das Contravenções Penais de 1941:

Art. 15: São internados em colônia agrícola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano:

I- o condenado por vadiagem (art. 59);

II- o condenado por mendicância(art. 60 e seu parágrafo) revogado pela lei nº 11983, de 16-7-2009

Em que se define vadiagem como:

Art.59: Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de 15(quinze) dias a 3(meses)

Dessa forma, compreende-se que a penalização está completamente relacionada ao status social do que ao crime em si. Nesse sistema de segregação, é atribuída ao indivíduo a culpa pela própria pobreza, tornando a prisão um desdobramento do gueto, intensificando um processo de exclusão e desigualdade já existentes (WACQUANT, 2007). Por consequência, não se problematiza o Direito Penal como forma de expressão do interesse geral, mas sim os indivíduos, diferenciados, que violam o ordenamento jurídico. A sociedade, então, determina uma única e maniqueísta assimetria, dividida entre o bem e o mal (ANDRADE, 2016).

Essa visão maniqueísta entre bem e o mal se revela nas seguintes configurações: o homem de bem é aquele ligado a economia de mercado inserido e adaptado ao sistema capitalista de produção, à cultura erudita de influência europeia e que possua um fenótipo caucasiano; por sua vez, o homem mal é aquele excluído pela sociedade não só economicamente, mas social e culturalmente e de pele negra (ANDRADE, 2016).

Na legislação penal brasileira é explícita a desigualdade de punição dos delitos em correlação ao dano causado a sociedade como, por exemplo: a corrupção passiva e ativa, respectivamente presentes nos artigos 317 e 333, que em tese pela sua natureza e gravidade impediria muito mais a realização do Estado Social, possui uma pena mínima equivalente a um simples furto cometido por duas pessoas em concurso (2 anos de reclusão).

A desproporção é ainda mais evidente quando se é compara a pena imposta aos crimes mencionados como a do crime de roubo art. 157 (reclusão de 4 a 10 anos). Observa-se ainda que a gravidade do crime está muito mais ligada ao bem patrimonial do que a vida: Homicídio art. 121 quando simples a pena é de 6 à 20 anos e quando há roubo seguido de morte conforme o §3º do artigo 157 a pena mínima é de 20 anos. O crime de extorsão mediante sequestro cuja pena é de 8 a 15 anos em que sua pena mínima representa a pena máxima do crime de redução à condição análoga à de escravo art. 149 que é de 2 a 8 anos (CARVALHO, 2014).

A sonegação de tributos, por exemplo, além de possuir o máximo da pena prevista, menor que a de um simples furto cometido por duas pessoas (neste a pena de reclusão é de 2 a 8 anos, enquanto que para a sonegação a pena é de 2 à 5 anos), recebe inúmeros privilégios previstos em sucessivas alterações legislativas (extinção da punibilidade ou suspensão da pretensão punitiva pelo pagamento ou parcelamento do débito). Tais privilégios não podem ser usufruídos, por exemplo, pelos ladrões de tênis importados, de botijão de gás ou de uma galinha, que apenas contam com a causa especial de diminuição da pena prevista no art. 16 CP (CARVALHO, 2014).

Thiago Fabres de Carvalho (2014) ainda elenca outras séries de desproporções punitivas no código penal como a duplicata simulada (art.172, pena: detenção de 2 à 4 anos) comparado ao furto qualificado, (art.155, § 4º, pena: reclusão de 2 à 8 anos ). O mesmo crime de furto comparado ao de abuso de incapazes (art.173 pena: reclusão de 2 a 6 anos) ou das demais fraudes previstas no art. 174 (induzimento à especulação pena: reclusão de 1 a 3 anos) art. 175 (fraude no comércio pena: reclusão de 6 meses a 2 anos), 176 (outras fraudes pena: reclusão de 15 dias a 2 meses),art. 177 (fraudes ou abusos na fundação ou administração de sociedade por ações pena: reclusão de 1 a 4 anos), art. 178 (emissão irregular de conhecimento de depósito pena: reclusão de 1 a 4 anos) e art. 179 (fraude à execução pena: reclusão de 6 meses a dois anos).

Segundo Hulsman e Celis (1993) existem as chamadas cifras negras da delinquência, ou seja, aqueles crimes que se enquadram na definição da lei penal, mas que não são punidos, e que, portanto não são computados e são ignorados pelo sistema penal. Isso quer dizer que o sistema penal não abarca todos os crimes e sim de forma reduzida alguns deles. Pode se observar que muitos desses crimes omitidos pelo sistema penal vão de encontro ao próprio sistema, colocando em risco a legitimação de determinados atos daqueles que são detentores do poder punitivo. A própria noção de crime é deturpada, pois as vítimas muitas vezes não avaliam e não veem tais condutas como crimes. Logo, o sistema penal age de forma marginal punindo um número ínfimo de delitos que são registrados contra criminosos já estereotipados pelo sistema punitivo.

Nesta senda, pode se observar que a legislação penal brasileira está muito mais preocupada em punir os indivíduos estigmatizados da sociedade como pobres e negros; no entanto,dificilmente alguém será punido por discriminação contra essas classes subjugadas como se pode depreender da evolução das leis contra a discriminação racial no Brasil, em que historicamente sempre se apresentaram como ineficientes, revelando-se assim a perpetuação do processo de coisificação que o negro ainda passa no sistema penal brasileiro.

A primeira lei contra a discriminação racial foi a lei nº 1390 de 3 de julho de 1951 que foi incluída entre as contravenções penais, conhecida como Lei Afonso Arinos, que dizia que:

Art. 1º: Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor.

Esta lei apresentou o primeiro grande esforço legislativo para combater a discriminação racial e um rompimento ideológico do mito da democracia racial de Gilberto Freyre em que se propagava a harmonia das três raças (branco, negro e o índio) que constituíam a identidade racial e cultural do povo brasileiro. No entanto, a Lei Afonso Arinos apresentava diversas fragilidades em seu texto normativo, pois ao considerar o crime de discriminação como mera contravenção, interpretou tais delitos como de menor importância e com isso não teve a poder repressivo suficiente para coibir os atos de discriminação, pois em suas mais de três décadas de vigência nunca obteve nenhum registro de prisão baseada em sua norma(CAMPOS, 2015).

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, XLII tornou o racismo como crime inafiançável sujeito a pena de reclusão A lei Afonso Arinos foi substituída pela Lei 7716 de 5 de janeiro de 1989, mais rígida, que determina em seu art. 1º com alteração dada pela lei nº 9459 de 15 de maio de 1997 que:

Art. 1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Apesar dos avanços normativos em torno do combate a discriminação racial, as punições ainda são muito escassas, e o que ocorre ainda é que somente a população excluída socialmente é punida pelos seus delitos. Além do encarceramento pelos crimes cometidos, a população negra e pobre sofre também com o controle social imposto pelo Estado que se abstêm do seu papel de atender as demandas sociais, mas que reaparece sempre no processo punitivo, em uma postura autoritária e de pouco diálogo, de modo a repreender o indivíduo antes mesmo do cometimento de algum crime.

Florestan Fernandes em O negro no mundo dos brancos observa que:

A liberdade de preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se mantenha o decoro e suas manifestações possam ser encobertas e dissimuladas (mantendo-se como algo íntimo que subsiste no “recesso do lar”; ou se associa a “imposições” decorrentes do modo de ser do agente ou do seu estilo de vida pelos quais eles têm o “poder de zelar” (1972 p.24)

4. SUBCIDADANIA E DESDOBRAMENTO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Na medida em que o Estado foi se afastando das demandas sociais, mais o poder estatal punitivo foi substituindo-o criando uma estrutura de contenção dos tumultos gerados pela intensificação da insegurança e marginalidade sociais (WACQUANT, 2007). Observando-se que:

A cultura jurídica dominante no Brasil é herdeira de duas grandes matrizes (alienígenas) das quais derivam suas condições de produção e possibilidade: do positivismo normativista, em nível epistemológico, e do liberalismo, em nível político-ideológico, de onde resulta sua caracterização como uma cultura jurídica positivista de inspiração liberal (ANDRADE, 2016, p.69)

A ideia de controle social punitivos das populações que possivelmente possam apresentar um potencial de periculosidade para a sociedade e que fugiram da ótica de controle do Estado representam a falência deste nos mecanismos de projeção e inserção da cidadania. (WACQUANT, 2007). Nesse sentido como bem aborda Paulo Freire(1987):

Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua “generosidade” são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme me situem, interna ou externamente, de “essa gente” ou de “massa cega e invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de “subversivos”, são sempre os oprimidos os que desamam. “São sempre eles “os violentos”, “os bárbaros”, “os malvados”, “os ferozes”, quando reagem à, violência dos opressores”. (FREIRE, 1987, p.24)

Revela-se então uma cidadania de baixa intensidade em que se apresenta a incapacidade cívica do cidadão de influenciar no processo de decisão de políticas públicas. A participação acaba por se restringir apenas ao voto, em que os regimes de discursos autoritários procuram evitar que o indivíduo possa exercer um direito de caráter emancipatório para desviar a atenção dos seus reais problemas disseminando a insegurança e a cultura do medo (PASTANA, 2003), em que

[…] a opção democrática liberal vai ser pela democracia representativa ou indireta (que se reduz à democratização do Estado ou a uma forma de regime político), e não pela democracia participativa, direta ou outra, que abrangeria a democratização da sociedade civil. E é por isto enfim que o correlato modelo de cidadania vai ser o direito à representação política. (ANDRADE, 2016, p.71)

A sociedade procura por medidas mais repressoras e punitivas por medo do estigmatizado, onde se observa que é perceptível que a autoridade nasce da ambição e das cisões do corpo social (PASTANA 2003). Assim, no meio social, o mecanismo de marginalização é colocado em ação pelas instituições e reforçado pelos mecanismos de controle social informal como a família, a escola. Estes se referem, sobretudo à distância social, que isola a população criminosa do restante da sociedade, e a “proibição de coalizão”, que desencoraja toda forma concreta de interação social e solidariedade entre os presos e a sociedade (BARATTA, 2002).

A preocupação maior não é a de criar um debate crítico sobre as demandas sociais e políticas e sim de fazer uma reinserção do indivíduo de forma que ele se torne útil para o sistema capitalista de produção como se fosse uma mera peça de engrenagem, não o tornando consciente de si em um processo emancipatório de conhecimento. Tal abordagem é relatada na visão de Foucault em Vigiar e Punir: nascimento da prisão;

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política” que o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (2007, p 119)

Para o senso comum, existem os homens de bem e os homens de mal, sendo os primeiros os exemplos ideais de valores e de vida a serem seguidos pelos demais, que os segundos estariam impedindo que eles vivessem em torno desse padrão de virtudes e harmonia social. A função declarada do sistema penal seria a de controlar as condutas dos chamados homens maus (a criminalidade) para garantir a boa vida dos homens bons (a cidadania) (ANDRADE, 2016).

Aquele que desvia a regra do grupo, o outsider, é um sujeito que desperta muito interesse da sociedade para se saber o porquê deles serem transgressores das regras e por que apresentam condutas sociais diferentes. No entanto pode se compreender que quem cria o conceito de desvio é a sociedade, não no sentido de que as causas do desvio estão contidas na situação social e econômica do desviante e sim que grupos sociais criam as regras, cuja infração se constituem um desvio aplicado a pessoas rotuladas como outsiders. Dessa forma o desvio não é a qualidade do ato praticado e sim uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções para o indivíduo rotulado como infrator. Ou seja, o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 2008). 

O tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo da boa conduta social consiste em que lhe é negado pelo direito a sua condição de pessoa. Ele só é caracterizado pelo aspecto perigoso, socialmente prejudicial. Por mais que a ideia não esteja claramente exposta, quando se propõe estabelecer a diferença entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a indivíduos que são privados de determinados direitos individuais, razão pela qual deixaram de ser considerados pessoas e esta é uma das incompatibilidades que a aceitação dos hostis, no direito, apresenta com relação ao princípio do estado de Direito (ZAFFARONI, 2007).

Dessa forma, o medo da população subjugada impede a interação da sociedade criando um processo de exclusão daqueles que não possuem o perfil imposto socialmente. Como as pessoas estão cada vez mais isoladas em casa elas não convivem entre si e, como consequências disso, não se articulam politicamente para resolver seus problemas e muitas vezes desrespeitam as regras de convivência social (PASTANA 2003). Foucault em A sociedade punitiva (2015), explica que:

A função do poder é definida em relação a esse confronto entre as classes e para proteger uma classe da outra. Finalmente, a ideia de regeneração dessa classe primitiva e abastardada pela intervenção do poder político e pela vigilância perpétua possibilita articular a teoria do delinquente como inimigo social com a prática da correção (2015, p. 151). 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito penal como última ratio na resolução dos conflitos vem a cada dia sendo mais requisitado e se tornando elemento substitutivo do exercício da cidadania e da análise crítica das demandas sociais. A institucionalização das desigualdades sociais implícita e explicitamente expostos na legislação penal e no processo de encarceramento tem sido fundamental para a perpetuação destas, em que a sociedade, em uma visão maniqueísta do bem e do mal sobre os indivíduos a quem foram historicamente atribuídos o status de criminoso como negros e pobres, tem mantido o processo de exclusão para a manutenção da ordem social e econômica vigentes sem se preocupar em travar um diálogo pautado na construção e no desenvolvimento da cidadania.

A ideia de contenção social das classes marginalizadas se tornou o principal discurso impulsionador do desenvolvimento da cultura do medo perante os tumultos sociais. Ocasionados pela desassistência do Estado no processo de inserção social da população, continua sendo propagado à ideia de que uma possível reivindicação por direitos dessa população seria ameaçador e perigoso para a sociedade. As teses da Escola Positivista que serviram por muito tempo como embasamento científico para a manutenção da desigualdade, ainda ecoam no pensamento do senso comum e também muitas vezes no sistema de justiça, tendo em vista que o processo de marginalização e invisibilidade sociais acontece antes do cárcere, em que tudo aquilo que é associado cultural e socialmente às populações subjugadas é tido como criminoso também.

O processo de exclusão social está intimamente ligado à forma como se estrutura o sistema penal, se posicionando sempre a favor de manter protegidos os interesses dos grupos economicamente dominantes. Tendo em vista os inúmeros artigos presentes no código penal que confirmam essa ideia, observa-se que o indivíduo é muito mais punido pela sua condição social do que pelo delito cometido.

Portanto, medidas meramente repressivas requeridas pela sociedade sem haver uma reflexão crítica sobre se de fato esse seria o melhor caminho para efetivação da justiça, seriam apenas elementos que perpetuariam a desigualdade já engendrada na sociedade e legitimada pelo sistema penal. Nesse contexto, é necessária que haja uma interação da sociedade para melhor entendimento da amplitude dos problemas sociais sem se afastar da compreensão histórica sobre os fatores que levaram a construção de estereótipos dos indivíduos, como a discriminação racial, a falta de efetividade do Estado nos projetos de inserção social daqueles que foram excluídos do exercício digno da cidadania e que deram origem a diversos conflitos sociais existentes. Assim será possível criar uma sociedade mais democrática e menos desigual.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

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[*]Acadêmica de Direito Bacharelado pela Universidade Estadual do Maranhão e Estudante-pesquisadora do Núcleo de Estudos em Processo Penal e Contemporaneidade – NEPPC/UEMA. Bolsista do Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica– PIVIC/UEMA (2018-2019). E-mail:  dominickluzolo@hotmail.com. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/8803817515564850

Como citar e referenciar este artigo:
BONGO, Dominick Luzolo Veloso. Do gueto ao cárcere: o estigma sociorracial do negro no sistema penal brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/do-gueto-ao-carcere-o-estigma-sociorracial-do-negro-no-sistema-penal-brasileiro/ Acesso em: 20 abr. 2024