Direito Penal

Análise sobre o advento do artigo 218-B, CP (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável) e o destino do artigo 244-A do ECA

LORENA SOARES PEREIRA

INTRODUÇÃO:

O objetivo inicial do presente artigo é analisar se o artigo 244-A do ECA foi revogado pelo artigo 218-B do código penal, baseando-se no fato que há duas vertentes acerca da interpretação do quesito, levando-se em conta as duas legislações. De acordo com a primeira posição houve a revogação tácita do artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. Este artigo encontra-se totalmente contido no disposto no artigo 218-B do Código Penal.Como segunda posição, antes da redação dada pela lei 12978/2014 ao tipo penal, defendia-se a revogação tácita do artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente apenas no caso de menores de 14 anos, uma vez que o legislador equivocou-se ao mencionar “menor de 18 anos”, nocaputdo artigo 218-B, já que o tipo denomina-se “favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável”, e vulnerável, pela interpretação da Lei nº. 12.015/2009 é o menor de 14 anos.

1. ANÁLISE SOBRE A REVOGAÇÃO TÁCITA DO ARTIGO 244-A DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE PELO ARTIGO 218-B DO CÓDIGO PENAL

Deve prevalecer o entendimento adotado pela maioria dos doutrinadores, como Nucci, Cesar Roberto, Válter Ishida, que houve revogação tácita do artigo 244-A do ECA pelo 218-B do CP tendo em vista ser a vertente coerente adequada e atualizada, uma vez que o tipo penal abrangeu o do Estatuto da criança e do adolescente em sua inteireza.

Por exemplo: Segundo o entendimento ultrapassado, suponha uma que pessoa submeteu um adolescente de 16 anos à prática de exploração sexual, sem o intuito de obter vantagem econômica. De acordo com a segunda posição, deve-se aplicar o artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, impondo a pena de reclusão juntamente com a pena de multa. Contudo, tomando a mesma situação, alterando apenas a vítima, ao invés de um adolescente de 16 anos, um adolescente de 13 anos, o entendimento seria pela aplicação do artigo 218-B do Código Penal, impondo somente a pena de reclusão.

Significaria ser uma conduta menos gravosa induzir, por exemplo, um adolescente de 13 anos à exploração sexual do que induzir um adolescente de 16 anos à mesma prática exploratória, caso não haja finalidade de obtenção de vantagem econômica, o que se revela um contra senso, tendo em vista que o envolvimento de menores de 14 anos em qualquer tipo de atividade sexual configura estupro de vulnerável, de acordo com o artigo 217-A da codificação penal.

Houve uma falha deixada pelo legislador até a entrada em vigor da lei 12978/2014 que alterou a redação do artigo 218-B. Pela interpretação do conteúdo total da Lei n.º 12.015/2009 pode-se afirmar que os vulneráveis são os menores de 14 anos completos e os que, por enfermidade ou deficiência mental, não apresentam o necessário discernimento para a prática do ato.

Não houve, portanto, revogação expressa do artigo 244 – A do ECA, mas certamente houve revogação tácita. A lei posterior (Lei 12.015/09) revogou tacitamente a lei anterior (ECA – Lei 8069/90). A partir de agora aquele que pratica prostituição ou exploração sexual infanto – juvenil responde pelo artigo 218 – B e não mais pelo artigo 244 – A, do ECA. Não há incompatibilidade dos dispositivos, que seria uma das hipóteses de revogação tácita, mas ocorre que a lei posterior (artigo 218 – B com a redação dada pela Lei 12978/14) trata inteiramente da matéria de que tratava a lei anterior, inclusive acrescendo maiores detalhamentos, pois abrange a criança e o adolescente e os vulneráveis. Houve, portanto revogação tácita do artigo 244 – A, do ECA, nos estritos termos do artigo 2º., § 1º., “in fine” da Lei de Introdução as normas do Direito brasileiro.

2. CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA

Crime comum (exceto na hipótese do § 2o, II), material, de forma livre, instantâneo (“submeter”, “induzir”, “atrair” e “facilitar”) ou permanente (“impedir” e “dificultar”), comissivo (excepcionalmente, omissivo impróprio), unissubjetivo e plurissubsistente.

Trata-se de crime comum, visto que qualquer pessoa imputável penalmente pode praticar o crime (art. 26, CP), ou seja, aquela maior de 18 anos de idade, capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

É um crime doloso, em razão de haver necessidade da vontade do agente de submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou ainda a vontade livre e consciente de facilitar, impedir ou dificultar o abandono da prostituição ou outra forma de exploração sexual. É válido ressaltar a diferenciação que, no crime de corrupção de menores, o agente visa a atender a lascívia de determinada pessoa, já no crime de favorecimento à prostituição, não há objetivo de atender determinada pessoa.

Depende da prática de um dos verbos descritos no tipo, sendo por isso um crime comissivo, precisa de uma ação.

Ademais, é um crime material, pois não basta induzir, atrair ou facilitar, mas necessita que produza o efeito desejado na vítima, ou com o início da vida na prostituição, não se exigindo o comércio. Na forma de submissão, também há necessidade da introdução à prostituição. No impedimento ou dificultação, não há essa distinção entre crime formal/material, porque já existe o resultado naturalístico- que é a prostituição-, consumando-se no momento em que o agente impede que a vítima cesse a prostituição, ou no momento que cria obstáculos para deixar a prostituição. 

Nas condutas equiparadas, p. 2º, inc. I, responde pelas mesmas penas o agente que pratica conjunção carnal/ato libidinoso com menor de 18 e maior de 14 anos na situação descrita no caput; e no inc. II, basta ser proprietário, gerente ou o responsável pelo local onde ocorrem as práticas referidas para a configuração do delito.

Por último, e não menos importante, há de se destacar a possibilidade da tentativa. Para melhor entendê-la e visualizá-la, traz-se o seguinte julgado:

Ementa. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME SEXUAL CONTRA VULNERÁVEL. FAVORECIMENTO A PROSTITUIÇÃO E EXPLORAÇÃO SEXUAL. TENTATIVA. PLEITO ABSOLUTÓRIO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA.Comprovadas a materialidade e autoria do delito, imperiosa a condenação do réu. Caso dos autos em que o acusado, aproveitando-se do fato de a ofendida encontrar-se sozinha em frente ao seu Colégio, estacionou veículo, oferecendo carona para a menina, o que foi aceito. Todavia, ao invés de seguir pelo caminho acordado, tomou percurso diverso, parando o automóvel em grande distância da cidade, momento em que passou as mãos nos seios da vítima, oferecendo-lhe a quantia de R$ 50,00 para que o beijasse, o que foi negado. Vítima que reconheceu o réu como autor da empreitada delituosa. Prova suficiente para condenação. Pena corretamente fixada e fundamentada pela Magistrada singular, de forma que não merece alterações. Apelação desprovida. (Apelação Crime Nº 70054350913, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Julgado em 29/08/2013) (grifos nossos)

Nesse sentido, fica claro que o fato do agente oferecer dinheiro para alcançar a prática de ato libidinoso, se aceito pela vítima, caracterizaria a prostituição da mesma. Como foi negado, restou apenas em tentativa, que também é punível.

4. SUJEITOS DO CRIME

O sujeito ativo deste artigo pode ser qualquer pessoa, tendo em vista que é um delito comum. Inclui o gerente, proprietário ou responsável do local em que ocorre as práticas. Além disso, responde pela mesma pena aquele que praticou a conjunção ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 anos e maior de 14 anos, como forma de evitar a pedofilia.

Por outro lado, o sujeito passivo é o menor de 18 anos ou maior de 18 que tenha enfermidade ou deficiência mental e assim não tenha discernimento para a pratica do ato. Dessa forma, o artigo 218-B ampliou o conceito de vulnerável para garantir a dignidade sexual dos mesmos.

O artigo 218-B foi criado com o objetivo de tutelar a liberdade sexual do vulnerável, sendo assim é importante ressaltar a afirmação do autor Bittencourt quando ele afirma que:

A pessoa inclusive pode já estar prostituída, sendo irrelevante a condição amoral da vítima. (Bittencourt, tratado de direito penal, v.4, p.87).

A Lei 12978 de 21 de maio de 2014 acrescentou expressamente a criança e o adolescente como vítimas do crime de favorecimento da prostituição, apesar de que elas já poderiam ser entendidas como vulneráveis no preceito anterior, sendo assim é preciso esclarecer os conceitos previstos no atual Estado da Criança e do Adolescente em que criança é a pessoa até os doze anos de idade incompletos, já adolescente é aquela entre doze e dezoito anos de idade.

5. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

A maior polêmica a respeito do art. 218-B reside em sua consumação.

Na modalidade “outra forma de exploração sexual”, não há discussão alguma, pois a exploração pode se dar em uma única oportunidade. Contudo, em relação à prostituição, discute-se a necessidade de sua habitualidade.

Para esclarecer o tema, e considerada a sua complexidade, analisa-se a seguir, ponto a ponto, o debate que o envolve.

1º ponto: Crime instantâneo ou permanente –  nas modalidades “submeter”, “induzir”, “atrair” e “facilitar”, basta que o agente pratique uma única conduta para que o crime esteja configurado, seja em sua forma consumada ou tentada. Não é necessária a reiteração, e a sua conduta não se prolonga no tempo. Ex.: o agente leva a vítima, em uma única oportunidade, a um bordel, para a oferta dos seus serviços sexuais. Portanto, crime instantâneo.

Quanto aos verbos “impedir” ou “dificultar”, hipóteses em que o agente impõe obstáculos ao abandono da prostituição, enquanto a vítima estiver impossibilitada, por influência dele, de abandonar o seu exercício, o crime estará em execução. Logo, crime permanente. Ex.: o agente ameaça deixar a vítima sem moradia se abandonar a prostituição. Enquanto perdurar a ameaça, e a vítima se sentir impedida de parar de se prostituir, o crime estará em execução, prolongando-se ao longo do tempo a conduta do agente.

2º ponto: consumação e tentativa – para alguns autores, nas modalidades “submeter”, “induzir”, “atrair” e “facilitar”. O crime só se consumaria se a vítima passar a se dedicar, habitualmente, à prostituição. Por exemplo: o agente convence a vítima a se posicionar em determinada esquina onde, sabe-se, pessoas são oferecidas para programas sexuais. Para parte da doutrina, o crime só se consumará se a vítima passar a, habitualmente, oferecer-se à prostituição embora tenha havido um único ato do agente (o convencimento no primeiro dia). No exemplo, e com base neste entendimento, a vítima teria que passar a frequentar habitualmente a “esquina da prostituição” para que o crime se consume. Para esta corrente, se a vítima vier a se prostituir uma única vez, o crime será tentado.

Na lições de Capez: “Deve-se consignar, no entanto, que, para a consumação, será necessário que a pessoa induzida passe a se dedicar habitualmente à prática do sexo mediante contraprestação financeira, não bastando que, em razão da indução ou facilitação, venha a manter, eventualmente, relações sexuais negociadas. Assim, o que deve ser habitual não é a realização do núcleo da ação típica, mas o resultado dessa atuação, qual seja, a prostituição da ofendida. Não havendo habitualidade no comportamento da induzida, o crime ficará na esfera da tentativa.” (Código Penal Comentado, p. 798).

Nucci afirma, no entanto, que é impossível a tentativa: “Não admite tentativa nas formas submeter, induzir, atrair e facilitar, por se tratar de crime condicionado. A prostituição e a exploração sexual são elementos normativos do tipo, implicando em exercício do comércio do sexo ou sexo obtido mediante engodo. Exemplificando, no caso da prostituição, não se pode considerar uma mulher como prostituta se uma única vez teve relação sexual por dinheiro ou qualquer outro ganho material.” (Crimes contra a dignidade sexual – comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, p. 55/56).

E Cleber Masson também aponta em direção à habitualidade da prostituição: “Nos núcleos ‘submeter’, ‘induzir’, ‘atrair’ e ‘facilitar’, a consumação se dá no momento em que a vítima passa a se dedicar com habitualidade ao exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual, ainda que não venha a atender pessoa interessada em seus serviços” (Código Penal Comentado, p. 826).

Por fim, Cezar Roberto Bitencourt tem o mesmo entendimento a respeito do conceito da prostituição: “Prostituição é o exercício habitual do comércio carnal (do próprio corpo), para satisfação sexual de indeterminado número de pessoas. O que caracteriza efetivamente a prostituição é a indeterminação de pessoas e a habitualidade da promiscuidade.” (Código Penal Comentado).

Portanto, adotando-se os conceitos dados pela doutrina, parece mais correta a reflexão inicial, de Capez: se não houver habitualidade da prostituição, o crime do art. 218-B ficará na esfera da tentativa.

De qualquer forma, seja qual for o posicionamento adotado, algo não se discute: para a consumação do delito, não é necessário que a vítima venha a, de fato, ter relações sexuais, bastando a oferta à prostituição.

6. OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O 218 – B CÓDIGO PENAL

O Brasil assumiu, na Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (vide Decreto n. 5.007/04), o compromisso de combate à prostituição de crianças. Ademais, em outros acordos internacionais, firmou o seu dever de proteção à dignidade humana, inegável objeto jurídico dos crimes contra a dignidade sexual. Por isso, ainda que o delito do art. 218-B do CP seja praticado no exterior, incidirá a lei brasileira, por força do que dispõe o art. 7o, II, a do CP – extraterritorialidade condicionada.

No I Congresso Mundial sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado em 1998, em Estocolmo, na Suécia, foram definidas além da prostituição infantil, mas três modalidades de exploração sexual, não como rol taxativo, mas meramente exemplificativo, a saber:

(a) o turismo sexual – é a exploração sexual de crianças e adolescentes, articulada em cidades turísticas, envolvendo turistas nacionais e, principalmente estrangeiros, que saem de seus países para outros, geralmente países em desenvolvimento, para ter atos sexuais com crianças ou adolescentes;

(b) a pornografia infantil – consiste na produção, distribuição, exibição, compra, venda, posse e utilização de qualquer tipo de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas ou simuladas com a finalidade de fornecer satisfação sexual ao usuário; e

(c) o tráfico de criança ou adolescente para fins sexuais – é o movimento clandestino e ilícito que envolve o recrutamento ou transporte, de pessoas através de fronteiras nacionais, que implica no engano, coerção, alojamento ou fraude com o objetivo de forçar crianças e adolescentes a entrarem em situações sexualmente opressoras e exploradoras, para o lucro dos aliciadores, traficantes.

6.1 EFEITOS DA CONDENAÇÃO

Nos termos do § 3º, do art. 218-B, do Código Penal, “Na hipótese do inciso IIdo § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença e de funcionamento do estabelecimento”.

Consequentemente, o proprietário, gerente ou responsável pelo local, além de responder pela figura típica equiparada (item anterior), tem como efeito da condenação a cassação da licença e de funcionamento do referido local, sem prejuízo dos demais efeitos da condenação (Código Penal, arts. 91 e 92). Embora obrigatório, esse efeito da condenação deve ser expressamente declarado na sentença.

7. REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação penal especial;  3 ed. – São Paulo: Saraiva, 2008. 

CUNHA, Rogério Sanches. Código penal para concursos. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

MASSON, Cleber. Direito penal – parte especial. V. 3. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza.  Leis penais e processuais penais comentadas: 2 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007a.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: 3 ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007b

Como citar e referenciar este artigo:
PEREIRA, Lorena Soares. Análise sobre o advento do artigo 218-B, CP (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável) e o destino do artigo 244-A do ECA. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/analise-sobre-o-advento-do-artigo-218-b-cp-favorecimento-da-prostituicao-ou-outra-forma-de-exploracao-sexual-de-crianca-ou-adolescente-ou-de-vulneravel-e-o-destino-do-artigo-244-a-do-eca/ Acesso em: 28 mar. 2024