Direito Internacional

Intervenção da ONU no Haiti

 

Trabalho apresentado em espanhol, em 2008, à Universidade do Museu Social de Buenos Aires, como parte integrante das exigências da Cadeira de Direito Público (Internacional) do Curso de Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais.

 

Problema

 

Quais as ações diplomáticas de forma multilateral a envolver países de níveis desiguais, capazes de promover a paz social e ao mesmo tempo promover políticas de redução da pobreza e estabelecer inclusão social de modo a implantar sentimentos capazes de despertar os apelos à dignidade humana?

 

Hipótese

 

A restauração e a reabilitação dos direitos fundamentais de um povo pertencente a um Estado em agonia provocada pela pobreza, pelas desigualdades, e pela provocada atuação do imperialismo requer atuação não só de forças armadas asseguradoras da paz interna, mas também de projetos e meios para estimular a ordem social, jurídica e o soerguimento do Estado.

 

Objetivos

 

Investigar o desempenho da MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti e localizar os limites da diplomacia capaz de somar esforços para restabelecimento da estabilização civil naquela região.

 

Conclusão

 

Analisando pronunciamentos contrários à atividade multinacional visando à estabilização do Haiti, conclui-se que a total desestabilização social que conduziu o seu povo a profundo desamor e à indiferença para com princípios de humanidade e aos interesses coletivos, exigem essa intervenção a ser exercida não só de forma enérgica, mas de maneira a revelar respeito pelo país e pelo seu povo, para que sejam abertos caminhos e programas outros visando à reconstrução material e ideal daquela gente.

 

 

INTERVENÇÃO DA ONU NO HAITI

 

O Haiti, seu povo e sua sorte

 

O topônimo Haiti, que significa terra montanhosa, foi escolhido para identificar a parte ocidental da ilha caribenha que tem na sua parte oriental a atual República Dominicana.

 

Consta que a ilha é habitada por humanos há cerca de 7.000 anos, e que em 1492 Cristóvão Colombo aportou nesse lugar a que atribuiu o nome de Hispaniola.

 

A ilha veio a ser ocupada depois pelos franceses, que deram-lhe o nome de São Domingos.

 

Ilha essa que sofreu nova investida pelos seus descobridores, que acabaram dividindo-a em duas porções, ficando a parte leste hoje chamada República Dominicana, e a Oeste denominada Haiti.

 

Não muito tempo depois da descoberta realizada por Colombo a população nativa, indígena, acabou desaparecendo porque dizimada e expulsa pelos seus colonizadores.

 

Dizem que a parte francesa – Haiti – teria sido próspera.

 

Realmente o foi, mas a interesse da França, que desenvolveu a cultura da cana de açúcar, industrializando-a para consumo no país francês e para o comércio com outros povos.

 

Não há dúvida de que o Haiti foi um país parece que predestinado à exploração por outros, não só das suas riquezas, mas do seu povo, literalmente escravizado ao longo dos tempos, ao extremo de ter visto certa vez cedida uma parte do seu território à França, pelos espanhóis.

 

Os franceses chegaram a assassinar um governador geral do lugar, descendente de escravos, que conseguira «conquistar o poder» através de uma revolta justa promovida por seu povo.

 

Em meio aos movimentos internos visando à independência, um patriota chegou a assumir o poder, proclamando-se imperador do país, que logo depois voltou ao controle pelos franceses.

 

Em cinqüenta anos dos séculos XIX e XX o Haiti teve cerca de 20 governantes, dos quais 16 foram depostos e assassinados.

 

Por incrível que pareça, os Estados Unidos da América, dizendo ter necessidade de proteger seus interesses na região do Haiti o dominou também, por cerca de 20 anos, i. e., de 1915 a 1934.

 

O governo ficou à deriva por mais de 10 anos depois disso, até que em 1957 assumiu o poder François Duvalier, tornando-se vitalício e praticante da mais cruenta ditadura, mantendo-se no poder mediante sucessivas matanças de haitianos que pudessem ser vistos como adversários e tendentes à prática do que se chamava subversão da ordem instalada a ferro e fogo pelo ditador.

 

Empós de François Duvalier veio seu filho Jean-Claude, incapaz de organizar e chefiar o país, terminou por abandoná-lo, fugindo para a França, sucedendo-o Jean-Betrand Aristide, que veio a ser deposto pelos militares.

 

Os governantes militares que se sucederam mantinham-se no poder pela força, época em que a corrupção chegou ao extremo.

 

Aristide retornou ao poder pelas mãos dos norte-americanos, vindo a deixar o país em 2004, época em que instalou-se situação de grave conflito interno, em meio a uma economia destroçada.

 

Por força de iniciativa do Presidente da Suprema Corte de Justiça do Haiti, Bonifácio Alexandre, que fez a ONU retomar a tarefa de ocupar o país através de uma «missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah)», que assumiu a autoridade exercida pela malograda Força Multinacional Interina.

 

Apesar da constante intervenção de estranhos no Haiti, tal situação incrivelmente absurda foi coroada com a ocupação pelo organismo representativo internacional, com sensível controle policial interno pela força bruta.

 

Ao longo dos últimos anos observou-se que o Fundo Monetário Internacional ainda exerce ingerência naquele país, fazendo previsões econômicas – muito conhecidas pelos americanos do sul – ditando regras e impondo medidas drásticas dessa ordem.

 

Ignora-se nesse caso, que a presença do FMI nos países periféricos sempre foi um desastre para seus povos, e o Haiti, diferente do que ocorreu com outros países do chamado miserável terceiro mundo, não conseguiu eliminar ainda esse mal que desnatura toda uma nação, ao que se vê, em razão do domínio da sua economia pela imposição de políticas escravagistas.

 

Observe-se que, a despeito dessa situação de penúria por que vem passando o Haiti, instituições financeiras poderosas tem conseguido receber em dia todos os seus créditos decorrentes de compromissos assumidos através de governos haitianos corruptos que impuseram a miséria dessa forma, sem que os bancos credores, os especuladores, e nem o FMI percebessem a absoluta impossibilidade de esse povo honrar, sem sangrar, tais crimes praticados por toda essa gente, que não vê que a metade dos haitianos não usa mais de 3 dólares diários para viver sua média de 50 anos apenas.

 

O raciocínio lógico conduz à idéia de que, em razão da eterna e constante ocupação do Haiti por estrangeiros de toda ordem, o país jamais conseguiu obter meios para constituir-se num Estado dotado de todas as condições que se fazem necessárias a um povo livre.

 

O Haiti jamais conquistou uma riqueza, porque os expoliadores vindo dos mais diversos pontos do globo sempre exauriram as forças intelectuais e físicas de sua gente; esse domínio externo jamais permitiu formasse-se um líder no país.

 

Enfim, o Estado jamais tornou-se soberano, sendo essa, talvez, a principal razão das anomalias que se multiplicaram e se sucederam aí.

 

O Estado Haitiano jamais se erigiu tutor do bem estar de sua nação (povo), porque a um só tempo teve de atender à incessante avidez dos bancos americanos e de outros bancos internacionais, à insaciável fome dos seus governos corruptos, como teve de tolerar a prática de desordem, em razão da falta de liderança e de compromisso político administrativo por seus governantes, não surgindo em caso qualquer perspectiva de acontecer de parte do Estado, por si, o cumprimento de uma função agregadora capaz de fazer concebível a noção da existência de um «todo social». Ao longo da história e até o presente momento não houve sequer prática de política capaz de fazer sobreviver o próprio ente estatal.

 

A propósito do tema, o Prof. Rosemiro Pereira Leal, em sua tese de doutoramento defendida na Universidade Federal de Minas Gerais, Soberania e Mercado Mundial, 1994, pág. 167 lembra:

 

«A posição dicotômica assumida pela Estado como sujeito da atividade econômica, ora como Estado-Programador, ora como Estado-Empresário, como registra Calogero, fortalece a tese de que, em qualquer hipótese, os Estados têm identidade com o bem-estar da coletividade, sendo este o seu fim precípuo e que reclama uma política econômica centrada no Direito Econômico como forma de harmonizar interesses individuais e coletivos. Com a atual e consensual autonomia do Direito Econômico como ramo da Ciência Jurídica e a vocacional equiparação dos direitos econômicos aos direitos e deveres fundamentais, ao lado dos Direitos Sociais e Culturais,conforme acentua Marshall, temos que reconhecer que o Direito Econômico é um repositório jurídico-científico de normas e institutos, destacado da figura do Estado e que a este obriga à medida que o Estado se apresente como sujeito (agente) da política econômica nas suas múltiplas relações jurídicas com a realidade econômica.»

 

A preleção, de ilustre origem tem sua razão de ser e mostra como o Estado é de realizar suas funções, mas o que causa perplexidade é o contato com um Estado em que não há sequer agregação do seu povo, acostumado à rebeldia pela imposição externa em seus destinos há de mais de quinhentos anos.

 

Considera-se que o Estado sociedade é de ser completo e perfeito. O Haiti está muito longe disto.

 

Impossível sobreviver no território de um Estado atingido sempre na sua soberania, e na sua estrutura social, porque ele não tem, nessas condições, mecanismos livres para ordenar as atividades privadas e apoiá-las nos limites corretos.

 

As famílias integrantes da sociedade (povo) não são suficientes para tornar possível a aquisição de bens; e os homens, embora congregados para formação da riqueza hão de estar em liberdade, e a insuficiência dessa sociedade à evidência é de ser sanada pelo Estado que, para tanto é de ser soberano, capaz e realmente – juridicamente – livre.

 

 

Críticas à presença da ONU no território

 

Há movimentos, tanto no Brasil como em outros países, contra a ocupação militar do Haiti por determinação da ONU, ao ponto de levar a público mensagens, em resumo, nos termos seguintes:

 

«A ocupação militar da nação haitiana significa por si mesma, a negação de todos os princípios básicos de direito internacional publico. Entre eles o direito a soberania nacional dentro do quadro transnacional de reciprocidade e solidariedade. Ocorre que a ocupação militar da Minustah, a título de promover a estabilização, converte-se em presença opressora e, portanto espoliadora. O povo desassistido e oprimido do Haiti não precisa de tropas militares, de intervenção bélica, policiamento, mas sim de ser exonerado do ilegal e ilegítimo endividamento externo mantido para o lucro do sistema financeiro internacional especulativo. Além da dívida contemporânea, existe a dívida história: 45% da dívida externa atualmente paga pelo povo haitiano, foi contraída durante as ditaduras da família Duvalier. O Haiti, carece, antes de tudo, de apoio técnico, para sua agricultura, médicos para sua população, e de implantação internacional de projetos sociais de saúde, saneamento, educação e pleno emprego, que estimulem em curto prazo sua emancipação.

«O Haiti, no entanto, vem também sendo objeto, nos últimos anos, de presenças internacionais positivas para seu desenvolvimento e inadiável emancipação. Podemos mencionar apenas aquelas integradas por brasileiros, em 2005 e 2007. Tanto a Mission Internacional de apoyo y solidariedade ao Haiti (com participação decisiva do Jubileu Sul), quanto à de 2007, apoiada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, forneceram diagrama social gravíssimo, marcado de miséria absoluta, doenças, fome e desemprego, que a Minustah não encarou, nem nenhuma pratica invasora militarizada poderia resolver. (…)» (http://www.jubileu brasil.org.br/nao-a-guerra/manifesto-contra-a-ocupacao-militar-do-haiti-pela-minustah)

 

Razões de ordem ética, política e humana conduzem ao raciocínio no sentido de que o manifesto supra transcrito é dotado de milhares de razões, porque em verdade não se vê um progresso nas áreas econômica e política do país, havendo presença militar estrangeira, porque, por obra da opressão sofrida pelo povo do Haiti houve uma desagregação de tal ordem, que a mera convivência dos habitantes é de ser assistida.

 

Mas só essa segurança, sobretudo com a presença dos bancos e dos especuladores extorquindo a sociedade, que carece mesmo de uma reengenharia social e organizacional, não vai conduzir a um resultado prático nem a médio prazo.

 

 

Necessidade da presença internacional sem interesse próprio, no país

 

De fato, há necessidade de reconstrução do país, mas, seria inimaginável afastar as forças que garantem a segurança social no país. Força para substituir a ordem natural, que perdeu o seu caminho.

 

O ilustre Professor Ataliba Nogueira, então político brasileiro e professor catedrático de Teoria Geral do Estado na Universidade de S. Paulo, em sua obra O Estado é Meio e não Fim, S. Paulo, Ed. Saraiva, 1955, 3ª ed., págs. 121 e segs., traz as seguintes observações ao tratar de tema tão intrincado:

 

«Deve o estado reconhecer, garantir e proteger os direitos naturais de todos os indivíduos: vida, liberdade, propriedade, etc… É o mesmo que dizer que a missão precípua e primária do estado consiste em fazer justiça a todos, pessoas individuais ou coletivas, que vivem em seu território. Sem o reconhecimento e o respeito dos direitos, sem dar ele a cada um o que é seu, sem fazer justiça a todos, falha completamente o estado à sua finalidade e nem é possível realizar a sua tarefa positiva de prosperidade pública. Desnatura a sua missão e peca contra a verdade o estado que, sob pretexto de propiciar a felicidade geral, principia por violar os direitos naturais ou adquiridos dos cidadãos. Importa, em primeiro lugar, gozarem todos da paz e segurança dos direitos. (…)

«A ordem e a paz são indispensáveis para a prosperidade geral. A vida social é um tecido de interesses particulares, que não raro entram em conflito, interesses que, soltos à mercê das vicissitudes da cobiça, hão de vagar danosos a serviço de todas as paixões, gerando, assim, a desordem, a insegurança, a miséria, o tripúdio do direito. (…)

«Não se satisfaz esta missão de ordem e de paz com a sua manutenção interna, dentro das lindas do seu território. A tutela do direito, a segurança dele e da liberdade, podendo ser conturbada ou aniquilada por inimigos exteriores, levam o estado a estender a sua missão tutelar também pelos âmbitos deste outro campo. (…)

«É impossível estarmos de acordo com doutrinas que obrigam o estado a assistir de braços cruzados ao empobrecimento geral, ao perecimento de muitos pela fome, esquecido dos seus deveres, assim friamente reduzido a mero espectador das últimas conseqüências das leis econômicas, sempre avessas a toda benignidade.

«O princípio fundamental da política econômica é o de entregar a economia às mãos dos indivíduos, isolados ou em grupos; mas, neste como em outros domínios, importa o estado manter a ordem, introduzir a harmonia, auxiliar e suprir as deficiências particulares, pois nisto consiste a sua tarefa de realizador da prosperidade pública. (…)

«O essencial é não esquecer que a prosperidade econômica não pode ofender a justiça social. Daí não poder o estado também cruzar os braços, indiferente a toda injustiça. Por outro lado, incumbe-lhe tarefa positiva na prosperidade pública, o que o leva a intervir no econômico quando seja preciso e muitas vezes esta sua intervenção constitui estrito dever. O Individualismo gera o estatismo.»

 

Desses ensinamentos retira-se a idéia de que a intervenção no Haiti pela ordem mundial através da ONU afigura-se indispensável, a fim de se garantir o mínimo, que é a sobrevivência daquele povo, plataforma sobre a qual poder-se-á criar meios de se garantir a fruição econômica e o desenvolvimento social com dignidade.

 

Necessário, de qualquer maneira, que se permita sair logo do estado de subsistência natural abaixo da linha da pobreza, para o de desfrute de dignidade humana, o que se consegue, em primeiro lugar, afastando da região todas as atividades expoliativas, e a ingerência dos organismos se dizentes credores dessa miséria, verdadeiros «gafanhotos», seguindo-se com implantação de uma política econômica, constitucional e juridicamente reconhecida.

 

 

* Eulâmpio Rodrigues Filho, Professor e Doutor Titulado do Institut de Documentation et d’ Estudes Européennnes, da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e do Instituto de Direito Processual – B. Horizonte

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Eulâmpio Rodrigues. Intervenção da ONU no Haiti. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/intervencao-da-onu-no-haiti/ Acesso em: 18 abr. 2024