Direito do Consumidor

O que é chargeback?

Em interessante editorial publicado em seu site no dia 17/01/2012 ( http://pablostolze.ning.com/), o professor Pablo Stolze Gagliano nos convida a refletir sobre uma prática que vem se tornando bastante comum nessa era digital que vivemos. Trata-se do chargeback, considerado por muitos empresários um dos atuais vilões do e-commerce, ou, em bom português, comércio eletrônico.

Estudando o tema, extraí algumas conclusões envolvendo o conceito de chargeback, sua diferença em relação ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, as respectivas sanções, e o sistema de responsabilidade civil a ser observado em cada caso.

   

Atualmente, são inúmeras as opções de contratação fora do estabelecimento comercial (internet, telefone, reembolso postal etc.), sendo que, muitos empresários sequer possuem pontos físicos onde exercem a empresa, preferindo a comodidade do ambiente virtual e, principalmente, a agilidade das transações envolvendo cartões de crédito/débito.

De fato, o comércio virtual trouxe conforto e comodidade a empresários e, principalmente, aos consumidores. Por outro lado sérias fraudes vêm ocorrendo em razão dessa prática, dadas as fragilidades que caracterizam a contratação à distância, especialmente no ambiente da internet.

Mas, afinal, o que é chargeback? Por quê essa prática é considerada uma das vilãs do comércio eletrônico?

Resumidamente, o chargeback pode ser definido comoo cancelamento de uma venda feita através de cartões de crédito ou débito, em decorrência do não reconhecimento da compra por parte do titular do cartão, ou caso a transação não obedeça às regulamentações previstas nos contratos, termos, aditivos e manuais editados pelas administradora.

Há quem confunda o chargeback com o direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, isto é, aquele em que o consumidor desiste de uma contratação, obtendo a devolução do valor pago ao fornecedor, monetariamente corrigido. Entretanto, essas situações não se confundem, e guardam diferenças sensíveis.

De comum, o chargeback e o direito de arrependimento só possuem uma característica: a devolução, ao consumidor, de valores por ele despendidos. A semelhança pára por aí.

Percebe-se que o chargeback não se confunde com o direito de arrependimento, pois, nesse caso, o consumidor não está obrigado a declinar o motivo do cancelamento do negócio, ao passo que, no chargeback, existe uma causa (ou causas) específica que o justifica. Deve haver, então, relevante razão de direito para que seja legítimo, pois, do contrário, poderá resultar em abuso de direito por parte do consumidor ou da própria administradora de cartões de crédito.

Por sua vez, o direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC é um direito potestativo, exercido livremente pelo consumidor, dentro do chamado prazo de reflexão, em que o consumidor tem sete dias para desistir do contrato, contados de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, e ao qual o fornecedor estará obrigatoriamente sujeito, independentemente da ocorrência de alguma causa. Nesse caso, não é necessária a ocorrência de qualquer evento, bastando a vontade de não mais prosseguir com o negócio. Sendo assim, a razão de existência das normas é diversa.

Por parte do consumidor, pode ocorrer chargeback quando terceiro se apoderar do número e da senha de seu cartão (fraude, furto ou roubo do cartão etc.), e então passar a realizar compras em nome daquele. Como não foi o titular do cartão quem realizou a transação, poderá, legitimamente, contestá-la, devendo obter o ressarcimento do que lhe for eventualmente cobrado, inclusive valendo-se da regra do parágrafo único do art. 42 do CDC, que lhe confere o direito à repetição do indébito, “por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”.

Deve-se atentar para a parte final do dispositivo, pois, o fornecedor desavisado poderá alegar que houve engano justificável na venda ou até mesmo que agiu com boa-fé, uma vez que confiou que portador do cartão era de fato seu titular.

Ledo engano.

Tendo o CDC desenvolvido o sistema de responsabilidade civil objetiva com base na teoria do risco do empreendimento, o fornecedor deverá arcar com eventuais prejuízos causados ao consumidor, pois, aventurando-se a adotar um sistema de vendas mais informal, estará sujeito ao risco de negociar com uma pessoa que não é efetivamente a titular do cartão de crédito. Lembrando o personagem Severino, incorporado pelo brilhante ator Paulo Silvino, nas vendas à distância é praticamente impossível realizar o “cara–crachá”, fazendo com que o fornecedor de produtos e serviços deva suportar os riscos nessa modalidade de negócio e, portanto, o dever de indenizar.

De seu turno, a ratio do direito de arrependimento, ou seja, da norma etiquetada no art. 49 do CDC, é a vulnerabilidade do consumidor, evidenciada pela ausência de contato direto com o produto ou serviço que irá adquirir ou contratar. Fora do estabelecimento comercial, o consumidor não exerce contato físico com o produto; não tem condições de verificar se a cor corresponde à desejada, se o tamanho do produto é de fato o esperado etc. Por outro lado, examinando pessoalmente o produto, reúne condições de verificar se este realmente corresponde à suas expectativas, pode testá-lo no local da aquisição, consultar outros consumidores que adquiriram o mesmo produto, obtendo opiniões etc., e assim tem mais chances de consumir refletidamente, conscientemente, firme na ideia de que está contratando o que quer e como quer.

Lado outro, se contrata à distância, correrá o risco de o objeto do negócio não corresponder ao que espera, tendo e vista as diversas técnicas de “maquiagem” do produto para torná-lo mais atraente (vide hambúrgueres de redes de fast food), publicidades com apelo emocional, mostrando famílias sorridentes, felizes, de vida aparentemente perfeita, como ocorre com publicidade de planos de saúde, seguros, contratos de time sharing etc.

Esta é, portanto, a razão de ser do direito de arrependimento, a ser exercido no prazo de reflexão: leva-se em conta o aumento da vulnerabilidade do consumidor, em razão da ausência de contato direto com o objeto do negócio.

REPETIÇÃO DE INDÉBITO X RESPONSABILIDADE CIVIL POR CHARGEBACK

Passando ao campo da responsabilidade por chargeback, verificada a ocorrência de fraude, o consumidor, tendo sido cobrado ou tendo quitado o que não devia, terá direito à repetição do indébito, nos exatos termos do parágrafo único do art. 42 do CDC. A natureza jurídica dessa medida, como aponta a melhor doutrina, é de caráter sancionatório, isto é, é uma sanção aplicada ao fornecedor que age canhestramente, cobrando o consumidor pelo que ele não deve ou cobrando em excesso, isto é, mais do que ele efetivamente deve. Portanto, é medida de caráter pedagógico, imposta ao fornecedor com o escopo de educá-lo para que não volte a atuar da mesma forma.

No caso de má-fé do próprio consumidor, isto é, naqueles casos em que este comunica falsamente uma fraude, diz não reconhecer uma compra que ele mesmo efetuou etc., e em decorrência disso tem os valores indevidamente estornados para o seu cartão, certamente poderá ser punido, inclusive criminalmente, a depender do caso. Na órbita civil, deverá ser condenado a ressarcir o fornecedor lesado por sua prática, sendo que, nesse caso, a medida tem caráter indenizatório, e não sancionatório, já que visa restituir ao lesado o status quo ante, indenizando-o verdadeiramente.

Passo à análise de interessantes questionamentos articulados pelo professor Pablo Stolze Gagliano em seu editorial. O eminente civilista indaga:

Em caso de cancelamento da compra, pelo não reconhecimento do consumidor, seria juridicamente possível a repartição dos riscos e dos prejuízos entre o lojista e administradora de cartões de crédito ou débito, em virtude da própria atividade lucrativa que exercem no mercado de venda de produtos a distância? Afigurar-se-ia, em tese, viável que o lojista não arcasse sozinho com o risco e o ônus do chargeback? A administradora de cartões poderia ser considerada co-responsável pela venda frustrada? (http://pablostolze.ning.com/)   

Para responder a estas indagações, antes é necessário identificar as relações envolvidas em um contrato de cartão de crédito. André Luiz Santa Cruz Ramos nos explica o que é um contrato de cartão de crédito, bem como as relações que o cercam:

Trata-se de contato por meio do qual uma instituição financeira, a operadora do cartão, permite aos seus clientes a compra de bens e serviços em estabelecimentos comerciais cadastrados, que receberão os valores das compras diretamente da operadora. Esta, por sua vez, cobra dos clientes, mensalmente, o valor de todas as suas compras realizadas num determinado período. Chama-se cartão de crédito, então, o documento por meio do qual o cliente realiza a compra, apresentando-o ao estabelecimento comercial cadastrado.

Do que foi exposto, pode-se então distinguir três relações jurídicas distintas numa operação com carta de crédito: (i) a da operadora com o seu cliente; (ii) a do cliente com o estabelecimento comercial; (iii)  do esabelecimento comercial com a operadora (Direito Empresarial Esquematizado. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011, p. 485).   

Analisando o articulado, é possível afirmar que arelação da operadora com o seu cliente, e a deste com o comerciante, são relações de consumo, portanto sujeitas às regras do CDC, e por isso submetem-se à regra de responsabilidade civil objetiva do sistema consumerista. Assim, perante o consumidor, tanto o comerciante quanto a administradora do cartão responderão, independentemente da existência de culpa por eventuais danos causados ao consumidor em razão de chargeback, pois ambos se enquadram no conceito de fornecedor (art. 3º do CDC).

Assim, respondendo à primeira indagação, é “juridicamente possível a repartição dos riscos e dos prejuízos entre o lojista e administradora de cartões de crédito ou débito, em virtude da própria atividade lucrativa que exercem no mercado de venda de produtos a distância”, uma vez que estaremos de vício na prestação do serviço, sujeito à regra do art. 19 do CDC (salvo comprovada má-fé do próprio consumidor, obviamente, o que caracteriza sua culpa exclusiva), “embora seja mais comum a verificação de um único fornecedor na cadeia de consumo, no caso o que prestou o serviço”, como nos informa Leonardo de Medeiros Garcia (Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011, p. 179).

Destarte, a responsabilidade por vício do serviço é solidária e objetiva, fundada na teoria do risco do empreendimento. Se o comerciante adere às vendas por meio de cartão de crédito, já sabendo que atualmente o volume de fraudes na utilização de cartões de crédito é grande, sujeitar-se-á aos riscos inerentes.

Isto posto, perante o consumidor, haverá repartição dos riscos, devendo tanto a operadora de cartões quanto o comerciante, responderem.

Passando ao segundo questionamento, observe-se que a relação entre o comerciante e a operadora de cartões é eminentemente empresarial, ou seja, uma relação entre iguais.

Num primeiro momento, é possível afirmar que, por estarem em pé de igualdade, o comerciante e a operadora de cartão de crédito gozam de plena liberdade de contratar (faculdade de realizar ou não o negócio) e de liberdade contratual (relacionada ao conteúdo da avença), em homenagem ao princípio da autonomia da vontade.

Assim, por serem, em tese, iguais, e embora o contrato firmado entre comerciante e operadora de cartão de crédito seja de adesão, não se vislumbra a vulnerabilidade que caracteriza o consumidor. Como informa o comercialista acima citado, “no âmbito do direito empresarial, o norte interpretativo deve ser sempre, na nossa modesta opinião, a autonomia da vontade das partes. Caso contrário, o que se instaura é a insegurança jurídica, que se manifesta especificamente nas atividades econômicas como um obstáculo ao desenvolvimento” (Op. cit., pág. 435).  

Destarte, nesse primeiro momento, sendo de adesão o contrato empresarial, embora presente, em tese, a autonomia da vontade, dificilmente o comerciante conseguirá discutir os termos envolvendo os riscos de chargeback. Sabe-se que contratos dessa natureza são leoninos, por praticamente só conferir vantagens às operadoras de cartão, e ônus aos comerciantes; por isso, penso que o correto seria o compartilhamento de riscos entre esses dois sujeitos. Contudo, dificilmente isso ocorrerá. Certamente, as operadores de cartão de crédito não passarão a assumir um risco que as tirará da zona de conforto em que se encontram, a não ser que os comerciantes deixem de adotar essa modalidade de pagamento, o que, talvez, faria com que as operadoras de cartão repensassem seu modelo de compartilhamento de riscos.

Contudo, tal atitude por parte dos comerciantes pode significar o insucesso do empreendimento, já que o volume de contratações por meio de cartão de crédito é bastante grande. O mais interessante é que, da mesma forma, igual insucesso poderá experimentar, já que o volume de fraudes também é considerável, podendo levar ao fechamento do negócio. É, portanto, uma “faca de dois gumes” para o comerciante.

Concluindo, possíveis soluções para a diminuição do chargeback são apontadas por especialistas em e-commerce. Uma delas seria o uso de intermediários de pagamento como os conhecidos Pagseguro (UOL), Pagamento Digital, Mercadopago (Mercado Livre), pois, nesse caso, a venda seria garantida. Todavia, essa medida importa em aumento de custos, que serão repassados ao consumidor pelo comerciante. Outra alternativa seria a contratação de uma empresa especializada em análise de risco, atitude adotada por grandes empresas atualmente.

O tema não se esgota aqui. É um assunto novo, atual, complexo e instigante. Como afirmado pelo professor PABLO STOLZE no editorial citado neste texto, “ainda não temos repostas consolidadas na jurisprudência. Mas o tema, em respeito aos próprios empresários e aos consumidores, merece ser trazido à luz dos debates acadêmicos”.

     

Como citar e referenciar este artigo:
GUGLINSKI, Vitor Vilela. O que é chargeback?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2013. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-consumidor/o-que-e-chargeback/ Acesso em: 28 mar. 2024