Direito Constitucional

Contra o conceito de “propriedade relativa”

Contra o conceito de “propriedade relativa”

 

Mario Guerreiro

 

Estando fora de questão os conceitos de números relativos e de relatividade (geral e restrita) de Albert Einstein, somos contra esta praga do “relativismo” que está infectando o assim chamado mundo “pós-moderno”. E se isto é ser um conservador e um absolutista, então os somos ambos de bom grado por amor à razão e à sensatez.

 

Não bastassem os relativismos de cunho espistemológico, antropológico e moral, deparamos ainda com um relativismo de cunho jurídico, envolvendo, entre outros, o basilar conceito de  propriedade. E dizemos isto, porque um ilustre ex-titular da Faculdade de Direito da USP escreveu um artigo, “A propriedade ou a vida” (Folha de São Paulo 7/6/2008) em que ele apresenta uma relativização do conceito de propriedade com a qual não conseguimos concordar por mais que nos esforcemos.

 

 No referido artigo, Fábio Konder Comparato começa com uma breve alusão ao discurso de investidura do Ministro Gilmar Mendes como Presidente do STF. Segundo pensamos, brilhante e oportuno discurso, caso levemos a sério o difícil momento que atravessam o estado de direito e as instituições em geral neste país com seus governantes e indivíduos pensantes dançando, alegre e descontraídamente, à beira do abismo.

 

Diz o referido professor que o Ministro “decidiu brandir sua espada contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra” , ato este qualificado por ele, Comparato – não sem uma pitada de sarcasmo – como uma “grande honra para o MST”. Ora, só se estiver em jogo aquele conhecido lugar-comum dos festivos e deslumbradas colunáveis da mídia: “Falem mal, mas falem de mim”.

 

Comparato disse que isso lhe deu ensejo a uma reflexão sobre o direito de propriedade que, segundo suas próprias palavras: “constitui um dos pilares da chamada civilização moderna”. Quanto a isto, estamos de pleno acordo, a menos que se tenha em mente uma “relativização” do aludido direito capaz de abalar seriamente seus alicerces e/ou propiciar a emergência de um anarquismo sindicalista  ou socialismo totalitário, o que no fundo conduz ao  mesmo resultado, só que alcançado por meios diferentes.

 

Dito isso, o autor fez um breve apanhado histórico do direito de propriedade – bastante instrutivo e assaz apropriado, caso não gerasse demasiadamente longa digressão – culminando no Código Civil francês, também conhecido como Código Napoleão (1804) tido por Comparato,  assim como por Karl Heinrich Marx e Vladimir Ílitch Uliánov, como “a Magna Carta da burguesia”. Deste mesmo Código, ele extraiu uma célebre definição: “A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto que não se faça dela um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”.

 

Apesar de não nutrirmos nenhuma simpatia pela frivolidade e pelo esquerdismo típicos da cultura parisiense e menos ainda pela figura histórica autoritária e ditatorial do corso Nebulion Buonaparte, concordamos ipsis litteris com a supracitada definição. No entanto, Comparato fez uma veemente objeção à frase “dispor das coisas da maneira mais absoluta”, não levando em consideração a clara e inequívoca ressalva que se segue à mesma encabeçada por um “contanto que…”.

 

Talvez por inspiração proveniente da expressão “absolutismo” em referência a um regime político típico do sec.XVI, Comparato entende que a referida frase condensa em seu bojo toda uma concepção jurídica: o absolutismo da propriedade contra a qual “levantou-se o movimento socialista, de todos os matizes”.

 

Bem, ao menos no que concerne ao mais radical desses movimentos – hoje, entre nós, reencarnado pelo MST e abençoado por Comparato – não podemos dizer que ele foi realmente contra o “absolutismo da propriedade”: foi, isto sim, a favor do o absolutismo do proprietário, uma vez que a propriedade – mais especificamente a dos meios de produção – foi expropriada das mãos de proprietários privados e colocada nas mãos de um só dono: o Estado, “o monstro mais frio de todos os monstros frios”, segundo um autor com quem rarissimamente concordamos: Friedrich Nietzsche.

 

[Façamos, no entanto, uma breve ressalva, para que não sejamos tomados como anarquistas: Esse horripilante Leviatã é um mal necessário. Na sua origem, concebido para nos proteger uns dos outros; mas hoje, mais do que nunca, exigindo que nos protejamos dele em seu abuso de poder].

 

Referindo-se ainda ao “socialismo de todos os matizes”, Comparato diz que ele “pregou a abolição desse direito [o direito absolutista de propriedade], como medida de estrita justiça”, pois  “nada mais justifica manter essa dicotomia anacrônica: propriedade absoluta ou ausência de propriedade.” Embora ele admita que “a propriedade ainda hoje deve reconhecida como direito fundamental”, faz a ressalva de que só deve ser assim considerada “quando necessária à manutenção de uma vida individual ou familiar  dignas”.

 

Pensando desse modo como Comparato pensa, seu pensamento parece não estar muito longe da retrógrada e pueril concepção econômica dos bispos da CNBB, que pregam a formação de pequenas propriedades produzindo banana, côco e aipim e recorrendo ao sistema de escambo entre seus membros. Ou, talvez mais próximo do sofisma barato  de João Pedro Stédile formulado quando da invasão da fazenda da Aracruz Celulose [RS] e destruição uma estufa de mudas de árvores:

 

“Só se deve plantar o que se come. Não se come eucalipto. Logo: não se deve plantar eucalipto.” [obs. Se a primeira premissa fosse verdadeira, teríamos que aceitar  a conclusão, mas como ela é falsa…]. Corolário praxiológico inevitável da falsa conclusão: “Destruamos, pois, a plantação!” Ora, não costumamos comer também algodão e borracha, logo: acabemos com os algodoeiros e seringueiras, ainda que isto venha a produzir escassez nos mercados de roupas de malha e de pneus!

 

Voltando à definição do Código Civil francês, o suposto “absolutismo da propriedade” – na realidade, um desses horrorosos chavões esquerdistas –  é devidamente minimizado pela ressalva feita logo em seguida, a saber: “contanto que não se faça dela um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”. Ora bolas, que outras restrições poderiam ser feitas à fruição do referido direito, além das previstas em normas legais e regulamentos não-incompatíveis com estas mesmas???

 

Não somos formados em Direito, porém em Filosofia, mas sempre ouvimos falar – e cremos que, se não juridicamente correto, está em consonância com a voz da sensatez – que “Ninguém deve ser obrigado a fazer o que a lei não obriga”, e de que “O que não é expressamente proibido por lei, legalmente permitido é”. Segue-se que está claro como um dia de verão que essa concepção do “absolutismo da propriedade” não pode estar veiculando uma questão de legalidade, mas sim de legitimidade da supracitada definição.

 

Questões relativas à legitimidade de qualquer norma e/ou princípio legal são questões extrajurídicas: não podem ser adequadamente encaminhadas no âmbito jurídico, mas sim nos âmbitos da Ética, da Sociologia, da Filosofia Política, etc. Nestes domínios, porém, é difícil imaginar que restrições e de que natureza se poderiam fazer à irrestrita fruição da propriedade privada, além daquelas previstas em lei?

 

Certo estamos de que toda essa cansativa celeuma poderia ter sido evitada, se nossos sábios constituintes – num laivo de raríssima felicidade  – não tivessem inserido o inciso XXIII no Artigo 5.o da Constituição de 1988, que diz que “a propriedade deve atender à sua função social”. Mas o que é essa “função social” que o texto constitucional não define, deixando que isto seja feito por uma legislação ordinária que nunca é feita ou pela interpretação de um magistrado nem sempre movida pela sensatez?!

 

Ora, desde o momento em que a propriedade – seja minifúndio e/ou latifúndio – é produtiva, fornece empregos e paga tributos, não está ela atendendo à sua função social e concorrendo para o aumento da riqueza nacional? Que mais se poderia esperar? Que seus proprietários distribuíssem terras, sementes, arados, etc. aos que não têm? Um espírito ingenuamente generoso poderia até esperar que eles fizessem isso – e caso o fizessem, ninguém poderia endereçar qualquer reprovação ao seu gesto de despreendimento – mas também ninguém poderia obrigá-los mediante nenhuma obrigação jurídica nem ética. A autêntica generosidade sempre implica espontaneidade.

 

O pior é que o artigo de Comparato não se restringiu ao âmbito puramente acadêmico em que um indivíduo goza do direito de expressão extensível até mesmo às mais ensandecidas idéias esquerdistas. Ele não só abençoou as ações dos sem-terra como também desprezou os grandes proprietários de terra,  esquecendo-se de que a agroindústria destes últimos tem sido a grande responsável por muitos anos de crescentes superávits em nossa balança comercial. Ou será que ele é contra o progresso na mesma medida em que se mostra contra a ordem???

 

 Deixemo-lo dizê-lo em suas próprias e inequívocas palavras: “Por todas essas razões, bendito seja o MST [o grifo é nosso], que continua a suscitar um salutar desassossego [o grifo é nosso] no coração de nossos grandes proprietários agrícolas!”

 

A passagem é clara, claríssima como a mais cristalina água brotando direta da fonte e, como reza o sábio adágio jurídico romano In claris cessat interpretatio. Comparato considera um salutar desassossego as incontáveis formações de quadrilhas, invasões de propriedade, destruições de patrimônio público e privado cometidas por esses criminosos sob a pérfida máscara de camponeses socialmente injustiçados.

 

Com isto, não estaria por acaso o referido professor e jurista, na melhor das hipóteses, sendo leviano e irresponsável ao dar seu apoio a um grupo de marginais que coloca em sério risco a paz no campo, suscitando conflitos sociais de proporções imprevisíveis?! Ou, na pior das hipóteses, cometendo o delito de incentivo ao crime?! Dizendo o que diz e como o diz, ele não nos permite pensar de outro modo, a menos que queiramos recorrer ao brasileiríssimo expediente do “Não foi bem isto que ele queria dizer”. Fizéssemos, porém, tal coisa e teríamos de ser considerados analfabetos funcionais, ou seja: aqueles que lêem, mas não entendem patavina do que lêem.

 

A despeito do juízo inconsistente e açodado emitido por Comparato sobre o supramencionado discurso de investidura, tem toda a razão e foi oportuníssimo o Ministro Gilmar Mendes em sua grande preocupação com a preservação da ordem constituída e com o estado de direito, ambos gravemente ameaçados por uma insidiosa anomia crescente no País. Uma dessas graves ameaças tem sido certamente a representada pelos atos freqüentes de desrespeito à lei e à autoridade da  parte desses debochados sem-terras e de seu arrogante  líder: João Pedro Stédile.

Só nos perguntamos onde está e o que faz o Ministério Público, que ainda não enquadrou esses ousadíssimos marginais nos crimes continuados de formação de quadrilha, invasão de propriedade, bem como dilapidação de patrimônio público e privado!!!

 

Uma autêntica democracia é visceralmente incompatível com graves e acintosos desrespeitos à lei, bem como incentivos aos infratores associados a apologias dos meliantes, ao invés de rigorosas punições em estrita conformidade com as normas legais. Mas, reiteramos, onde está e o que faz o omisso Fiscal da Lei?

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. Contra o conceito de “propriedade relativa”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/contra-o-conceito-de-propriedade-relativa/ Acesso em: 20 abr. 2024