Direito Constitucional

Democracia: Os diferentes conceitos e principais impasses

Resumo: A evolução da democracia conheceu diferentes conceitos e muitos impasses, entre estes, o de superar as barreiras como a desigualdade e o pluralismo das ideologias reinantes no mundo.

Palavras-Chave: Democracia. Conceitos. Teorias da Democracia. Impasses. Crise da Democracia.

Abstract: The evolution of democracy has known different concepts and many impasses, including the one of overcoming barriers such as inequality and the pluralism of ideologies that prevail in the world.

Keywords: Democracy. Concepts. Democracy theories. Stalemates. Crisis of Democracy.

O papel do Estado e da política bem como sua forma de expressão dentro da sociedade capitalista, desde o século XIX é tema recorrente no debate de vários pensadores. Na seara do marxismo, as análises são tomadas como ponto crucial para as discussões acerca da natureza do Estado, perpassando pelo pensamento dos filósofos como Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci que aponta um movimento de conservação e/ou superação.

Apesar de que Marx não ter desenvolvido propriamente uma teoria sobre o Estado, suas obras contêm diversos conteúdos que nos possibilitam compreender as questões referentes à esfera estatal e a validade que ainda possuem no desvendamento do contexto contemporâneo.

Ao percorrer as teorias da democracia[1], passamos por aquelas que tanto enfatizam seu caráter competitivo, realismo e formal como também por outras que destacam o seu caráter deliberativo e participativo, e ainda, aquelas que consideram essencial enfocar seu caráter igualitário substantivo.

Procura-se demonstrar tanto as convergências comuns como também as contradições em seu viés normativo, evidenciando que as democracias contemporâneas respondem significativamente as questões presentes no Brasil.

Busca-se delimitar no mundo prático, os pressupostos teóricos da democracia e sua aceitação, independentemente do modelo de democracia adotado, o que justifica a produção de certos resultados políticos e sociais que, geralmente, se mostram insuficientes principalmente quando se vincula a democracia e a justiça social[2]. Nesse cenário, as atenções são dirigidas às políticas públicas.

A teoria da democracia competitiva ou procedimental também chamada de minimalista conforme fora concebida por Schumpeter e que tem sua origem relacionada ao pensamento de Max Weber sobre a institucionalização do Estado racional-burocrático dentro do contexto capitalista de produção.

Em resumo, Weber (1980) enfocou a instauração de instituições políticas, especialmente, o Parlamento, como meios de limitar a ação da burocracia estatal. E, assim, a preocupação weberiana refere-se às formas de contenção e controle das forças burocráticas, papel devotado ao Parlamento que tem posição institucional privilegiada.

As teorias democráticas refletem os múltiplos olhares sobre um fenômeno em mutação, bastando percorrer o percurso histórico e, que justificam opções por apresentar algumas tradições e questões da democracia no mundo globalizado.

Com o ressurgimento da democracia na modernidade, destacando as preocupações em estabelecer governos representativos que protegessem os direitos individuais dos cidadãos e, evitassem a concentração de poder e, ainda, a possibilidade de um governo tirano, assegurando o autogoverno e a soberania popular. Para os séculos XIX e XX apresentou-se a concepção teórica chamada de “elitismo democrático”[3] com os pensadores Robert Michels e Max Weber.

Há doutrinadores que apresentam o pluralismo competitivo, não como uma corrente teórica articulada, mas como preocupações e enfoques comuns em um grupo de pensadores como Robert Dahl, Stuart Mill[4] e Anthony Dows que eram a necessidade de preservar a democracia através da competição de interesses da sociedade sem suprimir as disputas, assegurando a expressão da pluralidade no sistema político.

Analisando a preocupação com a participação democrática, nas obras de Pateman, Macpherson, Barber e Souza Santos sinalizando o impacto de formulações deste campo nas experiências brasileiras, como o orçamento participativo.

A democracia deliberativa[5], desde suas bases fincadas no pensamento norte-americano dos séculos XIX e XX, com merecido destaque a influência da esfera pública, o agir comunicativo, destacando a centralidade que o debate público e sua institucionalização desempenham para este modelo.

A invenção e as reinvenções a democracia desde a Grécia Antiga, para investigar a organização política em sua dimensão institucional. Destaca-se as peculiaridades pouco conhecidas de grande contraste com a democracia como a conhecemos na contemporaneidade.

O tortuoso caminho das instituições políticas brasileiras chegando até a aspiração da democracia como ideal político, começa no Brasil Império, depois pela República velha, quando as estruturas tradicionais conviveram com um pensamento liberal, passando por experiências que tiveram como principal característica a ideia de uma modernização da sociedade brasileira só seria atingível através de vertical regime autoritária desde 1964, quando o uso da violência como solução para os conflitos e manutenção do regime chega em ponto crítico. Foram vários os elementos que acarretaram à falência do regime político e as aspirações democráticas de uma sociedade civil ainda desconfiada do Estado.

Somos um país de formação escravocrata, caracterizado por interregnos democráticos e pela persistente ideia de que o alcance de ideais políticos ou econômicos (modernização, desenvolvimento e independência) só seria possível se conduzido verticalmente, o Brasil só veio formar intelectuais que aspiram à democracia como ideal normativo em um período relativamente recente da história.

Contrastando com pensamento democrático posterior apresenta-se Oliveira Vianna (1991) considerado como expoente do pensamento conservador/autoritário brasileiro. Para o estudioso, a ausência de instituições civis, típicas de sociedades democráticas e, ainda, a presença de uma irracionalidade oriunda, segundo Vianna, da mestiçagem, tornam democracia não apenas impossível como mesmo indesejável, necessitando o país de um Estado autoritário para estruturação de sistema político eficiente.

As tradições democráticas pela vertente socialista[6] são apresentadas por Caio Prado Jr., e Florestan Fernandes, a nacional-desenvolvimentista, representada por Celso Furtado, a liberal-cívica, por Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faro.

A teoria da democracia elaborada por Schumpeter, Sartori, Bobbio e Dahl procura não se identificar com a teoria clássica liberal, superando-a em diversos aspectos. Não obstante, as características que compõe sua identidade são alicerçadas nos clássicos liberais tais como os federalistas e Tocqueville. Onde limita e restringe a democracia a um procedimento estrutural para formação de governos representativos e meramente formais da perspectiva político-social.

Questiona-se se a chamada social-democracia seria talvez a liberal-democracia? É reformista pois visa defender o Estado Liberal burguês através de medidas e estruturas de caráter menos excludentes de parcelas da população, porém, exibindo o mesmo verniz elitista da antiga teoria clássica.

Em um conceito instrumental e restritivo apoiado em aspectos políticos da democracia, Schumpeter, Dahl, Bobbio e Sartori destacam somente a necessidade de instrumentos jurídico-formais supostamente inerentes e suficientes para reconhecimento de certo regime político-social supostamente democrático, onde esses pensadores destacam e reiteram seu compromisso com esse tipo de arranjo político-instrumental superficial e limitado que é suficiente para operar uma sociedade democrática que tanto precisamos.

São peculiares a esse sistema democrático a garantia dos direitos de liberdade e a defesa do princípio da maioria referendando a formação de um dado governo eleito pelo sufrágio universal numa disputa eleitoral pluripartidária e concorrencial.

Percebe-se a simpatia comum desses pensadores por governos representativos, pois, os mesmos além de privilegiar esse tipo de democracia procedimental, pela mesma aparentemente defender os direitos individuais, refuta qualquer tipo de aproximação com a democracia direta, isto é, defendem uma democracia representativa e oligárquica, com a formação de elites políticas.

O regime político e sistema social-democrático preconizado pelos pensadores é um tipo de democracia hegemônica fomentada no século XX que está muito mais próximo de uma oligarquia ou formação de oligopólios em detrimento de uma democracia participativa.

A separação das esferas de participação, onde ocorrem a participação de classes populares situam-se fora da arena decisória política essa última exclusividade dos políticos profissionais oriundos das elites governamentais.

A democracia restringe-se a defesa de regras de jogo, em um processo eleitoral procedimental que é composto com a participação dos eleitores “cidadãos”, aqueles com direitos tutelados ou protegidos, servindo para legitimar a formação de um governo consentido por maioria eleitoral em que posteriormente ocorre a ruptura de qualquer mandato vinculatório imperativo entre representante e representado, respaldado por uma suposta necessidade de operacionalidade deste regime sociopolítico, governabilidade e eficiência tecnocratas em que os autores defendem a democratização do Estado gradualmente e, que erroneamente acarreta a democratização da sociedade.

Na obra, o “Futuro da Democracia”, de Norberto Bobbio tanto socialismo quanto comunismo ficam eliminados através dessa linha de raciocínio. Não existe, nem pode existir uma teoria jurídica do socialismo; somente democracia pode ser definida. Melhor ainda: somente democracia pode ser conceitualmente definida enquanto paradigma ideal, ao passo que socialismo somente pode ser descrito como uma prática que prática rudimentar.

No primeiro das duas obras (intituladas “Qual socialismo?” e “O futuro da democracia”) em meio a um período em que a luta de classes na Itália era particularmente intensa, Bobbio argumenta continuamente sem qualquer hesitação que socialismo é essencialmente uma prática não democrática.

Em seguida, no segundo livro, nos anos 80 quando a luta de classes se tornava menos acirrada, a discussão é um pouco mais cautelosa. Socialismo agora é admitido para servir de adjetivo qualificativo de democracia, como um prêmio pela incorporação de trabalhadores pelo Estado, enquanto cidadãos, e como realização do conto inócuo sobre ‘mais participação’ e ‘mais solidariedade’.

Bobbio acrescenta ainda que de qualquer modo, independentemente do que se entenda exatamente por socialismo, o mesmo não pode ser discutido senão em termos de desilusão, enquanto que democracia por mais compromissada que seja, pode ser discutida em termos do real, no sentido hegeliano.

Em suma, o status ideológico de socialismo e de democracia são radicalmente diferentes, e democracia possui mais dignidade ontológica que socialismo. Os dois livros em referência são inteiramente dedicados à demonstração desse ponto.

Convém contextualizar a atividade de Norberto Bobbio como político e filósofo de direito, pois, contrariamente ao que pretendeu Richard Bellamy nos prefácios às edições inglesas dessas obras de Bobbio que foi professor de Turim e nunca foi um socialista democrático, ou um democrata socialista. Simplesmente foi um filósofo neokantiano[7] com grande fé no liberalismo. Bobbio na perspectiva da teoria do Direito, era um formalista que enxerga em direito um arcabouço formal para a garantia da liberdade.

E, da perspectiva da teoria política, Bobbio é um individualista que enxerga na liberdade um atributo completamente inalienável do cidadão, e que, em oposição à sociedade tida como esfera abstrata, adquire sentido somente se entendida em termos de padrões de validade individual. Do ponto de vista ético e epistemológico, Bobbio revela-se ser pessimista, para quem a ciência é instrumento para garantir a eficiência de um governo realista, na crença de ser governado é provavelmente a única meta possível e passível de ser alcançada pela sociedade política.

No prefácio elaborado por Richard Bellamy[8] enfatizou a especificidade da situação em Turim após a primeira Guerra Mundial e os debates culturais e políticos que ali tiveram lugar. Relembra quem eram os mestres de Bobbio como Gioele Solair, Luigi Einaudi e Gaetano Mosca.

Também recordou ainda as grandes figuras políticas e democráticas que na ´época eram estudantes em Turim, assim como o próprio Bobbio viria a ser mais tarde: os irmãos Rosselli a quem, apesar de serem liberais, Mussolini assassinou em Paris; Gramsci[9] que morreu aprisionado em cárcere fascista e condenado por Stalin; Sobetti morto pelos golpes dos fascistas e a traição de seus companheiros liberais.

O que ele esquece de acrescentar, porém, é que entre os mestres de ciência política e os estudantes de política exista uma diferença maior do que poderia caber na posição antifascista compartilhada por todos, a saber, a diferença entre o liberalismo jurídico e o cinismo políticos dos primeiros e a participação ativa na luta de classes dos últimos.

Lembremos que Mosca construía uma teoria cínica e aristocrática de elites políticas. E, Gobetti rejeitava tal realismo e identificava em consciência de classe e produção do trabalho cooperativo a única fundação/base possível para uma sociedade democrática. Bobbio tem muito mais em comum com seus mestres filosóficos do que os próprios discípulos desses.

Em sua carreira científica, Bobbio partiu do formalismo fenomenológico de Max Scheler e seus seguidores de direito para chegar ao individualismo existencialista. Ele se torna assim o promotor italiano de v rias matizes do empirismo inglês, concluindo com o funcionalismo e a defesa pessimista de democracia.

É bem verdade que sua longa carreira acadêmica foi marcada por um diálogo contínuo com os líderes do movimento comunista italiano, de Togliatti e Amendola a Foa e Occhetto. Deve ser lembrado, porém, que tal exageração do comprometimento de Bobbio com democracia deve-se mais à defesa medíocre de comunismo por parte de seus interlocutores que à capacidade de Bobbio para transcender os limites do liberalismo.

Vejamos, o que tem esse professor neokantiano da liberdade para ensinar-nos? Nada, a não ser aquela história do pensamento político socialista e comunista já ensinada pelos neokantianos, na qual os movimentos reais da luta de classes são submetidos à crítica reguladora da razão burguesa, em um esforço para enfatizar o elemento progressivo, no sentido burguês e racional, por oposição ao elemento particular operário e proletário. Quando possível, a particularidade dos interesses da classe operária é relegada atrás da universalidade do direito burguês sempre que possível, ou então os interesses da classe operária são simplesmente rejeitados.

Bobbio é antes e acima de tudo um sacerdote dos valores constitutivos do Estado burguês, e toda a sua vida e ciência política foram meticulosamente dedicadas a essa tarefa, com precisão neokantiana e objetividade formalista. Basta lembrar que Bobbio sempre viveu em Turim, e, no entanto, em toda sua obra não há uma única menção que seja à classe operária de Turim, apesar do papel proeminente dessa última como protagonista da história italiana contemporânea.

Para Bobbio, no terreno da lei, o ‘mal menor’ (para cuja defesa é dirigida realisticamente toda sua filosofia) não é o Estado Democrático, mas o Estado tout court, na medida em que o mesmo é a fonte de todo direito. Não há qualquer interpretação dinâmica ou método analógico que pudesse livrar-nos da rigidez da forma. Não, somente formalismo pode garantir que os direitos serão protegidos. A relação de força, uma vez estabelecida, e institucionalizada enquanto lei, deve ser respeitada em sua validade formal. Toda inovação é também transgressão.

Nesse âmbito Bobbio é, sem dúvida, contrarevolucionário, ainda que não necessariamente reacionário — já que os dois conceitos não se superpõem em absoluto–, senão e antes, alguém com fetiche pela legalidade e horror a toda mudança. Afirmar que a posição de Bobbio com respeito à filosofia legal é ‘anticomunista’ é dizer pouco.

Outros anticomunistas conhecidos, tais como Arendt e Habermas trabalharam na direção de um projeto político e comunicativo mais otimista sem mostrar qualquer simpatia com positivismo jurídico. Bobbio, pelo contrário, é tão impregnado por esse último, que quando ele se aventura para fazer de sua própria esfera de interesses, acaba ‘flertando’ com o funcionalismo aberto de Niklas Luhmann[10].

Retornemos à acusação de que Bobbio é contrarevolucionário, que não é nem exagerada nem injusta. Pelo contrário, conservantismo científico é resultado direto de toda a evolução de seu pensamento. Sem dúvida, nos cursos universitários (em que era brilhante) Bobbio desenvolveu consistentemente, da mesma maneira que nos livros em questão, uma defesa do ‘domínio da lei’ contra o ‘domínio de homens’.

Com isso ele aparenta estar na grande tradição de republicanismo do tipo Spinoza ou Harrington. Não é esse o caso de Bobbio, no entanto, em cujos escritos republicanismo perde toda a sua espontaneidade e a lei fica desprovida de qualquer possibilidade de renovação popular. O “domínio da lei” sobre o ‘domínio de homens’ significa que o embasamento da estabilidade legal não acomodará as necessidades e as ações das massas. Mas legalidade se transforma não por obra e graça do poder de Estado, senão como expressão de soberania popular.

Na história do direito público contemporâneo duas escolas opõem-se em conflito direto. A primeira, de origem germânica, sempre considerou o Estado como a própria substância do direito. A outra, de origem Atlântica, estabeleceu uma relação dialética entre legalidade e soberania popular. Nos livros ora em referência Bobbio revela-se, em continuidade ao que sempre foi através dos longos anos de docência, um proponente do direito público alemão.

É paradoxal, no entanto a certo ponto somente, que se possa dizer isto da mesma pessoa que, mais que qualquer outra, tentou trazer a cultura filosófica e legal italiana mais próxima da escola Atlântica.

Para salvar o Estado e para manter um mínimo de democracia, Bobbio nos diz que, in litteris:

       “nós devemos, dada a falta de alternativa, defender as regras do jogo: democracia formal, apesar de suas falhas e contradições, ou seja, sua garantia do direito à liberdade, eleições periódicas através do sufrágio universal, governo de maioria, ou como quer que o mesmo seja interpretado de parte a parte”.

Todas as demais promessas a respeito da soberania popular[11], igualdade, transparência do poder, equidade etc, são simplesmente promessas excessivas e vãs que não poderiam ser cumpridas.

Em outras palavras, vamos ficar com essa democracia pelo que ela é, um mal menor. Portanto não podemos fazer mais do que um apelo a certos valores, tais como os ideais de tolerância e de fraternidade, aquela fraternidade que une todos os homens num destino comum, ainda mais compulsoriamente hoje, dada a ameaça das armas nucleares.”

Evidentemente, nós podemos nos valer do argumento ecológico contra as armas nucleares para enfatizar o consenso profundo a respeito do ‘contractum subjectionis’.

Enfim, e decididamente de uma perspectiva lógica, Bobbio teoriza seu argumento fundamental com relação à oposição entre democracia direta e democracia representativa. A primeira é a verdadeira bête noire do nosso doutrinador. Bobbio na verdade previne-nos de que democracia direta encoraja uma concepção do Estado que implica, por sua vez, em um projeto de construção prática da parte dos sujeitos políticos do Estado, e que se refere mais à forma do Estado que ao método de escolha da representação.

Com pedantismo extremo, Bobbio procura demonstrar que não somente democracia direta é apenas uma utopia irrealizável (especialmente em sociedades tão complexas quanto a nossa), mas também que na verdade esta é uma perigosa máquina de construção do totalitarismo ou, na melhor das hipóteses, um arcabouço para consenso através do plebiscito.

O que significava tal afirmação? O ‘crítico’ não para aqui. Não somente a democracia direta de Rousseau e dos jacobinos ficam submetidos à mais impiedosa crítica — este é impelido a ir ainda mais longe. Tanto consenso quanto participação revelam-se determinações altamente problemáticas no âmbito da democracia.

Os mesmos incluem as tais ‘promessas quebradas’ de Bobbio, quebradas, porque não puderam ser cumpridas desde o início. O que fazer, então? Mesmo aí, deveremos contentar-nos com o que é possível e realista. Assim, o princípio da frustração domina a ciência do direito público e constitucional.

E mais ainda: é a representação política, na forma de delegação, mais do que uma sólida fundação sem democracia, que entra como componente daquela ‘divisão social do trabalho’ que constitue o estofo da liberdade em nossas sociedades.

Como é óbvio, sem distorções hipócritas, esse chamado ‘pluralismo’ (em que lei: é divisão de trabalho) é indissoluvelmente unido à assim chamada ‘representação’ (a transformação do contrato de união em contrato de assujeição), engendrando assim o ‘mundo livre’.

Mas, Bobbio pergunta, preferiríamos o socialismo dos russos? Eu confesso estar um tanto enjoado ante a ‘sutileza’ de tais derivações. (In: NEGRI. Antonio. Resenha de Bobbio: “O futuro da democracia” e “Qual socialismo?” Tradição Csaba Deál. Do original: NEGRI, Tony (1989) Review of Bobbio: Future of democracy and Which socialismo? Capital & Class).

A obra “O futuro da democracia” coroa e resume o pensamento de Bobbio sobre o tema. Reúne aquele conjunto de textos nos quais ampliou o exame da democracia, reportando-se à análise de suas características fundamentais bem como à abordagem dos temais que ocupam tantos estudiosos, a exemplo do incremento da participação política. O essencial de sua mensagem resume-se, contudo, na crença na sobrevivência e nas vantagens da democracia. Não se trata, portanto de uma forma de profecia.

O doutrinador italiano partiu da tese de que a característica básica da democracia é o direito da maioria de influir na adoção daquelas regras que serão obrigatórias para todos. Pondera que os ideais humanos precisam ser constantemente avaliados, a fim de verificar em qual medida ainda têm algo a ver com o ideal originário.

No que tange à democracia, acha que deixou de atender a várias expectativas[12], o que denominou de promessas não cumpridas, aparecendo também obstáculos à sua efetivação. Descrevendo-os, antes mesmo de avançar a avaliação conclusiva.

Afirmou que não sobreviveu a concepção individualista de sociedade. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, ainda que a circunstância não elimine a diferença entre regimes autocráticos e regimes democráticos, a democracia real está longe de ser “o governo de todo o povo” na medida em que é exercido por uma elite. Há também o chamado poder invisível (menciona máfias, organizações secretas, e mesmo serviços secretos oficiais, ambas infensas a qualquer tipo de controle).

Sequer conseguiu educar plenamente o cidadão, sobrevivendo apatia política e o desinteresse pela coisa pública. O desenvolvimento da sociedade trouxe problemas que somente os especialistas podem resolver.

Constatou-se também crescimento contínuo dos aparelhos burocráticos[13]. Enfim, as liberdades e autonomia da sociedade civil elevou o nível das demandas sociais enquanto o aparelho político democrático age de forma lenta e gradual, pois a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil; a autocracia, ao revés, está em condições de tornar a demanda mais difícil e dispõe de maior facilidade para dar respostas.

Segue-se a avaliação, in litteris:

                   “Pois bem, a minha conclusão é que as promessas não cumpridas e os obstáculos não-previstos de que me ocupei não foram suficientes para “transformar” os regimes democráticos em regimes autocráticos. A diferença substancial entre uns e outros permaneceu.

O conteúdo mínimo[14] do Estado democrático não encolheu pois forçosamente abrange a garantia dos principais direitos de liberdade; existência de vários partidos em concorrência entre si; eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas … ou tomadas com base no princípio da maioria e, de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão e governo.

Existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis; existem diversos graus de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático e menos ainda com um totalitário”.

Quanto às ameaças externas à democracia, lembra que não se registram guerras entre estados democráticos. Antes de concluir, Bobbio considera ainda a suposição de que, sendo a democracia um conjunto de procedimentos, não dispõe de apelos capazes de fomentar o aparecimento de cidadãos ativos. Na verdade, entretanto, a democracia promoveu e promove ideais com que não contou a humanidade ao longo de sua história.

O primeiro deles é a tolerância e, o segundo, a não-violência. Afirma: “Jamais esqueci o ensinamento de Karl Popper segundo o qual o que distingue essencialmente um governo democrático de um não-democrático é que apenas no primeiro os cidadãos podem livrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue.” Assim, o adversário deixou de ser um inimigo (que deve ser eliminado), passando a dispor da possibilidade de chegar ao governo.

O terceiro ideal consiste na renovação gradual da sociedade através do debate das ideias. Explicita:

         “Apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos – que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos”.

Acabou acontecendo que o Welfare State entrou em crise[15] impulsionado pelo neoliberalismo em decorrência, entre outros, da crise fiscal e da desorganização da classe trabalhadora. O modelo liberal de Estado que emergiu, infelizmente, deu somente respostas retóricas aos problemas do Estado Social na sua tentativa de superá-lo.

O Estado voltou a adotar o papel de mercantilizador. Nesse contexto, criou-se a ilusão da existência de uma democracia sem conflitos (o que não é democracia). Dessa forma, problemas sociais (como de renda, gênero, ecológicos, refugiados, saúde, emprego etc.) acabaram agravando-se, acarretando o aumento da desigualdade. Nessa senda, convém, ainda que retoricamente, questionar: como efetivar a democracia num mundo desigual?

Hodiernamente, vive-se a crise do Estado liberal atrelada à crise da democracia. Assim, problematiza Monedero (2012, p. 82) que:

     “Em tempos de crise, a compatibilidade entre o capitalismo e a democracia retorna como uma pergunta. O financiamento da economia, a desregulamentação econômica e a capacidade de pressão de grandes empresas, são fatores que limitam a capacidade de gestão do Estado. Da mesma forma, a cartelização dos partidos políticos, a saturação audiovisual, o imaginário hegemônico consumista e a assunção pelas classes médias do “capitalismo popular”. O que enfraqueceu o compromisso com os valores democráticos sociais do pós-guerra.

Conclui-se, finalmente, o ideal de fraternidade: “grande parte da história humana é uma história de lutas fratricidas”. Na sua Filosofia da História, Hegel define a história como “um imenso matadouro”. Será que podemos desmenti-lo? E, prossegue: “Em nenhum país do mundo o método democrático pode perdurar sem tornar-se um costume”. (Vide a mensagem da obra intitulada “(A) Sociedade aberta e seus inimigos”, de Karl Popper[16].

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[1] Há a teoria da democracia competitiva, concorrencial ou procedimental e minimalista tal como preconizada por Joseph Schumpeter originou-se das colocações de Max Weber acerca da institucionalização do Estado racional-burocrático dentro do sistema capitalista de produção. Já para Weber, a democracia é modo de seleção e formação do corpo político na qual a participação política não é o elemento fundamental. A perspectiva formalista, minimalista e procedimental de democracia de Schumpeter influenciou e têm relevância na literatura especializada. A característica eleitoral e representativa ainda é uma das características fundamentais daqueles que objetivaram classificar sistemas ou regimes democráticos.

[2] Existe ainda certa confusão sobre o conceito de justiça social. Como conceito, a justiça social parte do princípio de que todos os indivíduos de uma sociedade têm direitos e deveres iguais em todos os aspectos da vida social. Isso quer dizer que todos os direitos básicos, como a saúde, educação, justiça, trabalho e manifestação cultural, devem ser garantidos a todos. Essa ideia parte do princípio de que não é possível falar em desenvolvimento de uma sociedade considerando apenas o crescimento econômico. Nesse sentido, a noção de justiça social está atrelada à construção do que é chamado de Estado de Bem-Estar Social, isto é, um tipo de organização política que prevê que o Estado de uma nação deve prover meios de garantir seguridade social a todos os indivíduos sob a sua tutela, o que significa que o acesso a direitos básicos e as ações de seguridade social devem ser estendidos a todos. A justiça social, entretanto, diferencia-se da ideia da justiça civil, isto é, a justiça dos tribunais e da imagem da estátua vendada. Enquanto a justiça civil busca a imparcialidade em seu julgamento, sempre partindo dos aparatos legais para justificar suas ações, a justiça social busca a remediação de desigualdades por meio da verificação das dificuldades particulares de cada grupo e da implementação de ações que venham remediar a situação.

[3] No entanto a ideia de incompatibilidade entre elites e democracia começou a ser refutada por uma nova geração de elitistas, os democráticos. Os principais autores do elitismo democrático são David Truman, William Kornhauser, Suzanne Keller e principalmente Robert Dahl e Joseph Schumpeter.

[4] Diretamente vinculada à defesa do que Mill chama verdadeira democracia, na qual todos os indivíduos e grupos encontram expressão política e não se basta naqueles que obtêm o controle majoritário do poder; a teoria não é, em momento algum, alicerçada em concepções jurídicas naturalistas, mas em condicionamentos mais amplos, de ordem moral e social. Além disso, não adota como estratégia de alargamento de sua extensão subjetiva e de proteção contra a dominação facciosa o que poderíamos denominar linguagem dos direitos. Centra-se, antes, na força ideacional do igualitarismo democrático e da soberania do povo como elemento transcendente e, assim, regulador, de

todos os demais poderes governamentais e sociais, buscando instituições políticas ao seu tipo ideal verdadeiro de democracia. Seu percurso, por isso mesmo, é direcionado ao espaço e às funções parlamentares. In: CORVAL, Paulo R. dos S. Democracia Representativa. Revisitando John Stuart Mill. Disponível em  https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/206/ril_v52_n206_p245.pdf Acesso em 24.01.2021.

[5] Uma das formas de exercício da Democracia Participativa é a chamada democracia deliberativa, para enfatizar os diferentes processos de participação pública na tomada de decisões, durante a fase de deliberação. Neste cenário da deliberação participativa, a sociedade civil organizada representa um papel central como interlocutores das autoridades públicas. A democracia deliberativa defende que o exercício da cidadania se estende para além da mera participação no processo eleitoral, exigindo uma participação mais direta dos indivíduos no domínio da esfera pública, em um processo contínuo de discussão e crítica reflexiva das normas e valores sociais. O conceito de esfera pública que veremos de modo mais detalhado adiante é um conceito chave para a democracia deliberativa. In: MEDEIROS, Alexsandro M. Democracia Deliberativa. Disponível em:  https://www.sabedoriapolitica.com.br/ciber-democracia/democracia-deliberativa/ Acesso em 25.1.2021.

[6] A social-democracia é uma corrente política surgida na Europa, na segunda metade do século XIX. Ligada em sua gênese ao marxismo, ela se metamorfoseou ao longo do tempo, firmando-se como uma concepção de centro-esquerda, no âmbito da democracia representativa, com uma perspectiva de Estado voltada para reduzir as iniquidades sociais sem abolir o capitalismo. Popularizou-se no século XX, no continente europeu, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial, quando a reconstrução dos países afetados pela guerra demandava uma participação mais ativa dos Estados. Também denominada de “socialismo democrático”, a social-democracia prioriza as reformas sociais para redistribuir renda por meio de acesso a serviços públicos gratuitos, tais como saúde, segurança, educação e previdência, bem como uma política econômica que contemple também as populações mais desassistidas. Defende também a propriedade privada e o sistema representativo. Vários países europeus têm arraigada tradição de partidos social-democratas, dentre os quais se destacam Alemanha, Suécia, França, Holanda e Espanha.

[7] O neokantismo ou neocriticismo é uma corrente filosófica desenvolvida principalmente na Alemanha, a partir de meados do século XIX até os anos 1920. Preconizou o retorno aos princípios de Immanuel Kant, opondo-se ao idealismo objetivo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, então predominante, e a todo tipo de metafísica, mas também se colocava contra o cientificismo positivista e sua visão absoluta da ciência. O neokantismo pretendia, portanto, recuperar a atividade filosófica como reflexão crítica acerca das condições que tornam válida a atividade cognitiva – principalmente a Ciência, mas também os demais campos do conhecimento – da Moral à Estética. As principais vertentes do neocriticismo alemão foram a Escola de Baden, que tendia a enfatizar a lógica e a ciência, e a Escola de Marburgo, que influenciaram boa parte da filosofia alemã posterior, particularmente o Historicismo e a Fenomenologia). Seus principais representantes são Hermann Cohen, o líder da Escola de Marburgo, Paul Natorp e Ernst Cassirer. Zurück zu Kant! (“Retorno a Kant !”) era a palavra de ordem dessa corrente de pensamento, que no entanto não pretendia um simples retorno mas o aprofundamento da filosofia kantiana, em duas linhas: em direção a uma racionalização da religião (Cohen, com referência ao judaísmo); em direção a uma teoria do conhecimento (Cassirer). O século XIX foi marcado pela hegemonia do hegelianismo. Após a morte de Hegel, a filosofia caiu em descrédito. A partir dos anos 1850 alguns pretendiam mesmo o seu desaparecimento, alegando que não oferecia respostas aos problemas sociais, históricos e políticos. O retorno a Kant parecia então o único modo possível de pensar a ciência e o lugar da razão. Assim, a maioria dos pensadores do fim do século XIX e do início do século XX é, em alguma medida, neokantiana. Michel Foucault, autor de uma tradução da Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant, em uma ocasião declarou “Somos todos neokantianos”. Os aspectos éticos do neokantismo frequentemente o levaram para a órbita do socialismo. Os neokantianos tiveram grande influência sobre o marxismo austríaco (Max Adler) e sobre a social-democracia alemã, através do revisionismo de Eduard Bernstein. A Escola Neokantiana teve uma influência duradoura e sua importância foi muito além da Alemanha. Ela cunhou termos como epistemologia e sustentou sua preponderância sobre a ontologia. Natorp teve decisiva influência na história da Fenomenologia e a ele é creditada, juntamente com Edmund Husserl a adoção do vocabulário do idealismo transcendental. O debate entre Cassirer e Martin Heidegger sobre a interpretação de Kant levou este último a formular as razões pelas quais Kant teria sido um precursor da fenomenologia – embora esta ideia seja contestada por Eugen Fink.

[8] A pesquisa de Richard sobre o pensamento político italiano foi reconhecida com a concessão da Medalha Serena pela Academia Britânica em 2012. Seu Constitucionalismo Político ganhou o Prêmio David e Elaine Spitz de 2009. Ele também tem sido uma figura importante no estudo normativo da União Europeia e dirigiu e participou em vários projetos de pesquisa da Leverhulme, ESRC e da Comissão Europeia nesta área. Seu artigo, em coautoria com Sandra Kröger, ‘Além de um dissenso constrangedor: O papel dos parlamentos nacionais em domesticar e normalizar a politização da integração europeia’ Política Europeia Comparada (2016) 14.2: 131-153 ganhou o PADEMIA 2016 Research Award (jornal categoria de artigo) para ‘Outstanding Research on Parliamentary Democracy in Europe’. A monografia mais recente de Richard é A Republican Europe of States: Cosmopolitanism, Intergovernmentalism and Democracy in the UE e foi publicada pela Cambridge University Press em 2019. Uma coleção de 20 artigos sobre este tópico escritos nos últimos 25 anos com Dario Castiglione também foi publicada em 2019 por Rowman e Littlefield, como From Maastricht to Brexit: Democracy, Constitutionalism and Citizenship in the UE. Ele está atualmente concluindo um livro sobre a Constituição Democrática para a Oxford University Press e desenvolvendo um estudo sobre Liderança Política provisoriamente intitulado The Democratic Prince. Ele é coeditor de The Cambridge Companion to Constitutional Theory com Jeff King e The Cambridge Dictionary of Political Thought com Terry Ball.

[9] Gramsci propõe uma nova estratégia que ainda não se conseguiu explicitar completamente, já que ele não recorre à noção de democracia direta, mas sugere um novo tipo de regime representativo. As questões contrapostas à teoria do elitismo são: como organizar-se na sociedade civil e reconstruir a história sem abrir brechas de cooptação? Ou como redimensionar o movimento das classes subalternas a cada momento em que ocorrer a absorção de seus dirigentes? São questões prementes e profundamente atuais, quando se constata que a estratégia do elitismo continua a formar as consciências e a desarticular os movimentos nascentes no processo de organização dos trabalhadores.

[10] A teoria de Luhmann, aplicada ao sistema penal, dá origem ao funcionalismo, estabelecendo determinadas tipologias estruturais que desempenham o papel de síntese na atividade especulativa. A norma jurídica pertence ao sistema penal. Luhmann expressa que a complexidade do mundo é resultante da quantidade de possibilidades que ocorrem no ambiente, cabe às estruturas sistêmicas reduzir esta complexidade excessiva e emitir as informações que devem prevalecer como exigência à manutenção da ordem e do próprio sistema. Ao realizar esta tarefa, as estruturas incumbidas de uma função específica acabam por sobrecarregar-se ou até mesmo por invadir o domínio de outras estruturas sistêmicas.

[11] O conceito de “soberania” foi teorizado pelo francês Jean Bodin (1530-1596) no seu livro intitulado Os Seis Livros da República, no qual sustentava a seguinte tese: a Monarquia francesa é de origem hereditária; o Rei não está sujeito a condições postas pelo povo; todo o poder do Estado pertence ao Rei e não pode ser partilhado com mais ninguém (clero, nobreza ou povo). Jean-Jacques Rousseau transfere o conceito de soberania da pessoa do governante para todo o povo, entendido como corpo político ou sociedade de cidadãos A soberania é inalienável e indivisível e deve ser exercida pela vontade geral, denominada por soberania popular. A partir do século XIX foi elaborado um conceito jurídico de soberania, segundo o qual esta não pertence a nenhuma autoridade particular, mas ao Estado enquanto pessoa jurídica. A noção jurídica de soberania orienta as relações entre Estados e enfatiza a necessidade de legitimação do poder político pela lei.

[12] Hodiernamente, em razão de um somatório de fatores interrelacionados e que se retroalimentam, como o neoliberalismo, a globalização, a simplificação das complexas diferenças sociais, a invisibilidade de grupos de pessoas, a crise dos partidos políticos, o terrorismo, a imigração, o déficit ambiental, a corrupção, entre outros, a democracia esvaziou-se enquanto forma de poder. E, talvez, os países em desenvolvimento (ou subdesenvolvidos) sejam os que mais sofram com a crise da democracia. Com a constitucionalização das democracias no século XX, a democracia tornou-se fundamento de legitimação popular de um Estado, bem como de limitação do exercício da política e norma jurídica orientadora de todas as suas ações e finalidades públicas, sendo, dessa maneira, considerada indispensável para a construção e consolidação de direitos e, também, para a formulação e execução de políticas públicas. Assim, o exercício da democracia passou a atrelar-se à efetividade da Constituição. Entretanto, este período, que deveria representar um reforço e, consequentemente, aumento da democracia pelo mundo, tem, pelo contrário, diante da complexidade da realidade social, demonstrado que ela está em crise.

[13] A democracia está despida de si mesma no mundo moderno. Os ideais perdem-se em meio à modernidade e nem massa, nem elite sabem onde agora se pretende chegar. Quais são os reais atributos do ser humano; se os homens possuem, invariavelmente, diferentes características e naturezas; ou qual a melhor forma de governo à qual os Estados devem se encaminhar, à parte as vertentes de pensamento apresentadas neste estudo, conclui-se que, em todos as sociedades humanas, sejam elas primitivas ou complexas, antigas ou modernas ,grandes ou pequenas, a ocorrência de um grupo menor, que domina, e de outro maior, que é dominado, é irrefutável.

[14] A concepção processual ou teoria das regras constitutivas da democracia é ponto central do pensamento de Norberto Bobbio que visou estabelecer uma definição mínima de democracia, como sendo a contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (sejam primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo está mesmo obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente.

[15] Há quem defenda o declínio – e não, portanto, a resiliência – da democracia no século XXI: “Arch Puddington advertiu em 2006 sobre o crescimento de um ‘impulso contra a democracia’, caracterizou 2007 e 2008 como anos de declínio democrático e afirmou que a erosão democrática ‘acelerou’ em 2009 e descreveu a democracia global como ‘sob coação’ em 2010.” Após um breve momento de otimismo durante a Primavera Árabe, a Casa Branca alertou sobre um ‘recuo democrático’ em 2012 e um ‘ressurgimento autoritário’ em 2013” (LEVITSKY; WAY, 2015, p. 45).

[16] A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de Karl Popper (1902-1994), foi publicada (1945) num momento em que o caráter totalitário do regime soviético ficara obscurecido em decorrência da aliança da União Soviética com o Ocidente, contra o nazismo. Logo adiante, na medida em que os russos logram impor o seu odioso sistema a sucessivos países no Leste europeu, a pertinência do alerta de Popper iria tornar-se evidente, assegurando o sucesso da obra e a sua sucessiva reedição. Com A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper notabilizou-se igualmente como pensador político. Sua proposta fundamental consiste em aplicar, à organização social, o mesmo método que desenvolveu em relação à ciência. Se o crescimento desta depende da derrota do dogmatismo, também a democracia não pode sobreviver à existência de verdades irrefutáveis. A sociedade aberta é uma conquista da civilização, corresponde ao sistema concebido e praticado pelo homem maduro, que recusa ser tratado como criança pelo Estado, aceita todas as suas responsabilidades – entre as quais inclui não apenas direitos mas também deveres –, reconhece a impossibilidade do paraíso terrestre e desdenha das utopias socialistas.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Democracia: Os diferentes conceitos e principais impasses. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/democracia-os-diferentes-conceitos-e-principais-impasses/ Acesso em: 29 mar. 2024