Direito Constitucional

Em um país chamado favela

Resumo: O significado da favela no contexto brasileiro e as políticas públicas relacionadas a tal fenômeno doravante denominado de comunidade.

Palavras-chave: Favela. Políticas Públicas. Favela-Bairro. Discriminação. Violência. Sociologia.

Dentro do contexto político e cultural brasileiro, a favela[1] é palavra importante e seu emprego inicialmente ocorreu no Rio de Janeiro, no começo do século XX, para descrever o bairro popular formado inicialmente no morro da Providência.

Em verdade, a favela enquanto vocábulo assumiu múltiplos sentidos e vetores, ao longo da história brasileira e de acordo com variações regionais e conjunturais.

Nem sempre é o nome do território onde moram pobres em uma cidade. Em Porto Alegre, há as vilas. Na própria cidade que inaugurou seu uso, há áreas refratárias à denominação, a despeito da similaridade com algumas outras às quais esta se aplica.

Nem sempre é o nome adotado pelos próprios habitantes e não está necessariamente comprometida com a referência à superfície inclinada dos morros.

No Rio de Janeiro, o termo preferido, em geral, nas derradeiras décadas, é comunidade. Já que por vezes a favela[2] e favelado equivalem às categorias de acusação, que estigmatizam a dimensão social da geografia e entendem preconceitos a toda uma população a ponto de moradores de favelas que se verem instados a falsificar endereços para evitar discriminação quando procuram emprego.

Há outras denominações como “aglomerações urbanas subnormais”, principalmente no discurso oficia, durante o século XX, favela foi sinônimo de problema que o poder público deveria antes remover que resolver.

Nas primeiras décadas do século XX, imersa na atmosfera emanada pelo ímpeto autoritário de reformas promovidas por Pereira Passos[3], favelas, assim como cabeças de porco e os casarios localizados no centro da cidade, sempre esteve associada à precariedade de condições higiênicas e sanitárias.

E, já indicava grandes focos de doenças contagiosas. Assim, sua extinção ou seu deslocamento, converteu-se em exigência de saúde pública e de melhoria urbanística.

A favela percebida como espaço da pobreza e da marginalidade acarretava ainda a depreciação do valor imobiliário de bairros prósperos, ou pelo menos, economicamente promissores para o futuro investimento.

Depois, tornou-se fonte do mal e perigo, resultando em grave ameaça aos bons costumes o que demandava por campanhas menos sanitárias e mais moralizadoras de parte de entidades religiosas e sociais que promoveram por longo tempo, e que mitigavam a miséria e a invisibilidade com caridade e filantropia.

As favelas conheceram a fundo a era de remoções para limpar a paisagem, modernizar, arejar, oxigenar e, de novo, higienizar[4] e valorizar o patrimônio depreciado pela vizinhança imprópria. Havendo incêndios criminosos, expulsões, intervenções brutais do Estado deixaram marcas profundas na memória da cidade.

Foi gradual e crescentemente, foram ocupadas as áreas disponíveis nos morros e nas regiões acessíveis, contíguas aos bairros nos quais havia empregos, na região metropolitana e, sobretudo, nos bairros afluentes da capital.

A linha de trem rumo à zona norte que deixou de ser o eixo da ocupação urbana, assim como a industrialização cedeu à hegemonia dos serviços e da informalidade.

Foi a decadência política do Rio de Janeiro que preparou o declínio econômico, empurrado para as adjacências da zona sul da cidade os aglomerados de trabalhadores pobres e suas famílias.

Os morros foram invadidos e, então, as favelas proliferaram. E, o poder público tratou apenas de extrair habilidosamente benefícios políticos, trocando a carta da remoção pelo compromisso com a fixação. E, passou a cogitar em urbanização de favelas e reconhecimento de direitos.

Não obstante ser relevante e grande a contribuição econômica, política e cultural[5] para a cidade, as favelas do Rio de Janeiro, são desde seu surgimento, na passagem para o século XX, percebidas como espaços indesejáveis. Seja por serem encaradas como problema eminentemente sanitário ou moral, por outro lado, aparecem constantemente na mídia como foco transmissor da violência e da criminalidade.

É a persistência na representação negativa das favelas e seus habitantes que nos remete a sua história como objeto de diferentes modalidades de controle, ora por parte do poder público, ora seja por parte de instituições sociais como Igreja Católica[6].

O contextual casamento de conveniência entre os pobres e as elites governantes, com a aposentadoria de ameaças veladas ou explícitas de remoção, a favela não escapou da veloz ciranda de (des)qualificações generalizantes[7]; desde os anos 1980, virou sinônimo de transgressão à lei e à ordem, espaço que requer incursões policiais, praça de guerra e “caverão” (carro blindado da polícia).

Em resumo, para as elites e para a classe médica branco, não raro, para os governantes, a favela foi e continua a ser, o lugar do “outro”.

Sendo a encarnação nefasta de alteridade diabólica, que caberia, enfim, destruir ou exorcizar, mas também, simultaneamente, redentora, iluminada, cujo destino histórico consagraria a libertação do país, instaurando a igualdade e justiça.

A narrativa sobre as favelas[8] não pode omitir o pendular movimento, continuamente acalentado no imaginário carioca, senão brasileiro, sincopado pela oscilação entre dois polos, a saber: que são idealizações simétricas e inversas.

Criaram-se duas expectativas opostas, cultural e politicamente poderosas: de um lado, o povo da favela vai descer para salvar o Brasil e promover a revolução desejada – supunha-se, sonhava-se ou temia-se. Ou, por outro lado: a favela vai descer para o asfalto e tocar o terror.

Nossa figura sombria da paranoia coletiva, talvez mais do que em outro lugar, o racismo instilou seu veneno repulsivo e letal.

Entre as políticas públicas cabe destacar a transformação da favela em bairro que pode conferir diferentes leituras ao termo “favela”. Transformado no programa Morar Carioca em 2010, pelo então prefeito Eduardo Paes, o Favela-Bairro foi retomado em 2017 sendo considerado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento como um projeto-modelo de políticas públicas no combate à pobreza e à miséria.

No dia 17 de abril de 2017, o então secretário municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Obras, Índio da Costa, afirmou ao jornalista Edimilson Ávila, do RJTV, que a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro pretendia retomar o Favela-Bairro. Apesar de já ter o aval do prefeito Marcelo Crivella.

Até 2019, o Favela-Bairro, que contou com investimentos de R$ 300 milhões beneficiando 16 comunidades e cerca de 40 mil famílias. Segundo a prefeitura, serão gerados, aproximadamente, três mil empregos diretos e indiretos. Após as obras de urbanização, os imóveis das comunidades contempladas serão legalizados, ou seja, serão concedidos títulos de propriedade aos moradores.

Em 2018, uma das colaboradoras do jornal comunitário “Voz das Comunidades” (cidade do Rio), Melissa Canabrava, criticou os veículos de mídia do Brasil por só mostrarem a violência das favelas. Melissa Canabrava também criticou a cobertura da imprensa tradicional, na ocupação do Complexo do Alemão, em 2010.

Em dezembro de 2019, equipes de reportagens, com ajuda de moradores das favelas iniciaram uma pesquisa de nível nacional para mostrar como vivem os moradores dentro dessas localidades. Os resultados foram reportados no Fantástico, da Rede Globo, e em formato de podcast, no G1.

A pandemia do coronavírus avançou particularmente sobre as favelas cariocas que já concentram ao menos oitenta e um mortes e quatrocentos e vinte e dois casos confirmados da virosa. Segundo os dados da Prefeitura do Rio de Janeiro os dados apontam que a doença causada pela virosa aumentou dez vezes em um mês. O total de morte já ultrapassa Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense em terceiro lugar no ranking do Estado, com sessenta casos.

Segundo estudos paralelos coletados pelas unidades de saúde da Rocinha e do Complexo da Maré indicam que os óbitos podem atingir a 74, mais do que o triplo em comparação aos 24 registros oficias nessas áreas.

Os especialistas ainda apontam um outro mais grave problema que é subnotificação, o que torna a proliferação mais célere do vírus e, agravado ainda mais em áreas de maior circulação de pessoas em espaço reduzidos.

Eis que na favela a transmissão comunitária está fora de controle sobretudo nas camadas menos favorecidas da sociedade carioca, é o que analisa a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz.

As mortes nas favelas cariocas superam a maior parte dos municípios da Grande Rio, como Niterói e São Gonçalo. Durante a epidemia, morreram mais pessoas nas comunidades do que em Nova Iguaçu, cidade com mais de 820 mil moradores.

Com 60 mortes até sexta-feira (8), segundo o governo do RJ, Nova Iguaçu é o 3º município com mais mortes por covid-19, atrás apenas da capital fluminense (1.002) e de Duque de Caxias (96). – (In: BARRETO FILHO, Herculano. Covid: mortes avançam em favelas e superam a terceira cidade com mais óbitos no RJ Disponível em:  https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/10/coronavirus-mortes-em-favelas-do-rio-aumentam-oito-vezes-em-um-mes.htm?cmpid=copiaecola Acesso em 31.05.2020.

Tal situação demanda que os governantes efetivem política pública eficaz para o combate ao Covid-19 no ambiente que representa a favela por suas características e necessidades.

Referências:

BARRETO FILHO, Herculano. Covid: mortes avançam em favelas e superam a terceira cidade com mais óbitos no RJ Disponível em:  https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/10/coronavirus-mortes-em-favelas-do-rio-aumentam-oito-vezes-em-um-mes.htm?cmpid=copiaecola Acesso em 31.05.2020.

CARDOSO, Adalberto. Metamorfoses da pobreza. Disponível em:  https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002006000200014 Acesso em 30.5.2020.

FREIRE, Letícia de Luna. Favela, bairro ou comunidade? Quando uma política urbana torna-se uma política de significados. Disponível em:  https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7156 Acesso em 30.5.2020.

MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela. A maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Editora Gente, 2014.



[1] Euclides da Cunha em sua obra “Os sertões” publicada em 1902 se referia à Jatropha phyllacantha, também conhecida como faveleira e mandioca-brava, de nome formado provavelmente como diminutivo de fava. Ocorre que no morro da Favela, que tinha posição estratégica, acamparam as tropas federais enviadas para esmagar Canudos. Para o etimologista Antenor Nascentes, de volta ao Rio de Janeiro, veteranos da campanha pediram permissão ao ministério da Guerra para construir casas para suas famílias no morro da Providência. Daí, por diante, o morro, seja como recordação da campanha, seja por alguma semelhança de aspecto ou por estar sobranceiro à cidade, assim como o de Canudos, passou a chamar-se de Favela, nome que se tornou por assim dizer nacional.

[2] As favelas no Brasil ou aglomerados subnormais no Brasil (denominação adotada oficialmente pelo IBGE a partir do Censo de 2010), são considerados como uma consequência da má distribuição de renda e do déficit habitacional no país. A migração da população rural para o espaço urbano em busca de trabalho, nem sempre bem remunerado, aliada à histórica dificuldade do poder público em criar políticas habitacionais adequadas, são fatores que têm levado ao crescimento dos domicílios em favelas.

[3] Levantamento do Instituto Pereira Passos, órgão de planejamento da Prefeitura do Rio de Janeiro, mostra que, de 967 trabalhos feitos sobre favelas até 2002,43% tiveram 19 favelas delas como objeto. Só a Rocinha teve 82 estudos registrados, seguida do Complexo da Maré, com 75 trabalhos.

[4] No Brasil, o saneamento básico é adequado em 67,3% dos domicílios em aglomerados subnormais (nas áreas urbanas regulares eram 85,1%), sendo que 56,3% dos domicílios estavam conectados à rede geral de esgoto e 11% à fossa séptica. No entanto, mais de 88% desses domicílios tinham um fornecimento de água adequado. No que tange a energia elétrica, 72,5% dos domicílios em aglomerados subnormais tinham serviços de energia elétrica adequados, mas 99,7% tinham acesso à energia elétrica.

[5] As favelas cariocas projetadas nas comédias musicais cinematográficas, conhecidas como chanchadas, nos anos 1930 ao início da década de 1960 passou a ser representada cada vez mais politizada. E, meio às polêmicas sobre as remoções das favelas e a atuação social da Igreja Católica na transformação desse tipo de habitação popular em problema público. Assim a favela deixa de ser o berço do samba para ser problema público.

[6] Segundo o Doutor Adalberto Cardoso, in litteris: “O papel da Igreja Católica, aliás, tem espaço destacado na análise de Valladares. Instituição decisiva na história política e social brasileira, está presente como um dos agentes responsáveis por “problematizar” a favela, primeiro em chave conservadora e caritativa (antes dos anos 1950), depois respondendo às mudanças que desaguariam no Segundo Concílio do Vaticano e, mais tarde, na Teologia da Libertação. No Rio as mudanças na Igreja seriam antecipadas por uma figura emblemática, Dom Helder Câmara e sua Cruzada de São Sebastião, criada em 1955 para dar “solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro”, o que resultaria, na prática, num movimento pela sua urbanização. Um dos subprodutos dessa cruzada foi a geração de informação mais detalhada sobre diversas favelas do Rio, coisa que o Censo Demográfico de 1950, primeiro a identificar esse espaço de habitação popular, não permitia”.

[7] No relatório “Aspectos humanos da favela carioca”, publicado em 1960 e dirigido por José Arthur Rios, que, segundo o próprio autor, cruzou o método monográfico de Lebret e a ecologia humana da Escola de Chicago para produzir um estudo que ia de encontro aos dogmas de então, como frisa Valladares. A pesquisa, financiada pelo jornal O Estado de S. Paulo, teria inovado em método e resultados, já que as favelas foram apresentadas como realidades heterogêneas e internamente diferenciadas, análises que teriam sido “esquecidas” por muitos pesquisadores atuais que continuariam a difundir os dogmas que a autora quer desmontar.

[8] Em 1897, cerca de vinte mil soldados que haviam retornado ao Rio de Janeiro após a Guerra de Canudos, na província oriental da Bahia, começaram a morar no já habitado Morro da Providência. Durante o conflito, a tropa governista havia se alojado na região próxima a um morro chamado “Favela”, o nome de uma planta resistente da família Euphorbiaceae, que causava irritação quando entrava em contato com a pele humana e que era comum na região. A planta era da espécie Cnidoscolus quercifolius, chamada de árvore “faveleira”. Por ter abrigado pessoas que haviam lutado naquele conflito, o Morro da Providência recebeu o apelido de “Morro da Favela”. O nome tornou-se popular e, a partir da década de 1920, os morros cobertos por barracos e casebres passaram a ser chamados de favelas.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Em um país chamado favela. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/em-um-pais-chamado-favela/ Acesso em: 29 mar. 2024