Direito Constitucional

[Necro]Política da Segurança Pública – Guerra sem fim contra o crime ou novos campos?

LICENÇA PARA ABATER. Uma questão que tem sido bastante discutida e causado muita polêmica nos noticiários e debates políticos desde o início de 2019 é sobre a possibilidade de o Estado determinar o “abate” de criminosos que estejam portando armas de uso restrito das Forças Armadas.

Não pretendemos entrar na polêmica com observações do ponto de vista estritamente jurídico, vez que, apesar de toda a celeuma, a questão, no âmbito da dogmática, parece ter solução e simples desdobramentos a partir da evidente constatação de que inexiste autorização no ordenamento pátrio para uma “legítima defesa da sociedade” (sic) e da imperiosa constatação de que o Estado responde objetivamente pelas condutas de seus agentes. Nossa observação pretende ter um enfoque de segunda ordem.

A despeito da retórica, as declarações de políticos em prol do chamado “abate” parecem muito mais uma como uma proposta de continuidade, ainda que radicalizada, do modelo de segurança pública posto em prática desde a intervenção federal no Rio de Janeiro, bem como das missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), do que uma ruptura com o modelo intervencionista. Mais ainda, é preciso indagar se, no final das contas, há ou não uma linha de continuidade entre o modelo de segurança pautado por batalhões de elite, passando pelas missões de Garantia da Lei e da Ordem, e culminando na ideia de “abater” traficantes com tiros de fuzil.

Mais uma vez, muito mais do que uma ruptura, parece uma linha de continuidade, porém, agora, com a certeza da legitimidade sustentada pelo respaldo que viria das urnas[1] ea aposta em um endurecimento e aperfeiçoamento da política de enfrentamento anteriormente posta em prática.

De qualquer maneira, apesar do respaldo legal tanto da garantia da lei e da ordem quanto da intervenção federal, sob o prisma formal do Direito, o que não aconteceria com a “interpretação” da lei que sustentaria o “abate” de criminosos, pretendemos analisar se há, ao mesmo no que toca ao discurso político, uma linha de continuidade entre os modelos, especialmente tendo em vista o imaginário no qual a “paz” tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim” (MBEMBE).

GARANTIA DA LEI E DA ORDEM. Conforme definição do próprio Ministério da Defesa, “Realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem”[2].

O §2º do art. 15 art. da Lei Complementar 97, de 9 de junho de 199, estabelece que a“ atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem (§4º). Caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins.

São exemplos de ocasiões em que houve o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem o uso de tropas em operações de pacificação do governo estadual em diferentes comunidades do Rio de Janeiro, assim como Forças Armadas também atuaram nos limites legais da GLO durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro (Rio + 20), em 2012; na Copa das Confederações da FIFA e na visita do Papa Francisco a Aparecida (SP) e ao Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013; na Copa do Mundo 2014 e nos Jogos Olímpicos Rio 2016.

INTERVENÇÃO FEDERAL. O artigo 84 da Constituição Federal estabelece que compete privativamente ao Presidente da República, entre outros, decretar e executar a intervenção federal. Trata-se de mecanismo que difere da garantia da lei e da ordem. O DECRETO Nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, implementou a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018, limitada à área de segurança pública. Foi nomeado um General como Interventor, cargo este de natureza militar. O citado decreto regulamenta os poderes e deveres do Interventor.

O Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção. O Interventor pode requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção. O Interventor pode, ainda, requisitar a quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública federal, os meios necessários para consecução do objetivo da intervenção. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o Interventor pode exercer o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública

O QUE É UM CAMPO? Tratando de tal questão, AGAMBEN, para além da ideia de definir o campo pelos eventos que historicamente neles ocorreram, pretende responder à pergunta

“o que é um campo, qual é a sua estrutura jurídico-política, por que acontecimentos semelhantes puderam ter tido lugar ali?”[3].

Assim, o campo é tido não como um fato histórico, mas como o “nomos do espaço político no qual ainda vivemos”.

Muito embora aponte para a dúvida entre os historiadores sobre qual a primeira aparição histórica dos campos, se em Cuba no final do século XIX ou na África do Sul colonizada pela Inglaterra, AGAMBEN destaca que sempre foram caracterizados pela “extensão a uma inteira população civil de um estado de exceção ligado a uma guerra colonial[4]” (grifo nosso), tendo nascido do estado de exceção e da lei marcial, evidenciando o nexo constitutivo entre estado de exceção e campo de concentração.

AGAMBEN define o campo como “o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar regra[5]”, vez que passa a ser permitido que vigore em situações normais. O campo seria “um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é, por isso, simplesmente um espaço exterior”, o que é excluído é incluído por meio de sua própria exclusão. Os campos têm vocação para realizar estavelmente a exceção. Nos campos, tudo é possível.

Ainda, para AGAMBEN, “o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que já existiu, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida biológica sem nenhuma mediação[6]”, quando a política passa a ser biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão.

E mais, partindo do pressuposto que o campo tem como essência a materialização do estado de exceção e da criação de um espaço para a vida nua, AGAMBEN defende que estamos virtualmente na presença de um campo todas as vezes em que for criada uma estrutura semelhante. As atrocidades são cometidas ou não a depender a civilidade e do sentido ético da polícia, que age provisoriamente como soberana, e não mais do direito.

Acrescenta AGAMBEN que “também certas periferias das grandes cidades pós-industriais” (grifo nosso), assim como as gated communities dos EUA, começam a se assemelhar aos campos, vez que, em determinados momentos pelo menos, vida nua e vida política entram em uma zona de absoluta indeterminação. É essa constatação que se apresenta como de total interesse para a nossa observação.

SEGURANÇA PÚBLICA E GUERRA SEM FIM. Ao final da nossa análise, podemos concluir que a política de segurança pública tem alguma ligação com o traço que, conforme as formulações de ACHILLE MBEMBE, persiste evidente

“no pensamento político moderno assim como na prática e no imaginário político europeu, [vez que] a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual a ‘paz’ tende a assumir o rosto de uma ‘guerra sem fim’”[7].

Em formulação que interessa à nossa reflexão, MBEMBE destaca que

“as colônias são semelhantes às fronteiras. Elas são habitadas por ‘selvagens’. As colônias não são organizadas de forma estatal e não criaram um mundo humano. Seus exércitos não formam uma entidade distinta, e suas guerras não são guerras entre exércitos regulares. Não implicam a mobilização de sujeitos soberanos (cidadãos) que se respeitam mutuamente, mesmo que inimigos. Não estabelecem distinção entre combatentes e não combatentes ou, novamente, ‘inimigo’ e ‘criminoso’. Assim, é impossível firmar a paz com eles. Em suma, as colônias são zonas em que guerra e desordem, figuras internas e externas da política, ficam lado a lado e se alternam. Como tal, as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’’’ (grifo nosso)[8].

As colônias, hoje, são certas periferias das grandes cidades pós-industriais. É lá em que o campo se virtualiza. E as periferias não necessariamente estão distantes ao se constituírem como campos, na acepção apontada por AGAMBEN.

Assim, diante da impossibilidade de firmar a paz nas comunidades com a maciça presença do crime organizado, facções que não implicam a mobilização de sujeitos soberanos ou cidadãos, ausente o respeito mútuo, nada mais natural, aos olhos de quem assim enxerga o conflito, do que apontar o “abate de criminosos” como alternativa de política de segurança pública.



[1] Vale lembrar que a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada por meio do DECRETO Nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, quando a classe política enfrentava altíssimos índices de impopularidade, sem contar, evidentemente, a crise no governo estadual fluminense em razão do desgaste da elite política local. Ou seja, a intervenção federal é decretada em um contexto de baixa dos atores políticos estaduais e federais, em meio a severas crises políticas, timidez dos números na superação da brutal recessão que assolava o país e notícias reiteradas de desvios e desmanados com o dinheiro público.

[2] Disponível em  https://www.defesa.gov.br/exercicios-e-operacoes/garantia-da-lei-e-da-ordem, acesso em 09/01/19.

[3] Meios e fins, Autêntica, 1ª edição, 3ª reimpressão, 2017, p.41.

[4] Idem, p. 42.

[5] Idem.

[6] Idem, p. 44.

[7] Necropolítica, Achille Mbembe, n-1 edições, 2ª edição, 2018, pp. 32-33.

[8] Idem, pp. 34-35.

Como citar e referenciar este artigo:
D'AMICO, Rafael Gandara. [Necro]Política da Segurança Pública – Guerra sem fim contra o crime ou novos campos?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/necropolitica-da-seguranca-publica-guerra-sem-fim-contra-o-crime-ou-novos-campos/ Acesso em: 18 abr. 2024