Direito Constitucional

Inconstitucionalidade e discricionariedade no fenômeno da banalização das prisões preventivas: duas perspectivas

Roberto Rigato Filho

RESUMO: O presente artigo trata de uma breve e inicial crítica, interna e externa à teoria juspositivista do direito, aos processos de captura e aprisionamento de indivíduos, sem condenação judicial, por força do estado. Tentarei mostrar quais as condições de possibilidade para apontar como discricionárias tais práticas e como as referidas podem ser consideradas desalinhadas ao direito constitucional, segundo a abordagem dworkiana de decisão judicial correta (ou adequada à constituição); após, irei propor que tal método encontra explicação no sentido que Agamben e Foucault dão ao termo dispositivo.

Palavras-chave: Direito constitucional. Penal. Prisão preventiva. Dworkin. Foucault. Agamben. Dispositivo.

1 INTRODUÇÃO

Em matéria intitulada “Why Are Prosecutors Putting Innocent Witnesses in Jail?[1], publicada na revista New Yorker em 17/10/2017, relata-se que em 2015 Renata Singleton, mãe solteira de três filhos, foi levada para uma prisão à pedido de um promotor de New Orleans, sem nem mesmo ter sido acusada de ter cometido um crime.

Para as autoridades locais, a ação jurídico-policial não estava desalinhada ao direito norte-americano. Segundo a promotoria, o pedido formulado em juízo possuía um objetivo: garantir que ela testemunhasse em juízo contra o ex-namorado, preso e denunciado seis meses antes por agir violentamente contra ela; e uma motivação: Renata Singleton teria ignorado a tentativa de intimação para prestardepoimento.

Sendo qualificada, então, pela promotoria como “material witness” (indivíduos considerados como vitais para a solução de um caso penal), “não-cooperativa”, e fundamentando o pedido num direito do estado de prender vítimas e testemunhas para fins de investigação, o mandado foi expedido e Renata encaminhada para uma penitenciária.

Assim como o Patriot Act, este fundamento que permitiu a ordem de prisão encontra codificação legal. Em 1789, o Judiciary Act prescreveu o dever das testemunhas em se apresentar perante as cortes para testemunhar. E referido direito possuía fundamentação deontológica: o agente de um crime não deve deixar de ser punido por causa da relutância da testemunha em testemunhar. Em 1984, o ato foi ratificado pelo Congresso, que reafirmou o direito a prender as testemunhas, ainda que anotando ser preferível outras medidas que não o aprisionamento.

Presa, mas considerada vítima, Renata Singleton não possuía direito a um advogado público. Na cela, de roupa laranja, perdeu oito quilos durante a semana em que ficou detida; sentiu medo de ser violentada, até perceber que várias das mulheres ali presas recebiam medicação e dormiam constantemente, e ansiedade por estar longe dos filhos e por acreditar que seria demitida do emprego. Na corte, inicialmente sua fiança foi fixada em cem mil dólares (dez vezes maior que a fiança paga pelo ex-namorado ao ser libertado), substituída, após intervenção do advogado pago pela mãe, por outras medidas de cautela, como o uso da tornozeleira de monitoramento. Dias depois, ao comparecer em juízo para prestar o tão precioso testemunho que a levou à detenção, Renata Singleton descobriu que este não era mais preciso – seu ex-namorado já havia declarado culpa pela denúncia.

Além disso, a intimação que Renata supostamente teria ignorado, que dizia que “multa e prisão podem ser impostas ao não obedecer esta intimação”, não era um documento legítimo,mas sim criado pela promotoria sem qualquer previsão legal, uma tática para coagir as testemunhas ao fazê-las acreditar que estavam diante de uma obrigação legal.

Em 14 de setembro de 2017, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, falecido reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi preso, despido e interrogado por 7 horas em um departamento da Polícia Federal, sob a acusação de tentativa de obstrução de investigação de desvios verba pública, não diretamente implicado no suposto[2].

O momento de sua prisão foi filmado e transmitido pelos canais de televisão, no melhor estilo do espetáculo midiático moderno. “Mas é roubalheira pra tudo que é lado né?”, disse, indignada, a âncora do telejornal Bom Dia Brasil ao anunciar a operação da polícia federal. “Os suspeitos teriam movimentado 80 milhões de reais”, ela continuou, com ênfase nos valores, e terminou a manchete afirmando que “o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi preso”. A mesma notícia, anunciada com a mesma entonação de indignação, foi repetida pelos principais meios de comunicação e fotos do então reitor com uniforme laranja de presidiário circularam por redes sociais. Nos muros da reitoria foi pichada a frase “ladrões devolvam os 80 milhões”.

As notícias transmitidas estavam em desacordo com os fatos: o grupo investigado era suspeito de desviar recursos que deveriam ser investidos em programas de educação à distância, projeto este que recebera um total de R$ 80 milhões do governo federal. O valor que se suspeita desviado era alto, mas não chegava a 0,5% desse montante, e a acusação apontada ao reitor não era de participação direta no suposto crime, que teria ocorrido antes de sua gestão, mas de “obstruir as investigações”. Cancellier foi afastado do cargo e proibido de frequentar livremente a universidade. Suicidou-se em 3 de outubro de 2017.

Um levantamento realizado pela revista eletrônica ConJur[3], baseado em informações da Justiça Federal, concluiu que, do início da operação “lava-jato” até 31 de janeiro de 2017, 86 indivíduos tiveram prisões preventivas decretadas pela 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba e assim ficaram por quase um ano, sem condenação definitiva. As prisões duraram em média 281 dias, ou cerca de 9 meses. Segundo a reportagem, Alberto Youssef, ficou mais de 900 dias preso até ir para prisão domiciliar, como parte do acordo de delação premiada realizado com a acusação. Outro preso, Renato Duque, ficou preso por 800 dias e também só foi libertado após assinar acordo de delação com aacusação. A razão pela qual exponho estes três fatos acima é ilustrar o caráter contingente de uma decisão judicial, ainda que da perspectiva interna ao direito.

Renata Singleton foi presa (e aqui desconsiderarei apresentar todas as consequências danosas ao estado físico, psicológico e político de uma pessoa encarcerada), mas poderia não ter sido, e a rejeição do pedido de sua prisão encontraria fundamento e razão legal. Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi preso, mas poderia não ter sido, e a rejeição do pedido de sua prisão também encontraria fundamento e razão legal. O mesmo se aplica a quase todos os 221.054 indivíduos presos na modalidade cautelar, segundo o Conselho Nacional de Justiça[4], que representam 34% do total dos encarcerados do sistema prisional brasileiro.

2 DISCRICIONARIEDADE EM DWORKIN

É esse caráter contingente, acima demonstrado, que representa a condição de possibilidade para afirmar que o maior dilema contemporâneo da teoria do direito é o de construir condições teóricas que garantam que, durante o exercício da política judiciária, o poder dos juízes não se sobreponha ao próprio direito, justamente porque é durante esse exercício (o agir sobre os corpos do mundo em cumprimento a uma decisão judicial), por parte do judiciário, que se efetiva (ou pode-se efetivar) ademocracia.

Nota-se, desde já, que parto de duas proposições: a) o direito é algo diferente de “o que o judiciário diz que é”[5]e b) apenas podemos dizer que há direito democrático quando certas condições do existente podem ser observadas. Caso contrário, qualquer modo judiciário-governamental de operar pode ganhar este nome. Não basta simplesmente observar a existência de instituições jurídicas que funcionem dentro de certa “normalidade” procedimental e que possuem espaços ocupados por julgadores escolhidos por meio de métodos legitimados por leis editadas por representantes populares, eleitos conforme o direito, sem que nelas se observem compromissos com uma dimensão deontológica (ainda que possamos eternamente discutir quem diz, e quais razões sustentam, o que é o ser que fundamenta o dever-ser): o regime de governo democrático deve tratar cada indivíduo como possuindo um mesmo status político, que lhes garantam, basicamente, o direito a igual tratamento e igual respeito por parte do poder estabelecido e deve haver na realidade analisada concretização de direitos fundamentais, com inclusão e projeção universal de igualdade política entre oscidadãos[6].

Ou seja, não há como se falar em autonomia do direito como sabedoria garantidora desta democracia se não houver um modo de restringir as possibilidades de discricionariedade do juiz na hora da decisão.

Acredito que essa é a preocupação de Ronald Dworkin e o ponto fulcral da divergência de sua teoria com a de Herbert Hart, um dos mestre de seu tempo, que argumentava que a vagueza e o caráter equívoco das palavras era inerente à língua (e, logo, à linguagem jurídica e às leis) e que nos casos “difíceis” (aqueles aos quais não haveria uma regra “clara” a se subsumirem), aos quais várias interpretações do texto legal seriam razoáveis, os juízes poderiam decidir discricionariamente, escolhendo a interpretação que considerassem mais apropriada, ou mais justa.

Alega Dworkin, neste famoso debate, que nestas situações, o juiz não estaria aplicando o direito, mas o criando[7]; e que os indivíduos possuem o direito de um devido processo não apenas em sua dimensão formal, mas material, ou seja, uma solução jurídica que esteja de acordo com o conteúdo do ordenamento previamente estabelecido. Em uma palestra intitulada “Is there truth in interpretation?”, lecionada na Biblioteca do Congresso norte-americano em 2009, Dworkin questiona[8]: “imaginem um juiz que acabou de condenar um indivíduo à cadeia ou talvez pior. E então diz, ao fim de seu discuso ‘é claro, esse é o jeito que eu vejo isso, essa é a minha opinião, essa é a forma que eu leio isso, mas há outras interpretações e elas são igualmente boas’. Nós gostaríamos que esse juiz enviasse o indivíduo à cadeia?”.

Logo, sem redomas, o ponto do jurista é o seguinte: discricionariedade, ou o ato de vontade do magistrado para decidir a partir de seu livre convencimento, e democracia não combinam. Se por acaso combinarem, num caso concreto, é caso de coincidência. Em uma teoria como a de Hart, que defende a discricionariedade, nenhuma das partes possui de fato direito a algo, já que o direito é integralmente dependente da interpretação do juiz, e esse deslocamento não é democrático[9].

Segundo a concepção de direito construída teoricamente por Dworkin, o direito como integridade, as decisões judiciais devem se fundamentar em princípios, que são padrões decisórios deontológicos, e não em valores, que são padrões axiológicos, que visam uma consequência, um fim, como política, economia ou outros argumentos que justificam-se na ideia de “bem”.

Assim, princípio é padrão que deve ser observado não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas por exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade. Por justiça, equidade e moralidade, nesse caso, o autor entende o agir segundo uma ética pública, compartilhada, com raízes históricas e institucionais – que poderíamos chamar de moral pública.

O direito como integridade é, portanto, tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto à sua fonte de inspiração, e este ordena aos juízes que interpretem o mesmo material jurídico que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso[10].

Assim como John Rawls chamava de “construtivismo kantiano[11], Dworkin acredita que a tarefa da filosofia política não seria a de fundamentar a ordem política, como acreditavam os contratualistas, mas elucidar os pressupostos teóricos que já estão implícitos nas nossas práticas e instituições e que podem justificá-las como resultado de um procedimento justo, que trata as pessoasimparcialmente.

Para ambos, os princípios constitucionais são distintos logicamente dos valores em virtude da prioridade do justo, construído historicamente, sobre o bem abstrato e com isso negam a perspectiva de que os princípios constitucionais incorporam valores morais compartilhados culturalmente no presente momento do tempo. Assumir isso seria retornar a uma perspectiva pré-moderna, em que o direito se torna incapaz de lidar com a complexidade e pluralidade da sociedade contemporânea, cujos indivíduos não entram em acordo a respeito dos valores que devem guiar sua vida comum.

Dessa forma, os princípios, e consequentemente os direitos individuais que deles derivam, devem ser entendidos como padrões históricos para proteção dos indivíduos contra os valores da maioria e argumentos fundados nesses.

Gostaria de resumir o direito como integridade do seguinte modo: se o direito é uma personificação da história, este possui uma ética própria (um conjunto de princípios e valores histórica e institucionalmente determinados) e deve agir somente segundo imperativos categóricos (e não hipotéticos).

De antemão é preciso dizer que, ao compreender a política judiciária e seus modos de operar (como sentenças absurdamente extensas, tecidas como labirintos de informações que, com ou sem nexo semântico, sintetizam um dispositivo [no sentido jurídico da palavra] que determina uma ordem imperativa ao mundo da vida [faça, deixe de fazer, escolha]; decisões inacessíveis ao público não habituado à linguística jurídica; decisões formalmente irrecorríveis que fecham a porta do poder para o demandante), a teoria de Dworkin pode, sim, servir de álibi retórico, um trunfo inafastável para motivar qualquer decisão que representa um verdadeiro ato de vontade do juiz (como diz Lenio Streck, decisões motivadas são aquelas que primeiro atravessam a ponte, chegam do outro lado e depois voltam para construir a ponte pela qual passaram).

Mas é necessário, também, afirmar que a teoria da resposta correta aparenta ter sido formulada como remédio para este tipo de ato de autoridade (e aqui não me proponho a dizer que esta pareça a intenção do autor, mas o que seus textos dizem, especialmente Levando os direitos a sério e Império do direito).

Em primeiro lugar porque Dworkin dá especial atenção à responsabilidade política dos juízes. Escreve que a diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo ao mesmo juiz no diaseguinte[12].

Em segundo lugar, porque Dworkin compreende que o direito é um conceito interpretativo, já que a prática jurídica é interpretativa, e faz parte dos conflitos jurídicos a apresentação de interpretações alternativas que pretendem dizer qual o direito aplicado para o caso concreto. Dessa forma, a interpretação é indissociável, assim como em qualquer ato humano, do fazerjurídico.

Mas ainda assim, diante de qualquer fato juridicamente observável, o direito, esta experiência normativa compulsória aos indivíduos, deve apresentar uma resposta hermeneuticamente adequada a seus textos fundadores (ele fala em “a answer” e não “the answer”). Essa resposta (a decisão) ultrapassa o raciocínio causal-explicativo, porque busca no ethos principiológico a fusão de horizontes demandada pela situação que se apresenta[13]. E ainda que duas respostas aparentam ser igualmente adequadas, uma se mostraria melhor, já que o direito e o estado estariam instalados em uma tradição, uma história institucional a ser reconstruída e que indicaria a melhor decisão a ser tomada – a moral pública, um conjunto de princípios ratificados historicamente pelos indivíduos cuja existência sustenta a existência do próprio direito, e assim o direito seria “uma atitude interpretativa e autoreflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido”[14].

Para buscar sua resposta adequada, de argumentável maneira politicamente ingênua, porém nobre em relação à sua teoria descritiva do direito, Dworkin aproxima metodologicamente direito e literatura em relação a aplicação de técnicas da hermenêutica literária à hermenêutica legal, no sentido de dar continuidade ao projeto político fundado nos princípios compartilhados, comparando, para tanto, o trabalho do juiz como de um romancista em cadeia.

Esta cadeia literária, escrita coletivamente, impõe a quem a escreve um dever de coerência na continuidade, e assim deve ser tratado o direito. Quanto mais se desenvolve a história, maior será a vinculação da narrativa histórica à narrativa/narrador presente e desta ao próximo autor, que também é um intérprete a reconstruir o passado e construir o futuro[15]. A vinculação do julgador e intérprete com os princípios morais compartilhados institucional-historicamente afastaria o argumento relativista de que, como não existe nenhuma fórmula para distinguir as boas decisões das más decisões, assim como aquele que afirma que, como os juristas e juízes irão por certo divergir em um caso complexo, nenhum argumento é melhor do que outro, e assim impediria decisões subjetivistas, fundadas em morais pessoais dos juízes,superando tanto um convencionalismo positivista quanto um pragmatismo realista.

Por essa linha, segundo Dworkin, o direito não é, e não pode se tornar, aquilo que os juízes (a partir de suas convicções morais) dizem que é (ainda que com apoio popular e midiático) – porque a moral individual é contingente. Mas a moral histórica, institucional e coletiva, de certa forma, é necessária, objetiva e imperativa.

Logo, pode-se concluir: o que Dworkin quer é elaborar uma teoria que considere decisões ad hoc, casuísticas, como objetivamente ilegítimas; que fortaleça a autonomia do direito como conceito interpretativo das tradições histórico-institucionais (e, especificamente quanto ao seu lugar de origem, liberais), e que evite que a política-judiciária seja apenas uma política fundamentada nos valores daqueles que decidem.

Mas como criticar uma decisão judicial como discricionária? Quais são as condições de possibilidade para definir uma decisão como desalinhada ao direito? Acredito (e aqui devo repetir que considero haver no direito como sabedoria uma objetividade independente da vontade daqueles que o fazem existir) que é possível por, pelo menos, dois modos distintos: a avaliação de adequação (ou extrapolação) das razões de decidir ao campo semântico dos textos aplicados (ou, ainda, a avaliação de se houve ou não a apropriação do sentido dos termos do texto) e a incoerência na avaliação epistemológica dos fatos pelojulgador. Necessário dizer que é relativamente fácil encontrar um fundamento retórico para qualquer tipo de decisão. Até porque “bom” e “devido” são razões de agir que facilmente se confundem na argumentação.

Levando em consideração que os juízes devem agir por princípio (e não por valor), se a única diferença entre esses padrões é que o primeiro aponta para o que é “devido” e o segundo o que é “melhor”, e se ambos assumem uma perspectiva normativa, nada há que impeça a indiferenciação entre ambos. Até mesmo o utilitarismo proposto por Mill e a metafísica dos costumes de Kant não diferenciam terminologicamente valor e princípio. De um lado, o utilitarismo assume como dever a maximização daquilo que é bom, e o bom é o que traz mais felicidade para o maior número de indivíduos. Do lado kantiano, bomé tudo aquilo que é devido, e o devido é formulado a partir de outro padrão deontológico, o princípio da universalização, consubstanciado nas formulações do imperativo categórico[16].

Além disso, ainda que os estados modernos estejam obrigados aos tratados internacionais de direitos humanos, políticos e cívicos, e que seja quase unânime nas teorias contemporâneas do direito que este fundamenta-se exclusivamente na existência de direitos fundamentais do homem (que, então, não podem ser violados), a corrente pragmática, “realista”, do direito, que entende ser função primária do direito garantir “paz” e “estabilidade social”, possui diversos adeptos no corpo judiciário.

Então, não raro nos deparamos com decisões judiciais que objetivamente violam direitos fundamentais, como a liberdade do indivíduo, sua intimidade, sua honra (aqui entendida como a reputação perante o meio coletivo), sua integridade física e psicológica, fundamentadas na “necessidade”, na “urgência”, no “bem maior” (a sociedade ou povo, seja lá a definição destes termos), ou simplesmente no “assim deve-se porque é bom”, e no “assim é bom porque é odevido”.

Não que seja novidade para o estado brasileiro, mas vê-se, nos últimos anos, uma expansão da cultura pragmática de violação à liberdades individuais, praticada em não observância da talvez maior herança liberal da modernidade, o princípio da presunção de inocência.

3 CASOS CONCRETOS

Vejamos um caso: Carlos Habib Chater, réu em dois processos criminais ainda não transitados em julgado, encontrava-se preso há aproximadamente 500 dias quando seu advogado impetrou habeas corpus pedindo a revogação de prisão preventiva, alegando que a instrução do processo foi realizada durante 116 dias contados entre a decisão de recebimento da denúncia e o término da fase instrutória[17]. O prazo máximo dessa modalidade de prisão, estabelecido em 2009 pelo Conselho Nacional de Justiça é de 168 dias na Justiça Federal.

O pedido foi indeferido porque, segundo a decisão, o excesso de prazo estava autorizado, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça havia decidido que “um pequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não conduz ao reconhecimento do excesso de prazo. Nesse ponto, vige o princípio da razoabilidade pelo qual se leva em conta o prazo global percorrido e não as fases intermediárias, tolerando-se pequeno atraso, consoante as circunstâncias de cada caso. Assim, a caracterização do excesso de prazo somente se verifica excepcionalmente, nas hipóteses em que a demora for injustificada, impondo-se a aplicação da razoabilidade na análise da sua eventual ocorrência”.

Este é um caso em que pode-se realizar a avaliação de inadequação (ou extrapolação) das razões de decidir ao campo semântico dos textos aplicados e da norma que deles se extrai e a avaliação de que houve a apropriação do sentido dos termos do texto.

Isso porque, o campo semântico dos termos pequeno e razoável não pode ser modelado pelo julgador/intérprete, como se a decisão fosse fundamentada numa linguagem privada. Não há linguagem privada para estabelecer sentidos do mundo; há somente linguagem pública. Essa é a grande contribuição da virada linguística e a aproximação de Wittgenstein com a hermenêutica. Existem estruturas prévias que precedem o conhecimento. Isso quer dizer que o sentido não está mais na consciência de si do pensamento pensante mas, sim, na linguagem pública, como algo que produzimos e é condição de possibilidade de estarmos no mundo. Não nos relacionamos diretamente com os objetos, mas com a linguagem, que é a condição desse relacionamento.

Por quais razões, então, devemos compreender como correto o juízo de que a diferença entre 168 dias (limite estabelecido) e 332 dias (período de cárcere após o limite estabelecido), quase o é um pequeno atraso e razoável? Por que seria este atraso, segundo o sentido de pequeno, pequeno? Por que o dito razoável é razoável?

Certamente não é pequeno. O adjetivo pequeno se refere a algo cujas dimensões são inferiores contra outras coisas de espécies idênticas, sendo possível o uso do conceito de forma simbólica, ou seja, sem relação com a natureza física das coisas. Pequeno, neste sentido, é o que não tem relevância ou profundidade. De pouca importância, de pouco valor[18]. Assim sendo, não é razoável, pois é evidente violação de direitos fundamentais.

E veja-se que a decisão também se apega ao argumento da necessidade para manter o indivíduo encarcerado: “desnecessário aqui recorrer-se ao histórico e as ramificações que foram se descortinando no curso da ‘Operação Lava Jato’, de maneira que a sua complexidade permite a relativização do prazo para conclusão do inquéritopolicial”. Ou seja, prevaleceu para a decisão não o direito do indivíduo (sua presunção de inocência e o prazo limite de prisão preventiva estipulado por autoridade competente), mas os raciocínios morais (a “importância social” da investigação) e finalísticos (para o bem da investigação, o paciente deve continuar preso)”.

Outro exemplo marcante da forma discricionária de agir do poder judiciário é o caso da prisão cautelar do ex-Senador Delcídio do Amaral, determinada em decisão liminar pelo falecido ministro Teori Zavascki[19] e mantida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Assim como nos casos citados no início, o pedido de prisão do ex-Senador foi fundado em evidências de que ele teria tentado atrapalhar a instrução de investigações na operação “lava jato”, a partir de uma conversa gravada 20 dias antes, sem o conhecimento dos demais presentes (portanto prova ilícita, assim definida pelo STF).

A Constituição Federal determina que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre aprisão”.

No caso, o crime em questão não era configurado comoinafiançável; não houve flagrante, propriamentedito; e não havia uma ação penal, inquérito ou investigação em curso contra o ex-senador (o artigo 311 do Código de Processo Penal define: “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridadepolicial”.

Mesmo assim, afirmando que “nenhuma das medidas alternativas indicadas no art. 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender eficazmente aos mesmos fins” e que havia “presentes situação de flagrância”, uma vez que o ex-Senador foi acusado de integrar uma organização criminosa, crime este reconhecido como permanente pela jurisprudência do STF (e, sendo assim, o “flagrante” poderia ser feito a qualquer tempo – por decisão do mesmo STF), o ministro decretou, sem previsão de prazo, a prisão cautelar do ex-Senador. Foi a primeira vez que um Senador foi preso preventivamente no exercício do mandato.

Mas, não obstante a evidente inconstitucionalidade da decisão referida, a discricionariedade ficou mais evidente na comparação de juízos, ainda que fora da tribuna, do ministro Gilmar Mendes, do mesmo STF, que elogiou (e assim ratificou a legitimidade de) a decisão de prender Delcídio do Amaral[20], mas criticou (e classificou como inconstitucional) o pedido realizado pelo mesmo Procurador Geral da República de prisão do então Senador Aécio Neves[21], pedido este fundamentado em razões (contra legem, porém) simétricas à primeira.

Neste caso, além da possível avaliação de inadequação das razões de decidir ao campo semântico dos textos aplicados, há a incoerência nas operações epistemológica do julgador sobre osfatos.

Veja-se que o ministro realizou duas operações epistêmicas ao formular seus juízos: a primeira, a proposição de que o Senador Amaral pertencia a uma organização criminosa. A partir dessa proposição de conhecimento, inferiu que tratava-se de crime permanente, então, uma situação de flagrância permanente. Referido juízo tem fundamento no artigo 303 do Código de Processo Penal (“nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”). A segunda, a proposição de que o Senador Neves não pertencia a uma organização criminosa, embora o pedido realizado pelo Procurador Geral da República assim afirmasse e se fundamentasse em fatos simétricos para a subsunção ao tipo penal, como afirmou e fundamentou o primeiro referido pedido de prisão.

Referida divergência de formulação de juízos, ou ainda o modo pelo qual o juiz discrimina como diferentes duas situações simétricas, é incoerente e o referido fenômeno deve ser conceituado como discricionariedade.

Além disso, e mesmo sem desconfiar da parcialidade do ministro Gilmar Mendes por inclinação partidária (que, na honesta opinião deste que escreve, continua sendo um dos três juízes de maior erudição e conhecimento jurídico da Corte), o fenômeno descrito é ideal para exemplificar o que Lenio Streck chama de “vulgarização da filosofia da consciência”[22]. Segundo o jurista, há uma consagração na tradição jurídica brasileira de que decisões judiciais podem se basear no “livre convencimento motivado” ou na “convicção” dos juízes, a partir das provas, ainda que o atual Código de Processo Civil não mais prescreva essa possibilidade. Essa tradição autorizaria o juiz a fundamentar seu ato de conhecimento (e dele a inferência que produz o juízo) na própria possibilidade de dizer o que conhece, ou seja, no convencimento de que sabe dizer que aquilo que é de fato é.

No famoso julgamento da Ação Penal 470, há um trecho em que o ministro Celso de Mello afirma que as provas do inquérito, embora não tenham passado pelo crivo do contraditório e não possam ser consideradas provas, podem “influir no livre convencimento do juiz, desde que nãoexclusivamente”[23].

Ainda sobre as prisões preventivas, podemos concluir que o instituto foi desvirtuado, por recorrente e cotidiano desrespeito objetivo aos parâmetros do artigo 312 do Código de Processo Penal, que prescreve que “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, oupara assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”, com o adicional de repetidas decisões do STF que afirmam ser necessária a fundamentação de toda e qualquer ordem de restrição de liberdade.

Por “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal”, procuradores, como no fato 2 acima citado, pedem aos juízos a prisão de indivíduos com fundamento no parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 12.850/2013, que tipifica o crime apelidado de “obstrução de justiça”.

Este define como criminoso o indivíduo que “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Ainda que o texto legal aparente ser materialmente inconstitucional, uma vez que lhe falte taxatividade, por descrever com verbos genéricos e abstratos a conduta caracterizadora do crime, e afronta ao direito de não se autoincriminar, é objetivamente ilegal a decretação de prisões pela forma tentada desse referidocrime.

Porque não é possível delimitar com necessidade o que seria a tentativa de embaraço de uma investigação, lembramos que tentar não é realizar o ato. Não é possível provar a existência de tentativa de crime com indício suficiente de autoria, sendo assim impossível a aplicação do artigo 312. E este suposto crime não oferece perigo algum à ordem pública ao tentar embaraçar uma investigação (ainda levando em consideração a constitucionalidade desta específicanorma).

Nunca é demais afirmar: não há “ordem pública”, “ordem econômica” ou “conveniência de instrução criminal” que prevaleça sobre os direitos fundamentais e liberdades individuais dos indivíduos, garantidas constitucionalmente, a não ser que estejamos perante iminente risco de violação de tais direitos, o que não é o caso.

É possível ainda uma breve menção à fixação de Dworkin à história da institucionalidade de seu país de origem como posição metaética. Luigi Ferrajoli[24], no prefácio à Jusnaturalismo e positivismo jurídico de Bobbio, afirma que este sustenta a tese oposta da conexão entre direito e moral (aqui entendida individualmente), não na ideia de um direito natural superior ao direito positivo, mas da configuração dos princípios como qualitativa e estruturalmente superior às regras. Nessa versão, não se limita a apontar que esses princípios possuem conteúdo morais, ou que são acompanhados por uma pretensão subjetiva de justiça, ou que exigem interpretações argumentadas segundo cânones próprios aos raciocínios morais.

A tese da conexão afirma que a justiça, em algum sentido objetivo da palavra, e não simplesmente o respeito aos princípios de justiça contingentemente positivados pelas constituições, é uma condição de validade das normas jurídicas, e supõe uma forma de objetivismo ético declinado. Daí o valor que ainda hoje sustenta as críticas de Bobbio à teoria objetivista da moral, seja ela jusnaturalista ou de tipo pós-positivista: a crítica historicista, que mostra a inexistência de princípios éticos autoevidentes com valor absoluto euniversal.

Ainda que me incline a concordar com Dworkin, por acreditar que os direitos fundamentais, políticos e humanos, e as conquistas da modernidade são necessariamente um avanço cívico e que, portanto, componham uma “melhor ética” em relação à pré-modernidade, não há na filosofia moral nenhuma um standard externo ao qual podemos ancorar os princípios e valores morais, mesmo considerando que a razão, da forma como apresentada por Kant na segunda crítica, pode nos fornecer fundamentos para o alcance do justo.

Então, por se tratar de atos políticos que escancaram o conflito dos interesse da classe dominante ao direito (ou, sendo mais específico, ao campo semântico dos textos que guardam a norma legal e a incapacidade de realizar uma interpretação ad hoc, por evidente contradição), passo a uma segunda breve consideração, de perspectiva externa ao direito (campo no qual meu pessimismo me faz acreditar que não devo acreditar na possibilidade de um direito autônomo), sobre as prisõespreventivas.

4 DISPOSITIVO, EM AGAMBEN E FOUCAULT

Aqui, é necessário partir de outras proposições. O direito é uma promessa. De fato, o direito existe, como construção teórica humana, disponível para efetivação, como bem imaterial da humanidade – porém depende de vontade. E, embora considere que não é indignidade alguma em ser governado, toda experiência normativa obrigatória é uma espécie de violência, ainda que o indivíduo concorde com o comando, e ache-o bom ou valoroso. Logo, [25]esta deve (e este dever-ser é fundado na proposição de que toda violência é ontologicamente e no respeito ao que entendemos por liberdade), ainda que traga a sonhada paz dos incuráveis românticos, serlegitimada.

Por essa razão que o papel essencial da teoria do direito é o de fixar a legitimidade do poder, sendo seu problema maior a questão da soberania. Isso significa, segundo Foucault, que o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, de outro, a obrigação legal daobediência.

Assim, o poder judiciário é parte do que Agamben e Foucault (quando começou a se ocupar daquilo que chamava de “governabilidade” ou de “governo dos homens”) denominam dispositivo, que seria para Foucault um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não-linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos, que possui uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder.

O dispositivo é algo de geral (um reseau, uma “rede”) porque inclui em si a episteme, que para Foucault é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como um enunciado científico daquilo que não é científico.

Foucault, no início de suas pesquisas, utilizava o termo positivé, positividade, que resgata da obra Introduction à la philosophie de Hegel, do capítulo sobre a positividade da religião cristã, de seu mestre Jean Hyppolite, para quem “destino” e “positividade” são dois conceitos-chave do pensamento hegeliano.

Enquanto a religião natural diz respeito à imediata e geral relação da razão humana com o divino, a religião positiva ou histórica compreende o conjunto das crenças, das regras e dos ritos que em uma determinada sociedade e em um determinado momento histórico são impostos aos indivíduos pelo exterior. “Uma religião positiva”, escreve Hegel, em uma passagem que Hyppolite cita, “implica sentimentos que vêm impressos nas almas através de uma coerção e comportamentos que são resultado de uma relação de comando e de obediência e que são cumpridos sem um interesse direto”[26], e assim a oposição entre natureza e positividade corresponderia à dialética entre liberdade e coerção e entre razão e história.

A partir dessa positividade do jovem Hegel que Foucault deriva o termo dispositivo, um termo geral de similar amplitude, e que ocupa o lugar daqueles que ele define como “universais”, as categorias gerais da razão como o Estado, a Soberania, a Lei e o Poder. Logo, o termo significa a disposição de uma série de práticas e de mecanismos, linguísticos e não-linguísticos, jurídicos, técnicos e militares que tem o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito.

Partir dessa ideia de urgência e efeito, Agamben, por sua vez, amplia o entendimento de dispositivo ao encontrar sua fundação na noção de providência da religião cristã e em sua concepção de oikonomia, que é o conjunto de práticas, de saberes, de medidas e de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar, em um sentido que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos doshomens.

Importante afirmar que a concepção de oikonomia aparece numa forma de cisão que separa em Deus ser e ação, ontologia e práxis, sendo que esta ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum fundamento no ser deDeus. Agamben, então, propõe a divisão do existente em dois grandes grupos: os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos nos quais estes estão incessantemente capturados, e que tratam de governá-los e guiá-los para o bem. Dispositivo é, então, qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes, a fim de garantir o triunfar da oikonomia, ou seja, da pura atividade de governo que não visa outra coisa que não a própria reprodução[27].

Isso inclui não somente as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e a própria linguagem.

Digo isso para propor que o poder judiciário, e suas milhares de decisões todos os dias proferidas, faz parte do dispositivo como rede (assim como a própria ideia de democracia ou direito democrático), uma vez que a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder régio. Foi a pedido do poder régio, para servir-lhe de instrumento ou de justificação que se elaborou o edifício jurídico de nossas sociedades. E então, quando esse edifício jurídico escapar ao controle régio, o que será discutido serão sempre os limites desse poder.

Para exemplo de escape do direito ao controle do dispositivo, durante o movimento dinâmico entre a vontade política e a razão jurídica, temos o caso da pena de censura aplicada a desembargadora Kenarik Boujikian, em razão de expedir alvarás de soltura a 11 presos que já haviam cumprido suassentenças[28].

No caso, segundo claras razões jurídicas, era necessário libertar imediatamente os homens aprisionados, não só porque estes não deveriam cumprir pena maior que a determinada pela condenação, mas porque o estado seria, por previsão legal, obrigado a pagar-lhes indenização pelos dias de cárcere indevido.

Então o dispositivo, ameaçado, se voltou contra o direito, e automaticamente àquela que o fez vir à luz, pelo meio mais aparentemente dócil, justo e técnico: o próprio processo legal. Kenarik foi acusada de “violar o princípio da colegialidade ao agir de forma monocrática”, que nada mais significava que ela tinha o dever de apresentar sua decisão para seus pares antes de determinar seucumprimento.

A contraposição desse suposto princípio de colegialidade aos princípios constitucionais que estavam sendo violados ao manter-se os indivíduos encarcerados por mais tempo que suas condenações previam (assim como na negação de suas solturas), escancara a vontade e capacidade de captura, orientação, controle das condutas e status daqueles seres viventes.

E, por inclui em si a episteme (a capacidade de dizer e distinguir o que é técnico ou não), o dispositivo pode, assim, reagir à ameaça do direito, e continuar a operar, para sua própria reprodução, em caráter de exceção, de jurisdição da soberania, por medidas revestidas de uma aparência de legalidade e justeza[29].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Santa Catarina: UFSC, Outra Travessia, 2009

BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

PORTELA LOPES DE ALMEIDA, Fábio. Os princípios constitucionais entre deontologia e axiologia: pressupostos para uma teoria hermenêutica democrática. Revista Direito FGV. São Paulo, 2008.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SARTORI, Giovanni. Teoria Democrática. São Paulo: Fundo de cultura, 1965.

SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Editora Alameda, 2016.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. São Paulo. Editora Saraiva, 2014.



[1] https://www.newyorker.com/news/news-desk/why-are-prosecutors-putting-innocent-witnesses-in-jail

[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html

[3] https://www.conjur.com.br/2017-fev-07/criticadas-preventivas-lava-jato-duram-media-93-meses

[4] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-do s-tribunais

[5] “(…) O absurdo está chancelado pelo Supremo (Tribunal Federal), e o direito é aquilo que os tribunais dizem que é“, ministro Luix Fux durante o julgamento sobre aplicação da Lei da “Ficha Limpa” (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gilmar-e-fux-batem-boca-em-sessao-do-tse,10000094749)

[6] SARTORI, Giovanni. Teoria Democrática. São Paulo: Fundo de cultura, 1965.

[7] HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

[8]“Imagine a judge who’s just sentenced a villain to jail or perhaps worse. And then says at the end of his opinion “of course, that’s the way I see it, that’s my opinion, that’s the way I read it, but there are other interpretations and they are equally good”. We would want that judge send (the villain) to jail?”, encontrada em http://www.allreadable.com/111245ZA

[9]DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

[10]DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[11] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[12] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[13] STRECK, Lenio L. Dicionário de hermenêutica.

[14] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[15] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[16] PORTELA LOPES DE ALMEIDA, Fábio. Os princípios constitucionais entre deontologia e axiologia: pressupostos para uma teoria hermenêutica democrática. Revista Direito FGV. São Paulo, 2008. Encontrado em http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a07v4n2.pdf

[17] https://www.conjur.com.br/dl/prisao-preventiva-500-dias-irregular.pdf

[18] Quinta definição do adjetivo segundo o dicionário Michaelis da língua portuguesa

[19] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/11/down-4039.pdf

[20] http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/todos-os-fatos-revelados-sao-graves-diz-gilmar-mend es-sobre-prisao-de-delcidio/

[21] http://www.valor.com.br/politica/5063128/gilmar-mendes-ataca-janot-por-voltar-pedir-prisao-de-aecio

[22] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. São Paulo. Editora Saraiva, 2014.

[23] ftp://ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf

[24] Bobbio, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

[25] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

[26] AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. Chapecó: Editora da Unichapecó, 2009.

[27]AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Santa Catarina: UFSC, Outra Travessia, 2009

[28] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85325-cnj-absolve-juiza-punida-por-libertar-presos-que-ja-tinham-cumpri do-pena

[29] SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Editora Alameda, 2016.

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Roberto Rigato. Inconstitucionalidade e discricionariedade no fenômeno da banalização das prisões preventivas: duas perspectivas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/inconstitucionalidade-e-discricionariedade-no-fenomeno-da-banalizacao-das-prisoes-preventivas-duas-perspectivas/ Acesso em: 29 mar. 2024