Direito Constitucional

Noções de teoria geral dos direitos e garantias fundamentais

Nayana Guimarães Souza de Oliveira Poreli Bueno[1]

Os direitos e as garantias fundamentais encontram-se no centro dos ordenamentos jurídicos dos Estados que se constituem como Estados Democráticos de Direito. Assim, em virtude da sua importância teórica e prática, faz-se necessário compreender o seu conceito, quais os direitos enquadráveis como tais, a classificação mais adotada dos direitos e das garantias fundamentais, a posição dos mesmos na Constituição da República de 1988, as suas características e os critérios para a resolução de conflitos entre esses direitos.

No presente artigo, propomo-nos a delinear um panorama básico, os caracteres iniciais para a compreensão da teoria geral dos direitos e das garantias fundamentais, sem a pretensão de aprofundamento em partes dessa matéria. Propomo-nos a expor (e, por isso, fazer uma dissertação expositiva) do tema, de modo a servir como um guia para aquele que inicia a compreensão do assunto.

Inicialmente, é necessário compreender que os direitos fundamentais, conforme posição doutrinária majoritária, são direitos humanos positivados na ordem jurídica interna de cada País[2][3]. Assim, os direitos fundamentais, do mesmo modo que os direitos humanos, são aqueles que o ser humano possui pelo simples fato da sua humanidade. Estão intimamente relacionados ao superprincípio da dignidade humana, que para alguns, como Bernardo Gonçalves Fernandes (2010, p. 235), é um verdadeiro axioma sobre o qual os direitos fundamentais se assentam. Nesse sentido, o axioma “dignidade da pessoa humana” não é princípio nem regra, a rigor, mas paira acima deles, irradiando vetores e valores de interpretação dos direitos fundamentais e humanos. No mesmo sentido aponta Marcelo Novelino (2010, p. 370), vejamos:

Enquanto atributo inerente a todo ser humano, a dignidade não é, e nem pode ser, concedida pelo ordenamento jurídico, razão pela qual, neste sentido, não deve ser considerada um direito fundamental. Contudo, existe uma relação de mútua dependência entre eles, pois, ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais surgiram como uma exigência da dignidade de proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, somente por meio da existência desses direitos a dignidade poderá ser respeitada e protegida.

À míngua de um consenso sobre os direitos enquadráveis como fundamentais/humanos, Gomes Canotilho, apud Fernandes (2010, p. 71) identifica duas principais correntes, a liberal, segundo a qual são direitos fundamentais somente aqueles que garantem as liberdades públicas dos cidadãos e limitam o poder do Estado, e a comunitarista, segundo a qual são direitos fundamentais aqueles escolhidos como os mais importantes por uma dada sociedade.

Para fins didáticos, os direitos fundamentais são comumente classificados em dimensões de direitos, tendo em vista a sua trajetória histórica de reconhecimento.

A primeira dimensão[4] de direitos fundamentais diz respeito ao direito de liberdade e à limitação do poder do Estado de intervenção na esfera individual. Trata-se dos direitos individuais de viés liberal, reconhecidos solenemente na Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que Fábio Konder Comparato (2010, p. 86) denomina de “certidão de nascimento dos direitos humanos”. Seu reconhecimento decorreu da luta burguesa contra o absolutismo monárquico, fundada em teorias iluministas, e os fatos históricos mais relevantes desse momento foram a Revolução Americana (1787) e a Revolução Francesa (1789).

A segunda dimensão de direitos fundamentais se refere ao direito de igualdade, resultado das lutas sociais por melhores condições de trabalho, no início do século XX, cujos documentos e fatos mais importantes são o Manifesto Comunista, a Revolução socialista russa (1917), a Constituição Mexicana (1917), a Constituição de Weimar (1919) e a Encíclica papal Rerum Novarum. Nesse momento histórico foram reconhecidos os direitos sociais, econômicos e culturais, direitos exigíveis do Estado, visto que não há como exercer a liberdade em uma sociedade desigual.

A terceira dimensão de direitos veio a ser reconhecida após a Segunda Guerra Mundial, quando os horrores do nazismo foram revelados, trazendo a necessidade de se garantir direitos coletivos, difusos e transindividuais. O fato mais importante desse momento histórico foi a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e a aprovação de sua primeira Resolução, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. É mister ressaltar que todas essas dimensões de direitos foram incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais em momentos distintos em cada País, quando passaram a ser considerados direitos fundamentais.

Paulo Bonavides, apud Novelino (2010, p. 356), em posição abalizada, defende ainda a existência da quarta e quinta gerações de direitos, referentes, respectivamente, aos direitos ao pluralismo jurídico e à democracia e à paz.

No sistema constitucional brasileiro, estão previstos, no Título II da Carta Magna, como direitos fundamentais, os direitos e deveres individuais, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade e os direitos políticos. Como exemplo de direitos individuais, reconhece-se a liberdade de expressão, de ir e vir, dentre inúmeras outras previstas no artigo 5° da Constituição da República; como exemplos de direitos sociais, cita-se o direito ao trabalho, respeitados os requisitos leais exigidos para cada profissão. Com relação à nacionalidade, todos têm direito a ser nacional de um país e, portanto, de não ser considerado apátrida, bem como de livremente sair do seu país e voltar para ele, e de ingressar e sair de outro país; por fim, como exemplo de direito político, pode-se citar o direito ao sufrágio universal. Vale notar que, embora apenas essas espécies de direitos estejam previstos no título relativo aos direitos fundamentais, outros existem esparsos pelo texto constitucional, não se tratando de rol taxativo.

É interessante observar, nesse ponto, que o texto constitucional prevê a contrapartida dos direitos, a saber, os deveres que os governados têm na ordem constitucional. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2014, p. 60) teorizam este ponto, primeiramente chamando a atenção para o fato de que a doutrina pouco se dedica a essa temática, havendo um fortíssimo desequilíbrio entre o tratamento dos direitos e o tratamento dos deveres fundamentais nas obras de Direito Constitucional.

Os autores referidos destacam que o Estado tem deveres implícitos e não autônomos, como por exemplo o dever de efetivação dos direitos sociais, sendo estes deveres implícitos porque devem ser realizados com ações apropriadas (por meio de legislação conformadora e de políticas públicas adequadas), tem também deveres estatais explícitos, como, por exemplo, o de reparar o condenado por erro judiciário, e deveres autônomos, que são deveres de criminalização. Já os particulares também possuem deveres, como por exemplo o de votar, o de cumprir as leis vigentes (DIMOULIS; MARTINS, 2014, p. 60-67).

Quanto às características dos direitos fundamentais, entende-se, majoritariamente, que são inalienáveis, imprescritíveis, indisponíveis, relativos, históricos, universais e interdependentes entre si.

São inalienáveis por serem intransferíveis para outrem, já que “o homem nunca poderá deixar de ser homem” e, portanto, jamais poderá transferir a sua dignidade para outra pessoa (FERNANDES, 2010, p. 251). Pela mesma razão, são indisponíveis, ou seja, o seu titular não pode dispor de seus direitos inerentes à dignidade.

São imprescritíveis porque não desaparecem pelo decurso do tempo, mas, pelo contrário, expandem-se com o tempo, avançando sempre no sentido de aumentar seu núcleo (FERNANDES, 2010, p. 250).

Ainda, diz-se que são históricos porque certamente a construção dos direitos humanos se faz historicamente, por meio de lutas sociais, de conquistas sociais por meio dessas lutas, que resulta sempre no alargamento do rol de direitos enquadráveis como humanos.

Os direitos fundamentais são universais porque reconhecidos a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, idade, cultura, gênero ou qualquer característica individual. Assim, embora a Constituição de 1988 preveja que os direitos fundamentais são devidos aos nacionais e estrangeiros residentes no País, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que o texto disse menos do que pretendia significar, e os estende aos estrangeiros não residentes no País e, até, aos apátridas.

Lado outro, os direitos fundamentais/humanos são relativos porque não são absolutos, nem possuem entre si qualquer hierarquia. Dessa forma, o direito de propriedade pode ceder, em um caso concreto, ao interesse público; do mesmo modo, o direito de ser eleito pode ceder à necessidade de alternância de poderes, conforme regras constitucionais expressas, e assim por diante.

Vistos os principais aspectos no tocante à teoria geral dos direitos fundamentais, passamos à exposição do conceito, características e pontos principais das garantias fundamentais.

Embora a expressão “direitos e garantias fundamentais” seja usada constantemente, pouco se reflete acerca do que de fato diferencia um e outro. As dificuldades para diferenciar direitos e garantias, com efeito, são muitas, seja porque não existe uma técnica legislativa que os distinga, seja porque muitas vezes ambos estão tão conectados que se torna difícil dizer o que é o aspecto material e o que é o aspecto assecuratório do direito.

Conforme José Afonso da Silva (2002, p. 185), a concepção do que é uma garantia é, em muito, dependente à concepção que se tem do que é direito fundamentais. O célebre constitucionalista nos ensina por meio de um exemplo: para a corrente que equipara os direitos fundamentais aos direitos naturais, os direitos seriam preexistentes ao seu reconhecimento na ordem jurídica; quando reconhecidos, estariam “garantidos”.

No entanto, a concepção que se sagrou no Brasil acerca do tema é a do ilustre Rui Barbosa (SILVA, 2002, p. 185), para quem os direitos são disposições declaratórias que asseguram bens jurídicos e vantagens, ao passo que as garantias são disposições assecuratórias que limitam o poder para garantir os direitos.

Nesse ponto, é interessante não perder de vista que as garantias também são direitos, embora no sentido instrumental, e não no sentido de assegurar a seus titulares qualquer bem ou vantagem. Em outras palavras: o direito é um fim em si mesmo, enquanto a garantia é um meio para atingir um fim (o direito que visa assegurar).

As garantias, para José Afonso da Silva (2002, p. 187-188), se classificam como garantias gerais – aquelas referentes à organização política que permita a existência real dos direitos fundamentais, ou seja, de uma sociedade democrática –, e em garantias constitucionais, que são limitações ao Poder Público, bem como os meios, técnicas e procedimentos necessários à imposição de respeitabilidade aos direitos fundamentais.

Ainda, as garantias podem ser classificadas com base na natureza do direito fundamental assegurado. Assim, conforme a Constituição da República de 1988, as garantias classificam-se em individuais, coletivas, sociais e políticas.

Dentre as principais garantias individuais, situam-se aquelas estabelecidas pelos princípios da legalidade, da estabilidade dos direitos adquiridos, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Também se enquadram os remédios constitucionais – habeas corpus, habeas data, mandado de segurança individual e mandado de injunção. Dentre as garantias dos direitos coletivos, citam-se o mandado de segurança e o mandado de injunção coletivos, bem como a ação popular. Com relação às garantias sociais, exemplifica-se com a gratuidade da justiça para os hipossuficientes e as garantias à sindicalização e à greve. No campo das garantias políticas, vislumbram-se o sigilo do voto e a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania.

Como visto, direitos e garantias fundamentais são conceitos cujo sentido ainda são guiados por diversas vertentes teóricas, estando plasmadas no presente texto apenas algumas noções gerais do tema, com vistas a fornecer uma ideia principiante a quem envereda por este assunto. Desse modo, buscamos apresentar uma noção geral da teoria dos direitos e garantias fundamentais, com enfoque nos seus conceitos, características e principais classificações. Assim, esperamos ter contribuído para o conhecimento deste tema de enorme importância para o Direito Constitucional.

BIBLIOGRAFIA

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2002.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2014.



[1] Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Advogada.

[2] Bernardo Gonçalves Fernandes (2010, p. 231-232) diverge nesse ponto, afirmando que o termo “direitos humanos” acaba “atraindo uma carga semântica (de significação) muito aberta e, por isso, mesmo, muitas vezes associada a conteúdos totalmente divergentes”. Segundo ele, “não é difícil encontrar, por exemplo, associações entre direitos humanos e direitos naturais”, o que se deve à força da tradição jusnaturalista, que todavia já não encontra lugar no mundo, diante da dessacralização e positivação do direito”.

[3] De acordo com Marcelo Novelino (2010, p. 351-352), “os termos direitos fundamentais e direitos humanos costumam ser utilizados para designar, quando não os mesmos direitos, ao menos direitos que consagram as mesmas espécies de valores”. Para ele, “apesar da inexistência de um consenso acerca da diferença em relação aos direitos humanos, a distinção mais usual é no sentido de que ambos contemplam, em planos distintos, direitos relacionados à liberdade e à igualdade criados com o objetivo de proteger e promover a dignidade da pessoa humana. Nessa concepção, os direitos humanos se encontram consagrados nos tratados e convenções internacionais (plano internacional), ao passo que os direitos fundamentais são os direitos humanos consagrados e positivados na Constituição de cada país (plano interno), podendo o seu conteúdo e conformação variar de Estado para Estado”. O autor ainda aponta que a Constituição da República brasileira segue nesse sentido, quando em seu texto adota a expressão direitos fundamentais para referir-se aos direitos nela positivados, enquanto usa o termo direitos humanos para designar os consagrados no plano internacional.

[4] Utilizamos hoje a expressão mais abalizada para tratar dos direitos fundamentais do ponto de vista de sua trajetória histórica, tendo em vista que o termo “geração” de direitos, atualmente, perdeu muito da sua força. Conforme Fernandes (2010, p. 235), “Paulo Bonavides tornou-se um dos principais juristas a tornar célebre a leitura (e separação) operada dentro do constitucionalismo que lê os direitos fundamentais a partir de um perfil histórico e, por isso mesmo, os agrupa a partir de gerações de direitos”, contudo, conforme explicita Novelino (2010, p. 354), “atualmente, tendo em conta que o surgimento de novas gerações não importa na extinção das anteriores, parte da doutrina tem optado pelo termo dimensão”.

Como citar e referenciar este artigo:
BUENO, Nayana Guimarães Souza de Oliveira Poreli. Noções de teoria geral dos direitos e garantias fundamentais. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/nocoes-de-teoria-geral-dos-direitos-e-garantias-fundamentais/ Acesso em: 25 abr. 2024