Direito Constitucional

Texto normativo e norma jurídica: Aproximações e distanciamentos

ELIEZER PEREIRA MARTINS[1]

 

Resumo

 

O presente trabalho apresenta esclarecimentos consistentes na positivação de textos normativos e na construção de normas jurídicas, pois os dois modos de produção do Direito em Sociedade não se confundem.

 

Palavras-chave

 

Norma, direito, interpretação, jurídica, texto, limite, tempo, espaço, vigência.

 

Abstract

 

This paper presents clarifications consistent with the validation of normative texts and the construction of legal norms, since the two modes of production of Law in Society are not confused.

 

Keywords

 

Standard, law, interpretation, legal, text, limit, time, space, validity.

 

Sumário

 

Introdução. Texto Normativo e Norma Jurídica. Conclusão. Referências

 

Introdução

 

Este trabalho aborda o significado das expressões “texto normativo” e “norma jurídica”, a fim de estabelecer mais precisamente os limites que envolvem a interpretação jurídica e garantir uma melhor compreensão de atuais decisões produzidas pelo Supremo Tribunal Federal.

 

Para tanto, elege-se, como premissa de sustentação deste trabalho, a linha de pensamento desenvolvida por Eros Roberto Grau, ilustre jurista e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal.

 

De pronto, vale rememorar a advertência de Celso Lafer, no sentido de que:

 

“Não existe um critério unívoco da boa e correta interpretação, assim como não existe um critério unívoco da boa e correta tradução (…) No caso do Direito, a uniformização do sentido do jurídico, pela interpretação, tem a ver com o poder da violência simbólica, que, se apoiando na autoridade, na liderança e na reputação, privilegia um enfoque, entre muitos enfoques possíveis, que passa a ser o uso competentemente consagrado de uma escolha socialmente prevalecente”.[2]

 

Com isso, inicia-se a exposição com a simples afirmativa, e não menos importante, que sustenta: “todo e qualquer texto normativo é obscuro até o momento da interpretação”. [3]

 

Texto Normativo e Norma Jurídica

 

De efeito, cabe assentar, desde logo, que se rejeita a incidência do adágio latino in claris cessat  interpretatio (a clareza afasta a interpretação), certo que, a nosso ver, todo texto normativo exige a devida interpretação jurídica.

 

Apresentadas essas premissas gerais e no afã de registrar os pontos de ancoragem desta pesquisa, é de rigor a exposição de duas noções, a saber: a primeira, refere-se ao “texto normativo”, ao aspecto físico, textual, escrito, verbi gratia, de um dispositivo legal; a segunda, pertine à interpretação do texto, atividade de índole constitutiva exercida com base numa dada realidade histórica marcada no tempo e no espaço.

 

Pois Bem. Passa-se, então, a examinar, de maneira mais detida, cada uma dessas noções.

 

A primeira, como acenado, representa o texto normativo, o texto construído e apoiado nas balizas do devido processo legislativo (processo legislativo legiferente), respeitados os devidos limites políticos, sociais e econômicos, implícitos e explícitos, da ordem jurídica vigente. Noutras palavras: o texto normativo é, simplesmente, o direito positivado pelo Estado, que traça, a partir da opção político-legislativa adotada, um horizonte de possibilidades para fins de futura interpretação. Pode-se indicar, à guisa de ilustração, algumas expressões sinônimas de texto normativo, como segue: texto legal, dispositivo, enunciado, diploma normativo, preceito normativo, arcabouço normativo, quadra normativa, cenário normativo. Eis que surge, nessa esteira, a noção de positivação do Direito, como arte de construção do texto normativo.

 

A segunda, de outra banda, versa sobre a noção de norma jurídica. Norma, aqui, não é sinônimo de lei, de texto legal. Ao contrário, a norma jurídica consiste numa atividade de produção interpretativa.

 

Frise-se, a norma é produzida pelo operador do Direito, pelo intérprete do texto. É dizer, a norma jurídica é produzida a partir de diferentes sentidos possíveis contidos no texto, implícita ou explicitamente.

 

Mas não é só. A norma jurídica é, ainda, extraída com esteio numa realidade histórica. A norma é produto de um dado período histórico. A cada momento histórico, portanto, surge nova norma jurídica.

 

Assim, a norma jurídica é uma produção histórica pela via da interpretação jurídica. A norma jurídica, então, varia ao longo do tempo, e é, num certo sentido, um organismo vivo que brota e se desenvolve por intermédio de uma trama de elementos que formam e conformam o convencimento do intérprete.

 

A formação da norma, a partir de um texto normativo constitucional, por exemplo, no contexto da realidade que a circunda, restou bem contextualizada pela seguinte passagem:

 

“Como outra ilustração, cabe ressaltar que não é, tampouco, possível compreender o conteúdo normativo do enunciado ao art. 5º, X, da Constituição Federal (direito à privacidade e intimidade) sem levar em conta o estágio de desenvolvimento tecnológico. Pense-se, por exemplo, que o programa normativo do preceito parece dizer que aquilo que não é visível ao público deve ser considerado do domínio privado, não podendo, em princípio, ser objeto de livre exposição por terceiros, sem ferir a privacidade de alguém. O avanço tecnológico, porém, tornou possível trazer ao olhar do público, por meio de lentes teleobjetivas, pessoas em situações que, antes, eram estritamente privadas. O desenvolvimento da técnica mudou a concepção do que é visível ao público. Essa evolução tecnológica, esse dado de fato, deve ser levado em conta para a compreensão do conteúdo normativo da proteção constitucional do direito à privacidade”. [4]

 

É, portanto, um indicativo de que a norma jurídica mostra-se em contínuo movimento.

 

Consigne-se, com efeito, que o texto normativo não se confunde com a norma jurídica. Vale, a propósito, marcar o que segue: o texto é estático; a norma jurídica, dinâmica.

 

Com isso, é fácil identificar que a discussão do tema é polarizada a partir de duas perspectivas: de um lado, o texto normativo, que se confunde com a lei, com o direito posto; d’outra banda, a norma jurídica, criada pelo intérprete, a partir do texto (ainda que carregado de variações semânticas) e da realidade particular experimentada no momento da interpretação, e não da realidade que permeou a elaboração do texto.

 

À guisa de exemplo, anota-se, como texto normativo, o art. 226, § 3º, da Carta Política de 1988, no sentido de que  “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

A rigor, trata-se de um texto que enuncia o significado jurídico da entidade familiar, limitando sua composição ao homem e à mulher.

 

A Corte Suprema, todavia, ampliou a extensão da proteção do Estado, como sabido. O Texto Constitucional, resultado da manifestação do poder constituinte originário de 1988, permanece atualmente inalterado, intacto. Mudou-se, apenas, o sentido do texto. Deu-se a construção da norma jurídica a partir do texto e da realidade social pós-moderna. O conceito de família ganhou novos contornos jurídicos. O intérprete, in caso, a Corte Suprema, produziu uma norma jurídica conformadora para a união homoafetiva, a partir do texto normativo da Constituição e considerou, para tanto, a realidade histórica afeta, e inclusive  afetiva, à interpretação da Constituição.

 

Dessume-se, pois, que interpretar consiste numa operação constitutiva, criativa (e não apenas declaratória), que tem por objetivo extrair o real significado do texto, com espeque numa realidade determinada.

 

Assim, o intérprete cria a norma jurídica aplicável ao caso em testilha, com base na multiplicidade de sentidos contidos no próprio texto e, também, na realidade fenomênica.

 

É também sabido que o texto normativo é marcado por uma variedade de opções interpretativas, o que viabiliza a construção da norma jurídica pela adoção de, pelo menos, uma via interpretativa a ser escolhida pelo hermeneuta.

 

Com efeito, não há que se falar, a nosso ver, em voluntas legis (vontade da lei).

 

A “lei”, o texto normativo, não possui vontade.  

 

Há, de fato, por assim dizer, duas vontades: uma, a vontade do legislador no que toca à produção do texto na dinâmica do debate político-legislativo; a outra, a vontade do intérprete no ato de eleição da interpretação da lei, ao atribuir significado a ela, culminando-se na produção da norma jurídica.

 

Aliás, vale reforçar que a vontade do legislador possui um valor reduzido no universo jurídico, como revela o Min. Gilmar Mendes:

 

“a prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do legislador, ou evita investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto  (Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997; Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ, 126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ, 9 set. 1988)” [5] – grifo nosso.

 

Tendo em vista as noções expostas, inafastável registrar, agora, em síntese, a lapidar lição do professor Eros Roberto Grau:

 

“Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade (..) A interpretação do direito tem caráter constitutivo — não meramente declaratório, pois — e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. (…) Interpretar/aplicar é dar concreção [=concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular” [6] – grifo nosso.

 

E, por arremate, acentua o mestre Eros Grau:

 

“Se for assim — e assim de fato é — todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impõe observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada” [7].

 

De tudo, pode-se construir a seguinte lógica de raciocínio.

 

Num primeiro momento, o operador do Direito analisa o texto em vigor, o texto normativo (Constituição, lei ou quaisquer outros atos normativos), e adota um método interpretativo possível (diante da percepção de polissemia do texto) e, em seguida, firma seu posicionamento para fins de aplicação do Direito in concreto, fazendo surgir, com isso, a norma jurídica, a norma que decide a demanda posta em juízo. Noutras palavras: a “norma de decisão”.

 

Não é outro o pensamento de Gilmar Mendes, para quem “interpreta-se um preceito para que dele se possa extrair uma norma (uma proibição, uma faculdade ou dever), e com vistas à solução de um problema prático” [8].

 

E mais:

 

 “A norma, portanto, não se confunde com o texto, isto é, com o seu enunciado, com o conjunto de símbolos linguísticos que forma o preceito. Para encontrarmos a norma, para que possamos afirmar o que o direito permite, impõe ou proíbe, é preciso descobrir o significado dos termos que compõe o texto e decifrar, assim, o seu sentido linguístico” [9].

 

É, nessa dinâmica, que se assentam os problemas relacionados à decidibilidade do Direito, já que a norma jurídica é uma “norma de decisão”, que ora se aproxima do texto normativo, ora se distancia dele, para dar conta da realidade jurídica enfrentada, o que, de algum modo, pode sugerir aparente distorção entre a decisão judicial e a “lei” em vigor.

 

A aparente distorção deve-se, sobretudo, à grande sensação de apego à postura legalista que ainda instrui a aplicação do Direito brasileiro, de forte inclinação ao sistema civil law, que prima pela tradicional e fiel observância da lei.

           

O Ministro Gilmar Mendes, num certo sentido, explica:

 

“Ocorre que, por muitas vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não de confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto” [10].

 

Cabe acentuar, neste ponto, que a problemática da decidibilidade é especialmente marcada pela adoção das “normas de decisão aditivas”, que transformam o significado original do texto.

 

Na mesma toada, registre-se:

 

“é certo que o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vetusto dogma do legislador negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais do  mundo” [11].

 

Vê-se, pois, que o constitucionalismo brasileiro do séc. XXI lança, de maneira inusitada, o grande desafio de se adaptar a outros sistemas jurídicos que conduzem à formação de uma postura político-jurídica intimamente ligada a certo distanciamento do texto normativo.

 

Encerra-se, aqui, de modo a sustentar o reconhecimento de mais um contorno que engendra a dogmática jurídica, e, talvez, a título de provocação, a identificar mais um sinal de enfraquecimento do positivismo jurídico.

 

Conclusão

 

Como visto, é possível verificar duas espécies distintas de processo de criação jurídica, uma consistente na positivação (Textos Normativos) que é simplesmente o direito positivado pelo Estado, que traça, a partir da opção político-legislativa adotada, um horizonte de possibilidades para fins de futura interpretação. E a outra espécie é a aplicação, referindo à produção de normas jurídicas que fundamentam as decisões jurídicas.

 

Assim, o operador do Direito analisa o texto em vigor, o texto normativo (Constituição, lei ou quaisquer outros atos normativos), e adota um método interpretativo possível e, em seguida, firma seu posicionamento para fins de aplicação do Direito in concreto, fazendo surgir com isso à norma jurídica, que decide a demanda posta em juízo. Noutras palavras: a “norma de decisão”.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo.  2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2009.

_________. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2010.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014.

_________. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.

Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013. 



[1] Mestre e doutorando em direito (PUC/SP)

 [2] In Tércio Sampaio Ferraz Junior. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, prefácio, XVIII.

 [3] Trecho de voto da lavra do ex- Minstro Eros Grau – Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Volume 216, p.22.

 [4] Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 84.

 [5] Trata-se de trecho contido no voto paradigmático exarado nos autos da ADPF nº 132, em 5.5.2011, p. 148.

 [6] Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, volume 216 (abril a junho de 2011), p.22.

 [7] Idem, ibid, p. 23.

 [8] Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 82.

 [9] Idem, ibid, p. 83.

 [10] Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 134.

 [11] Trata-se de voto paradigmático exarado nos autos da ADI nº 4277, p. 761-762.

Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Eliezer Pereira. Texto normativo e norma jurídica: Aproximações e distanciamentos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/texto-normativo-e-norma-juridica-aproximacoes-e-distanciamentos/ Acesso em: 18 abr. 2024