Direito Constitucional

Corrompa-se, pero no mucho, disse o Ministério Público Federal!

Muito curioso (usando de um eufemismo, óbvio) o Enunciado nº. 34 da 5ª. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão colegiado previsto na Lei Complementar nº. 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União. Dentre outras várias atribuições, cabe à Câmara “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto no caso de competência (sic) originário do Procurador-Geral.”

Diz o texto do Enunciado que “o combate à corrupção privilegiará os casos em que o prejuízo ao erário o ou enriquecimento ilícito, atualizado monetariamente, seja superior a vinte mil reais, tendo em vista os princípios da proporcionalidade, da eficiência e da utilidade. Nos casos em que o prejuízo for inferior, é admissível a promoção de arquivamento sujeita à homologação da 5ª. Câmara, ressalvadas também as situações em que, a despeito da baixa repercussão patrimonial, verifique-se a ofensa significativa a princípios ou a bens de natureza imaterial merecedores de providências sancionatórias, no campo penal e/ou da improbidade administrativa.”

Em outras palavras: o Ministério Público Federal, ao menos por um de seus órgãos colegiados, admite que o servidor público federal corrompa-se ou o particular o corrompa, desde que o valor da “propina” não ultrapasse os vinte mil reais. Até esse valor, portanto, está liberado. Isso é o que podemos chamar de seletividade às avessas!

Algumas perguntas são, a meu ver, (im)pertinentes:

1) Como ficam os cidadãos que sofreram a coação e o constrangimento moral e financeiro (e, às vezes, até físicos) por parte destes funcionários públicos federais, eles que foram extorquidos pelos agentes públicos e procuraram o Ministério Público Federal?

2) Que critério é este de moralidade pública ou de probidade administrativa que supõem ter os integrantes da 5ª. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal?

3) Como querem combater a “grande corrupção”, deixando impunes “a pequena corrupção”? As aspas são significativas, obviamente.

4) Qual a coerência em se propor as tais dez medidas anticorrupção (boa parte delas inconstitucional) se, institucionalmente, tolera-se que, por exemplo, um servidor público federal solicite ou receba R$ 19.999,99 de um comerciante para não lavrar um auto de infração? Ou não denunciar um contribuinte que oferece a mesma quantia ao funcionário público para que ele não o autue por sonegação fiscal?

5) O que dizer a um Delegado de Polícia Federal que lavrou o Auto de Prisão em Flagrante de um servidor público federal que cumpriu o seu dever, gastando dinheiro público (com diligências, etc.), tempo e, depara-se, com um pedido de arquivamento pelo Procurador da República?

Aliás, na página do Ministério Público Federal em que são apresentadas as tais medidas, afirma-se que “Info

se queremos um país livre de corrupção, precisamos nos unir. O Ministério Público Federal acredita em um Brasil mais justo, com menos corrupção e menos impunidade. É possível transformar a indignação com a corrupção em mudanças efetivas para a sociedade. Para acabar com o círculo vicioso de corrupção privada e pública, é preciso implementar mudanças sistêmicas e estruturais. Essas mudanças incluem o fim da impunidade, pois esta e a corrupção aparecem intimamente relacionadas em diversos estudos e pesquisas internacionais sobre esse problema.”[1]

 Parece-me um tanto quanto incoerente (para dizer o mínimo) que se possa acreditar “em um Brasil mais justo, com menos corrupção e menos impunidade” e, ao mesmo tempo, dar um “cheque em branco” para corruptores e corruptos “de bagatelas”. Que tipo de moralidade é essa? Claro que não estamos aqui confundindo Direito e Moral, como tantas vezes Lênio Streck vem alertando. Não![2] Tampouco somos arautos do punitivismo ou contra a aplicação do Princípio da Insignificância, muito pelo contrário.

Tampouco acredito que o Sistema Jurídico vai acabar com a corrupção (aliás, isso é de uma ingenuidade que beira a demência), mas o que eu cobro, inclusive porque sou membro do Ministério Público brasileiro é coerência e integridade institucional.

A propósito, muito interessante o que escreveu Jacinto Coutinho:

Um exemplo para os homens: suponha-se que você tem um carro velho e nele aparece, por conta de uma forte ferrugem (daquelas que furam a lataria), várias bolhas na pintura, que se não consegue tapar com adesivos. Preocupado com a situação e querendo resolver o problema, você leva o automóvel até uma Oficina e, nela, o latoeiro lhe dá uma sugestão: “Doutor, isso é coisa simples, basta dar uma lixada e passar uma demão que está resolvido!” – O carro é seu; a opção é sua; e o dinheiro também! Um exemplo para as mulheres: suponha-se que você casou com um sujeito que bebe muito porque esperava o final da festa etílica com o casamento, mas isso não ocorreu. Passados alguns anos a coisa foi ficando cada vez pior e agregado a outros problemas lhe veio uma insônia terrível. Com ela, vieram as inevitáveis olheiras. Para resolver seu problema você vai ao médico que lhe indicaram, um cirurgião plástico. Ele, porém, logo lhe diz que não tem muito para fazer mas que na clínica dele há um novo setor, de estética, no qual tem profissionais especializados na situação. Você vai a tal setor e nele é atendida. O especialista – por sinal muito capacitado – é rápido e taxativo: “Doutora, resolvo seu problema com pancake, blush e uma nova resina facial inventada nos Estados Unidos da América e, portanto, a última palavra no assunto – porque o que se faz nos EUA é sempre melhor! –, daquela que só sai com água fervendo no banho.” – O marido é seu; a olheira é sua; a opção é sua; e o dinheiro também! Os dois exemplos são suficientes para se perceber como o latoeiro e o esteticista têm uma solução – sem dúvida! –, mas elas não resolvem os problemas das pessoas, embora, de certo modo, resolva o deles, que vendem seus produtos e serviços. Assim, resolvem e não resolvem os problemas. No que resolvem, fazem-no parcialmente, isto é, parte dos problemas encontram solução. A parte, porém – sabe-se há muito – não é o todo e nele está o verdadeiro problema, aquele que se deve resolver. Assim, uma lixada e uma demão (no caso da solução do latoeiro) ou o pancake, blush e uma nova resina facial norte-americana (no caso da solução do esteticista) são expressões daquilo que pode ser legal ou ilegal mas que, sempre, enganam o freguês se, de fato, o que ele quer como resultado é outra coisa: os buracos causados pela ferrugem não vão acabar, muito menos o marido da doutora vai se curar do alcoolismo. Pode ser, porém, que as pessoas queiram se enganar, o que não é de se descartar, mormente quando estejam em situações psicologicamente complexas. Nesse ponto, a questão depende sobremaneira do vendedor que, ciente do problema, não deve oferecer como solução à parte se, para resolver o problema, precisa dar conta do todo. Eis por que, em outro cenário, algo ficou conhecido como ouro de tolo.”[3]

Ademais, o Enunciado é extremamente indeterminado, digamos assim, quando invoca os princípios da proporcionalidade, da eficiência (que eu nem sabia que era princípio) e da utilidade (tampouco). Bem, falar em princípio da proporcionalidade, neste caso, e não dizer nada é a mesma coisa. Eficiência e Processo Penal afastam-se como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber). Utilidade? Será que estão falando de uma tal condição da ação (interesse-utilidade), conto da carochinha inventado por Liebman e até hoje contado para as nossas crianças?

Enfim, talvez os integrantes da 5ª Câmara do Ministério Publico Federal devessem ler Antígona, de Sófocles, quando a filha de Édipo, desafiando o tirano Creonte, diz: “A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem.[4]

Autor: Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador-UNIFACS.



[1] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/

[2] Aliás, escreveu Jacinto Coutinho: “Claro que não estamos aqui confundindo Direito com MoralA moral é necessária, enfim; mas é outra coisa, que se não ajusta com a generalidade, razão por que cada um – como padrão – tem a sua e, sendo assim, não se presta para regular um espaço que vai – e deve ir – sempre marcado pela diferença; e, principalmente, pelo respeito à diferença.” (https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5668-MPF-As-10-medidas-contra-a-corrupcao-sao-so-ousadashttp://www.dezmedidas.mpf.mp.br/, acessado em 19 de junho de 2016).

[3]https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5668-MPF-As-10-medidas-contra-a-corrupcao-sao-so-ousadas, acessado em 19 de junho de 2016.

[4] Antígona, Sófocles, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 25.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Corrompa-se, pero no mucho, disse o Ministério Público Federal!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/corrompa-se-pero-no-mucho-disse-o-ministerio-publico-federal/ Acesso em: 16 abr. 2024