Direito Constitucional

O Direito à Demarcação das Terras Indígenas no Mato Grosso Do Sul

O Direito à Demarcação das Terras Indígenas no Mato Grosso Do Sul

 

 

Francisco das C. Lima Filho *

 

 

Inicialmente gostaria de deixar registrada a minha alegria em retornar a esta Universidade que com muita honra integrei como professor em passado relativamente recente, e do qual devo confessar, sinto saudades.

 

O convite que me foi formulado pelos organizadores deste Evento, através dos professores Rosely Stefanes e Carlos Pacheco, certamente se deve à consideração que tenho certeza todos aqui nesta casa me têm o que muito honra, e não a qualquer conhecimento sobre a questão indígena que tenho certeza não disponho.    

 

Também se faz necessário dizer que aqui estou não na condição magistrado ou de quem é estudioso do tema proposto – Demarcação das terras indígenas – mas apenas como alguém que tem estima pela causa indígena e que, como magistrado nesta cidade e região por mais de dez anos, teve contato muito próximo com essa questão.

 

De fato, quando por força de meu ofício, realizando audiências em aldeias entre trabalhadores indígenas e empresas de produção de açúcar e álcool, pude constatar in loco, os múltiplos problemas que a ausência de cumprimento do dever constitucional de demarcação das terras destinadas pela Carta de 1988 a esses povos tem causado.

 

Desse modo, o que vou tentar dizer neste espaço democrático de discussão é apenas aquilo que sinto enquanto cidadão simpatizante da causa indígena.

 

O tema Demarcação das Terras Indígenas se encontra na pauta e tem despertado muita polêmica e incompreensões talvez até mesmo pela ausência de um maior debate a seu respeito.

 

Assim, me parece baste oportuna a iniciativa dos organizadores deste Evento visando debater com a comunidade essa tormentosa questão, especialmente quando se tem aqui em nossa companhia e nos honrar e ensinar entre outras, uma das maiores autoridades no estudo da questão indígena, o professor Carlos Frederico Marés, a quem rendo meu respeito e homenagem.

 

Mas como fui convidado a dizer alguma coisa sobre o tema, e embora não tenha o conhecimento que às vezes, por consideração os amigos me atribuem, vale repetir, tentarei me desincumbir da tarefa.

 

Pois bem, como se sabe o art. 22 da Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o denominado Estatuto do Índio garantiu aos indígenas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

 

Esse direito foi elevado à condição de garantia constitucional por força do art. 231, §§ 1º e 2º do Texto de 1988 que, no art. 67 do ADCT fixou o prazo de cinco anos para que a União concluísse o processo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.

 

Passados mais de vinte anos da promulgação da Carta da República, a determinação do constituinte ainda não se fez cumprida, e agora, quando são sinalizadas algumas providências concretas, inclusive pela Corte Suprema, visando tornar efetiva a garantia constitucional alguns setores da sociedade, inclusive em certos momentos com apoio governantes que têm o dever cumprir e fazer cumprir a Constituição desencadeiam um movimento de resistência que está tomando rumos bastante preocupantes, tendo em algumas regiões chegado até mesmo à violência.

 

Essa postura que, além de demonstrar a total ausência de estima pela Constituição, não parece acertada, na medida em que, em um Estado Democrático de Direito, com todas as instituições em pleno funcionamento, com uma Constituição em plena vigência, parece inconcebível que haja resistência contra o cumprimento da Lei Maior.

 

Vale lembrar que mesmo após a histórica e recente decisão do Excelso Supremo Tribunal Federal reafirmando o direito previsto no art. 231 da Carta de 1988, embora com o estabelecimento de critérios para as demarcações impondo até mesmo várias e discutíveis limitações ao próprio direito reconhecido, a mídia vem noticiando que possíveis afetados estariam planejando estratégias para resistir ao que foi decidido, inclusive aqui em Mato Grosso do Sul onde a questão está em plena discussão.

 

Se é correto afirmar que aqueles que, de boa-fé ocupam as terras consideradas indígenas tenham o direito de defender seus eventuais direitos através de medidas judiciais que lhe são postas à disposição pelo próprio ordenamento jurídico para buscar prévia e justamente a indenização que lhes pareça devida ou até mesmo para impedir a própria demarcação, quando comprovado que a área que se pretende demarcar não se enquadra no conceito constitucional de terra tradicionalmente ocupada por indígena[1], não é menos verdadeiro afirmar que não poderão fazê-lo por intermédio da intimidação ou da violência como vem acontecendo em algumas regiões.

 

O direito de os indígenas verem demarcadas suas terras está previsto não apenas no da Carta Suprema, mas também encontra guarida em Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário e que mereceram aprovação por parte do Congresso Nacional.

 

Com efeito, de acordo com o art. 14, da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, aprovada pelo Congresso Nacional e colocada em vigência no âmbito nacional por força do Decreto 5.051, de 19.04.04:

 

“1. Deverão ser reconhecidos os direitos de propriedade e posse desses povos sobre as terras que ocupam tradicionalmente. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser tomadas as medidas para salvaguardar o direito desses povos de usar terras não-ocupadas exclusivamente por eles, mas às quais tenham tradicionalmente tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse sentido, atenção especial de ser dispensada à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão tomar as providências necessárias para definir as terras que esses povos ocupam tradicionalmente, e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.

3. Procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional deverão ser instituídos para decidir sobre as reivindicações relativas a terras, formulados por esses povos”.

 

Como se pode vê, a referida normativa internacional vai além do preceito constitucional, porquanto não se limita a garantir a posse dos povos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, mas o próprio direito de propriedade.

 

Para o Excelso Supremo Tribunal parece não ser possível o reconhecimento da propriedade dos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, pois conforme posto de forma expressa no voto o Ministro Carlos Ayres de Brito no caso Raposa Serra do Sol,

‘todas “as terras indígenas” versadas pela nossa Constituição fazem parte de um território estatal brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. Não o Direito emanado de um outro Estado soberano, tampouco o de qualquer organismo internacional, a não ser mediante convenção ou tratado que tenha por fundamento de validade a Constituição brasileira de 1988”.

 

Entretanto, e em que pese o entendimento acima mencionado e o disposto no art. 20, inciso XI, da Carta da República, não parece desarrazoado afirmar que se tratando a Convenção 169 da OIT de verdadeiro tratado internacional sobre direitos fundamentais dos povos indígenas, posto em vigência na ordem jurídica nacional por força do procedimento da ratificação pelo Governo Brasileiro e aprovação pelo Congresso Nacional, nos termos previstos na própria Lei Fundamental e “promulgada” pelo já citado Decreto 5.051, de 19.04.04, firmado pelo Presidente da República recomendando que deva ser cumprida tal como nela está expresso, afirmar-se, pelo menos em tese não existir nenhum impedimento que a partir de sua vigência, pode possa reconhecer aos indígenas o direito não apenas à posse, mas também a propriedade das terras por eles tradicionalmente ocupadas, respeitados, é claro e todas as hipóteses, os princípios previstos na Lei Maior quanto à soberania nacional[2].

 

De outro lado, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13.09.2007 igualmente subscrita pelo Brasil, reconhece o direito desses povos às terras por eles tradicionalmente ocupadas, estabelecendo em seu art. 26 que:

 

“1. Os povos indígenas têm direito as terras, territórios e recursos que tradicionalmente têm possuído ocupados ou de outra forma ocupado ou adquirido.

2. Os povos indígenas têm direitos a possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional, ou outra forma tradicional de ocupação ou utilização, assim como aqueles que tenham adquirido de outra forma.

3. Os Estados assegurarão o reconhecimento e a proteção jurídica dessas terras, territórios e recursos. O referido reconhecimento respeitará devidamente os costumes, as tradições e os sistemas de usufruto da terra dos povos indígenas”.

 

Assim, e ao contrário do que alguns menos avisados insistem em afirmar, inclusive aqui no Estado de Mato Grosso do Sul, mesmo depois da decisão do Excelso Supremo Tribunal Federal, a garantia de demarcação das terras indígenas tem assento não apenas no Texto da Carta da República, mas também em Documentos firmados pelo Brasil no âmbito do internacional, constituindo verdadeiros compromissos ou deveres que não podem ser simplesmente colocados de lado como até então vinha acontecendo.

 

Nesse novo contexto histórico, penso que os indígenas podem se valer da garantia constitucional e que também está prevista nos mencionados Documentos Internacionais, para reivindicar judicialmente da União a demarcação de suas terras, sob pena de responsabilização desta pelos danos que a omissão possa lhes causar, inclusive os de ordem moral.

 

Ademais, têm também a faculdade ingresso em juízo, individual ou coletivamente com as ações contra os atuais possuidores dessas terras para reivindicar a posse deles, cujo direito de uso exclusivo lhes foi reconhecido pelo Texto Maior (art. 231, § 2º) e pela normativa internacional integrada ao ordenamento jurídico nacional com dignidade de norma constitucional, como acima mencionado. Aliás,

 

Cabe ainda o Ministério Público, na condição de substituto processual, promover essas ações, nos termos da previsão contida no art. 129, V, da Carta Suprema, incumbindo ao órgão tutor adotar todas as providências necessárias para, administrativamente concretizar o processo demarcatório como, aliás, está expresso na decisão proferida pelo Col. STF no caso Raposa Serra do Sol.

 

Não me parece desarrazoado, ainda, que o Ministério Público possa e até mesmo deva promover a ação de indenização por dano moral coletivo em face dos responsáveis pela implementação da garantia constitucional de demarcação dessas terras e contra os atuais ocupantes, na medida em que a omissão está causando a toda comunidade indígena lesão não apenas material, mas também moral.

 

De fato, vem sendo negado aos indígenas direito que lhes foi garantido constitucionalmente há anos, em nome de interesses econômicos ou mesmo políticos, em manifesta discriminação a esses povos sendo, portanto, evidente não apenas o dano moral individual de cada indígena, mas também o coletivo, pois além de atingir a toda a coletividade indígena, constitui evidente e inaceitável discriminação a esses povos em manifesta agressão ao Texto Supremo e aos Tratados e Convenções Internacionais sobre os direitos humanos subscritos pelo Brasil.

 

Nos termos do art. 28 da Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas:

 

“1. Os povos indígenas têm direito à reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando isso não for possível, uma indenização justa, imparcial e equitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento”.

 

Assim, a omissão discriminatória de demarcação das terras indígenas caracteriza, a meu sentir, injusta e intolerável agressão aos legítimos interesses titularizados pela coletividade indígena, os quais possuem natureza patrimonial e extrapatrimonial refletindo valores e bens fundamentais para a sociedade, previstos e garantidos pelo Texto Supremo[3].

 

Desse modo, têm esses povos direito não apenas a demarcação de suas terras, mas também a “uma indenização justa, imparcial e equitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente ou de outra forma ocupavam ou utilizavam, e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu consentimento’, indenização esta devida por aqueles que ocupam essas terras de forma indevida e pelo Estado que as alienou inconstitucionalmente.

 

Entretanto, não se pode esquecer que os conflitos sobre as terras indígenas, que estão desaguando no Judiciário, inclusive aqui neste Estado, são conflitos histórica, social e culturalmente diferenciados dos demais conflitos sociais.

 

De fato, não há como perder de vista que a terra – terra-mãe do aimará, da área andina – não é apenas um meio de produção, de geração de riquezas a qualquer custo. Ao contrário, é um lugar da memória coletiva do povo, da sua história, do seu lazer e trabalho, onde celebra os seus rituais de vida e morte, especialmente de vida.

 

Como adverte Alcida Rita Ramos[4]:

 

“Para os povos indígenas, a terra é muito mais do que simples meio de subsistência. Ela representa o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas um recurso natural – e tão importante que este – é um recurso sócio-cultural”.

 

Desse modo, o constituinte de 1988 ao enfocar as terras indígenas como “necessárias a sua reprodução tanto física quanto cultural segundo seus usos, costumes e tradições”, viu na reprodução cultural uma forma de permanência da identidade étnica, que como cultura não é estática. Por conseguinte, eventuais transformações do viver e conviver das comunidades, não descaracteriza a própria identidade cultural[5].

 

O mero contacto ou a interrelação dos povos indígenas com a comunhão nacional, por absoluta necessidade de sobrevivência, ao contrário do que afirmam alguns, inclusive aqui neste valoroso Estado de Mato Grosso do Sul, não faz com que percam sua identidade étnica/cultural. Não se é indígena porque habita uma aldeia ou se deixa de sê-lo porque reside na cidade, usa relógio, calça Jens e sabe falar português, evidentemente.

 

Desse modo, a questão relativa à terra é o ponto fundamental dos direitos indígenas constitucionalmente garantidos, como sobrevivência cultural e até mesmo física. Por isso mesmo o Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980, em “mensagem aos índios”, lembrou que sendo eles

 

 “os primeiros habitantes desta terra, obtendo sobre ela um particular jus ao longo das gerações, seja reconhecido o direito de habitá-la na paz e na serenidade, sem terror – verdadeiro pesadelo – de serem desalojados em beneficio de outrem, mas seguros de um espaço vital que será a base, não somente para a sua sobrevivência, mas para preservação de sua identidade como grupo humano, como um povo”[6].

 

Nessa perspectiva, os povos indígenas, as sociedades indígenas autônomas, com sua cultura, distinguem-se da sociedade nacional especialmente pela questão da terra. Pela origem da sua apropriação (posse primária, original, natural) e não pelo título de compra e venda (como equivocadamente afirmam alguns desinformado), pelo uso prático (subsistência), estrutural (propriedade coletiva) e pela visão religiosa (terra sagrada), o que significa afirmar que os conflitos ligados à demarcação das terras indígenas devem receber um tratamento diferenciado levando-se em conta os valores antropológicos e culturais neles envolvidos, o que certamente não está sendo visto por alguns que, não raras vezes, se valem da letra fria da lei para lhe dá solução o que muitas vezes apenas tem o condão de acirrá-los.

 

Já se disse, muitas vezes que a terra para os povos indígenas, por representar um dom divino para todos, é um direito natural de natureza coletiva. Por isso, dela não se consideram proprietários, mas meros  posseiros coletivos na criação divina, ao contrário dos produtores rurais que a possuem em razão de titulação, em regra, decorrente do contrato de compra e venda.

 

Na visão dos povos indígenas, na questão da terra convergem várias outras questões parciais  ligadas à sua libertação e resistência, ou seja, as questões políticas, sociais, econômicas e religiosas ou espirituais. Para eles, a luta pela terra é um lugar privilegiado de uma evangelização integral e de uma solidariedade entre todos os oprimidos.

 

Assim, a concretização da promessa do constituinte de 1988 de demarcar as terras indígenas tem um significado que vai muito além da mera demarcação tão contestada neste Estado como, aliás, chamaram atenção praticamente todos os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no já mencionado julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Por conseguinte, tem de ser melhor explicada e entendida.

 

A mera invocação do direito de propriedade, decorrente do contrato de compra e venda ou da necessidade de se garantir o desenvolvimento da economia não pode constituir, por si só, fator impeditivo à concretização da vontade soberana do constituinte originário de 1988.

 

Ademais, vale lembrar que a posse das terras indígenas por aqueles que receberam do próprio Estado um título, mesmo de boa-fé – e muitos deles se encontram nessa situação, é necessário e justo reconhecer – não gera direito a usucapião ou de retenção da propriedade como, aliás, acaba de ser confirmado pela decisão do Excelso Supremo Tribunal Federal que, ao listar os critérios para o processo demarcatório[7], nos itens 14 e 18, fixou que:

14 – É vedado negócio jurídico relacionado a terras indígenas, assim como qualquer ato que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos indígenas;

18 – Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis”.

 

Nesse passo, impende afirmar que se foram desapossados das terras a eles destinadas de forma exclusiva, o ‘justo título’ tantas vezes invocado pelos atuais ocupantes dessas terras, não serve para descaracterizar a área como terra indígena de ocupação tradicional, mas apenas, demonstra a boa-fé para que o Estado os indenize pelo valor da terra e das benfeitorias, em que pese os termos do § 4º, do art. 231, da Constituição[8].

 

E assim entendo porque me parece não apenas razoável, mas justa a pretensão dos produtores rurais de Mato Grosso Sul quanto ao recebimento de indenização pela própria terra e não apenas das benfeitorias.

 

Com efeito, ao adquirirem a terra do próprio Estado através de justo título e de boa-fé, não é razoável nem eticamente justificável que após anos sejam desapossados por esse mesmo Estado em quem acreditaram, ainda que o negócio padeça do vício de nulidade absoluta, recebendo apenas pelas benfeitorias. O direito, ensina a boa doutrina, também é informado por princípios ético-morais e não exaure na letra da norma positivada.

 

Se o Estado, mesmo violando a lei e a Constituição lhes vendeu essas áreas com outorga de título hábil devidamente transcrito no Registro Imobiliário, não pode agora, valendo-se da ilegalidade e inconstitucionalidade por ele mesmo cometida simplesmente indenizar pela pelas benfeitorias.

 

O dever de moralidade e de boa-fé, previstos respectivamente nos arts. 37 da Carta de 1988 e 422 do Código Civil amparam a pretensão de serem indenizados pela terra além das benfeitorias, em que pese a invalidade do ato de alienação, vale repetir, na medida em que as terras não poderiam ser alienadas.

 

Como se vê, é preciso que todos os envolvidos nesse conflito tenham essa visão, especialmente aqueles que representam os interesses dos indígenas e dos produtores rurais passando, é claro, pelo próprio Judiciário, sob pena de jamais se conseguir a tão almejada concretização das promessas do constituinte, que a todas às luzes não pode implicar em injustiça a nenhuma das partes envolvidas.

 

É necessário que haja a compreensão de que nesses conflitos existe a instauração de uma nova lógica nas relações dos homens entre si e com a natureza, relações essas que não podem permitir como de fato não permitem fazer da terra-mãe de todos uma escrava, mera fonte de geração de riqueza a qualquer custo em benefício de alguns, ou apenas daqueles que dispõe de um título de propriedade, outorgado ilegitimamente por quem seque era dono como no caso das terras indígenas aqui no Mato Grosso do Sul.  

 

Como lembra Lásaro Moreira da Silva[9], o Texto Constitucional impõe à União o dever de proteger os direitos indígenas para que eles possam continuar existindo com seus costumes, línguas e tradições, reconhecendo-lhes sua organização social, admitindo a existência no Brasil de povos culturalmente diferenciados e autônomos, “porque a vontade do texto constitucional não é de considerar a igualdade formal dos índios, abandonando-os à própria sorte na selva capitalista, em que imperam a ambição desenfreada, a busca da lucratividade a qualquer custo”, mas de protegê-los respeitando as suas normas e os seus valores culturais o que, como lembrou o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, não tem sido cumprido, pois o Estado que é o tutor dos indígenas os relegou, pelo menos até agora, “à própria sorte”.

 

Precisamos debater e refletir sobre essa questão como estamos fazendo agora neste espaço, de forma que não se viole os direitos daqueles que, de boa-fé são possuidores de títulos outorgados pelo próprio Estado e ajudaram com o seu trabalho a construir o desenvolvimento do País e deste Estado, inclusive proporcionando trabalho aos próprios indígenas e que, portanto, também têm direitos que precisam ser respeitados, principalmente o direito a uma justa e prévia indenização não apenas das benfeitorias, mas  também da própria terra, e ao mesmo tempo, não se deixando de dá efetividade à garantia constitucional procedendo-se a demarcação as terras verdadeiramente indígenas de forma que, como nos disse mais de uma vez em suas obras, Carlos Frederico Marés, os povos indígenas possam ter o direito de ter direitos.

 

Agradeço mais uma vez aos organizadores deste Evento, especialmente à Professora Rosely Estafanes pelo honoroso convite e pela oportunidade de falar sobre um tema que devo confessar, me apaixonei desde o primeiro momento em que cheguei a este acolhedor Estado de Mato Grosso do Sul e em especial a esta linda Dourados que, além de me receber de braços abertos, me presenteou venturosamente com três lindos e amados netos.

 

Muito obrigado a todos pela paciência de me ouvirem[10].

 

 

* Desembargador do TRT  da 24ª Região. Diretor da Escola da Magistratura do TRT da 24ª Região. Mestre e doutorando em Direito Social pela Universidad Castilla-la Mancha (Espanha). Mestre em Direito pela UNB. Professor na Unigran em Dourados – MS.

 

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[1] Podem ser entendidas, à luz do estabelecido no § 1º, do art. 231, da Carta de 1988 por terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos e costumes. Daí a importância de que se reveste a efetiva demarcação dessas terras para os povos indígenas, direito garantido pelo Texto Supremo, mas ainda infelizmente não compreendido pela sociedade dominante.

[2] Aliás, sendo o Brasil um dos integrantes da OIT, está obrigado a respeitar a declaração de princípios dessa Organização internacional independentemente de ratificação de suas Convenções, entre eles o de respeitar os direitos fundamentais dos trabalhadores, aí incluídos por óbvias razões, trabalhadores indígenas, cuja concretização, todos sabem, passa necessária e inexoravelmente, pela demarcação de suas terras, espaço vital para a sobrevivência econômica, física, cultural e espiritual.

[3] De acordo com o pensamento de Xisto Tiago de Medeiros Neto, o dano moral coletivo corresponde à lesão injusta e intolerável a interesses ou direitos titularizados pela coletividade – considerada em seu todo ou qualquer de suas expressões – grupos, classes ou categorias de pessoas -, os quais possuem natureza extrapatrimonial, refletindo valores e bens fundamentais para a sociedade. In: MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo9: LTr, 2007, p. 137.

[4] RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática, 1986, p. 37.

[5] JODY BARBIERI, Samia Borges. Os direitos constitucionais dos índios e o direito à diferença, face ao princípio da dignidade da pessoa humana. Coimbra: Almedina, 2008, p. 109.

[6] Pronunciamento do Papa no Brasil. CNBB. São Paulo: Loyola, 1980, p. 265-266.

[7] Foram estabelecidos 19 critérios que definem o processo demarcatório da reserva Raposa/Serra do Sol e que deverão  orientar outras ações de demarcação das terras indígenas. São os seguintes:.

1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição);
2 – O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;
3 – O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e das riquezas naturais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;
4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;
5 – O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional, à instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai. É o livre transito das Forças Armadas e o resguardo das fronteiras;
6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;
8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação, ou seja uma dupla afetação — ambiental e indígena– fica sob supervisão e responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
9 – O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, ouvidas as comunidades indígenas –levando em conta usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;
10 – O trânsito de visitantes e pesquisadores não índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;
12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;
13 – A cobrança (de pedágios) de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;
14 – É vedado negócio jurídico relacionado a terras indígenas, assim como qualquer ato que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos indígenas;
15 – É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;
16 – Os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, 16, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;
17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada. Se for para a Raposa/Serra do Sol, a medida é válida, mas para outras reservas, o tema deve ser submetido a discussões jurídicas;
18 – Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis;
19 – Assegurada a efetiva participação de todos os entes da Federação.

[8] MOREIRA DA SILVA, LÁSARO. Reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre suas terras tradicionais na Constituição Federal de 1988 e a extensão do conceito de terras indígenas tradicionalmente ocupadas. In: Revista UNIGRAN. Dourados: v. 6, n. 11, jan./jul. 2004, p. 139-152.

[9] MOREIRA DA SILVA, Lásaro. O modelo integracionista de tutela indígena e sua incompatibilidade com a Constituição. In: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Org.). Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para Solidariedade Emancipatória. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 367-373. 

 

[10] Palestra proferida no Seminário “ESTATUTO DOS POVOS INDIGENAS”, em 27.03.09, na Universidade do Estado de Mato Grosso do Sul – UEMS, em Dourados – MS.

Como citar e referenciar este artigo:
, Francisco das C. Lima Filho. O Direito à Demarcação das Terras Indígenas no Mato Grosso Do Sul. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/o-direito-a-demarcacao-das-terras-indigenas-no-mato-grosso-do-sul/ Acesso em: 28 mar. 2024