Direito Constitucional

A Ética do Exame de Ordem

A Ética do Exame de Ordem

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

01.08.2006

 

 

 

          SUMÁRIO: 1. O projeto do Senador Gilvam Borges; 2. A reação da OAB; 3. Ética e desonestidade; 4. Duas sugestões práticas: o vestibular dos políticos e o exame de ordem dos presidiários;  5. O crime de incentivo ao estelionato; 6. O Editorial do Jornal do Brasil e a matéria da Revista Veja; 7. Os argumentos jurídicos contrários ao Exame; 7.1. O princípio constitucional da isonomia; 7.2. A inconstitucionalidade formal; 7.3. A inconstitucionalidade material; 8. A plasticidade ética dos advogados; 9. Considerações finais.

 

 

          1. O Projeto do Senador Gilvam Borges

 

          O Senador Gilvam Borges, do PMDB/AP, apresentou, recentemente, um projeto de lei, de nº 186/06, destinado a abolir a exigência do Exame de Ordem, para que os bacharéis em Direito possam obter a sua inscrição na OAB, indispensável ao exercício da advocacia.  Já existem diversos outros projetos, no Congresso Nacional, que têm o mesmo objetivo, porque milhares de bacharéis, em todo o Brasil, estão sendo impedidos de trabalhar, pelo fato de não terem sido aprovados nesse Exame, que a cada ano aumenta os seus índices de reprovação. Assim, em São Paulo, por exemplo, o último Exame de Ordem reprovou, aproximadamente, vinte mil bacharéis, ou seja, quase 90% dos candidatos.

 

          Na justificativa do projeto, o Senador lembrou que a categoria dos bacharéis em Direito é a única, no Brasil, que é obrigada a se submeter a uma segunda avaliação, através desse Exame, e que é inaceitável que uma única prova possa substituir todas as avaliações efetuadas durante os cinco anos da formação acadêmica. Disse, também, que o Exame de Ordem é um “instrumento de controle injusto, despropositado e inconstitucional”.

 

 

          2. A reação da OAB

 

          Esse projeto, como não poderia deixar de ser, provocou polêmica e, também, a reação da OAB, através de seu Presidente Nacional, Dr. Roberto Busato, que imediatamente o qualificou como “inconseqüente” e “incentivo ao estelionato” e disse que ele “atinge a sociedade como um todo num momento em que se exige uma advocacia ética, face às denúncias contra maus profissionais nessa quadra de turbulência da vida brasileira”.

 

(Fonte: Jornal do Dia, Macapá, 18.06.06, disponível na Internet em: http://jdia.leiaonline.com.br/index.pas?codmat=14961&pub=1)

 

          Mas o ilustre Presidente da OAB disse, ainda, estranhamente, que:

 

     (1) “a entidade, através do Exame de Ordem, busca aquilatar o conhecimento ético dos que pretendem advogar.”

 

(2) “a OAB reformulou recentemente, por meio de um provimento, as regras sobre o Exame de Ordem, aumentando o número das questões éticas para os bacharéis submetidos a essa prova.”

 

(3) “diante dessas questões que são colocadas no Exame, é que a OAB pode aferir a qualidade dos conhecimentos do ensino que recebeu o profissional e atestar à sociedade que aqueles que pretendem advogar são merecedores da confiança dos brasileiros.”

 

(4) “o projeto de Gilvam incentiva também um estelionato em relação à sociedade, que assim não conseguirá encontrar um advogado melhor dotado de princípios éticos.”

 

(5) “Trata-se de um projeto eleitoreiro, apenas para incentivar o estelionato que ocorre com o jovem brasileiro, que sofre com o mau estudo jurídico no País.”

 

 (6) “É bom que os políticos decentes desse país não procurem transformar o exame de ordem em uma panacéia e, sem qualquer conhecimento cientifico, busquem seu extermínio.”

 

          Analisando essas declarações, verifica-se que o Dr. Busato afirmou, em síntese:

          (a) o Exame de Ordem serve para avaliar a ética dos bacharéis em Direito, impedindo que os desonestos exerçam a advocacia.

 

          (b) quem se opõe ao Exame de Ordem não tem decência e pratica o crime de incentivo ao estelionato.

 

 

          3. Ética e desonestidade

 

          É muito interessante ressaltar a primeira afirmativa: o Presidente da OAB disse que o estudo do Código de Ética serve para transformar os bacharéis em Direito, sob o aspecto ético. Ou seja: quem for aprovado no Exame de Ordem, respondendo corretamente às questões sobre o Código de Ética, receberá, da OAB, um diploma de honesto e “a sociedade conseguirá encontrar um advogado melhor dotado de princípios éticos.”

 

          De acordo com o Dr. Busato, exatamente neste momento em que as denúncias de corrupção, envolvendo advogados, exigem uma advocacia ética, a OAB se preocupou em aumentar o número de questões referentes ao Código de Ética, em seu Exame de Ordem, para poder “atestar à sociedade que aqueles que pretendem advogar são merecedores da confiança dos brasileiros”. Portanto, a OAB poderá garantir, de acordo com essas declarações, que os aprovados em seu Exame de Ordem são honestos, porque estudaram, ou decoraram o Código de Ética.

 

          É também muito interessante verificar que o Dr. Busato mudou, recentemente, de opinião, a esse respeito, porque logo no primeiro parágrafo do artigo “Ética nas Urnas” (O Globo, 13.09.2004), escrito em parceria com D. Geraldo Majella Agnelo, consta que: “Ética, tal como liberdade, é princípio uno e indivisível, insusceptível de relativização ou manipulação. Ou se tem ou não se tem. Na política brasileira, o clamor por ética remonta aos primórdios da formação nacional e, no entanto, ainda hoje soa a muitos como utopia, já que de escassa presença no meio.” (os grifos não são do original)

 

Portanto, há menos de dois anos, o Dr. Busato dizia que “Ou se tem ou não se tem (ética).” Dizia, também, que na política brasileira existe uma “escassa presença de ética”.

 

          No entanto, hoje, em relação ao Exame de Ordem, a julgar pelas declarações acima transcritas, reformulando os seus conceitos, o Dr. Busato já não acredita, mais, que a ética não possa ser manipulada e que “Ou se tem ou não se tem”. Agora, ele já acredita que o simples fato de estudar o Código de Ética da OAB é capaz de transformar em honesta uma pessoa que, antes, era desonesta.

 

 

          4. Duas sugestões práticas: o vestibular dos políticos e o exame de ordem dos presidiários

 

          Evidentemente, uma outra conclusão, muito prática, também seria possível: se o Dr. Busato disse, naquele artigo, que os políticos brasileiros, em sua maioria, são desprovidos de ética, e disse, também, agora, que o simples estudo de um Código de Ética, pelos bacharéis em Direito, é capaz de transformar em pessoas honestas quem é desprovido de princípios éticos, bastaria que os nossos políticos, a partir de agora, fossem obrigados a estudar um Código de Ética. A solução mágica para a falta de ética na política brasileira seria, com certeza, a implantação de uma espécie de vestibular, como pré-requisito para os candidatos a todos os cargos políticos. Quem fosse aprovado nesse Exame, respondendo a todas as questões sobre ética, poderia ser eleito, tranqüilamente, pelo povo, porque não poderia ser desonesto. Com uma solução tão simples, quase todos os nossos problemas estariam resolvidos!

 

          Como por um passe de mágica, tudo seria muito diferente. Nunca mais teríamos caixa dois, mensalão, sanguessugas, máfia das ambulâncias, etc. O mais difícil é entender o porquê de nunca se ter imaginado, antes, que uma solução tão simples e eficiente seria possível!

 

          Outra aplicação prática, muito interessante, dessa descoberta científica, do ilustre Presidente da OAB, seria a implantação de cursos de Direito Penal, em todos os presídios brasileiros. Com isso, todos os detentos seriam obrigados a estudar Direito Penal. Evidentemente, a OAB poderia celebrar – o termo é bem mais sugestivo do que, simplesmente, fazer ou assinar – convênios com a União e com os Estados, para a realização desses cursos e para a aplicação das provas de um Exame de Ordem, versando exclusivamente sobre Direito Penal. Os detentos aprovados, logicamente, poderiam ser libertados, porque nunca mais voltariam a delinqüir.

 

          Essa providência, tão simples, seria capaz de solucionar, de uma só vez, todos os nossos problemas, referentes à criminalidade, à superlotação dos presídios e à falta de segurança. Afinal de contas, se o bacharel em Direito que decora um Código de Ética passa a ser honesto, também um bandido que estude o Código Penal se transformará, certamente, em um homem de bem.

 

 

          5. O crime de incentivo ao estelionato

 

          Mas o Dr. Busato, não satisfeito em dizer que o Exame de Ordem é capaz de avaliar a ética dos bacharéis em Direito, impedindo que os desonestos exerçam a advocacia, afirmou, também, com toda a sua autoridade de Presidente da OAB, que o projeto do Senador Gilvam Borges é um incentivo ao estelionato, resultante do “mau estudo jurídico no País” e que “é bom que os políticos decentes desse (deste?) país não procurem transformar o exame de ordem em uma panacéia e, sem qualquer conhecimento científico, busquem seu extermínio.”

 

          É fácil concluir, pela simples leitura dessas declarações, que o Dr. Busato entende que o político que se opõe ao Exame de Ordem não tem decência e pratica o crime de incentivo ao estelionato. Não haveria razão para imaginar, também, que esse crime não poderia ser praticado por qualquer pessoa que escrevesse um simples artigo, como este, dizendo que esse Exame é inconstitucional, ou até mesmo, talvez, por um magistrado, que julgasse procedente uma ação contra o Exame de Ordem. Da mesma forma, tudo indica que, na opinião do Presidente da OAB, a crítica ao Exame de Ordem, por quem quer que seja, denota falta de decência.

 

          Pode-se concluir, também, com muita propriedade, que o Dr. Busato entende que são estelionatários os dirigentes e os professores dos “maus cursos jurídicos”, que enganam os estudantes, “induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” (Código Penal, art. 171), assim como os bacharéis “despreparados” que pretendem ingressar na OAB, para depois “obterem vantagens ilícitas, em prejuízo alheio…”

 

 

          6. O Editorial do Jornal do Brasil e a matéria da Revista Veja

 

          O Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, publicou, em 08.07.2006, um Editorial intitulado “Desastre e Relevo do Exame da OAB” (publicado na página da OAB Federal, em: http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=7418), dizendo, entre outras coisas, que o projeto do Senador Gilvam Borges – “um obscuro senador do Amapá” -, “parece destinado à cesta do lixo” e que o Exame de Ordem é indispensável, porque serve para peneirar, “entre as dezenas de milhares de antigos alunos de Faculdades de Direito, os que têm condições de exercer a profissão. É graças a isso que se consegue evitar a entrada de incompetentes e despreparados no mercado de trabalho”. Disse, ainda, que o baixo índice de aprovação no Exame de Ordem “é causado, salta aos olhos, pela expansão das faculdades sem condições para ministrar ensino digno desse nome” e que as faculdades privadas se transformaram em uma verdadeira “mina de ouro”. Cabe à OAB, com o seu Exame de Ordem, “zelar pelo nível”, defendendo “uma profissão estratégica para a democracia”.

          A Revista Veja, de 24.07.2006, publicou a matéria “Exame da OAB – A fórmula dos aprovados”, assinada pela jornalista Monica Weinberg, com uma argumentação semelhante, em defesa do Exame de Ordem, procurando demonstrar que ele é necessário, devido à mercantilização do ensino. Enfim, o mesmo e único discurso que costuma ser externado pelos dirigentes da OAB e que esconde, na verdade, a sua total impossibilidade de contestar, juridicamente, os inúmeros, sérios e densos argumentos contrários ao Exame de Ordem da OAB.

 

Aliás, a grande imprensa costuma publicar, apenas, a opinião dos dirigentes da OAB, que defendem o Exame de Ordem, mas não abre o mesmo espaço para um debate imparcial e para que a opinião pública seja corretamente informada. A imprensa, para manter o respeito à imparcialidade e à veracidade das informações jornalísticas, essencial em um regime democrático e republicano, deveria manter, ao contrário, um posicionamento independente, sem privilegiar o discurso oficial da OAB, e sem se importar com a opinião ou com os interesses dos eventuais detentores do Poder.

 

Não se pode esquecer que existem centenas de milhares de bacharéis em Direito que estão sendo impedidos de trabalhar, em decorrência desse Exame inconstitucional, que se transformou em verdadeiro instrumento de exclusão social, atendendo apenas aos interesses corporativos da OAB. Não se pode esquecer, também, que muitos desses bacharéis, evidentemente, por não possuírem a carteira da Ordem, estão sendo forçados a trabalhar, na advocacia, irregularmente, em troca de salário vil. São aqueles que se encontram no chamado “limbo”: não são mais estagiários, mas também não são, ainda, advogados.

 

Para piorar, ainda mais, a situação dos bacharéis reprovados no Exame de Ordem, uma recente decisão do Conselho Nacional de Justiça proibiu que seja contado como de prática jurídica, exigida como pré-requisito para os concursos públicos da magistratura, o tempo do estágio anterior à colação de grau do bacharel em Direito. Dessa maneira, em breve, se a prática jurídica passar a ser exigida para todos os cargos, estaremos em um sério dilema: quem não for aprovado no Exame de Ordem estará impedido de se submeter a qualquer concurso da área jurídica.

 

 

          7. Os argumentos jurídicos contrários ao Exame

 

          O Dr. Busato, em sua manifestação contrária ao projeto do Senador Gilvam Borges, disse, textualmente, que: “É bom que os políticos decentes desse  (deste?) país não procurem transformar o exame de ordem em uma panacéia e, sem qualquer conhecimento científico, busquem seu extermínio.”

 

          Parece evidente que o Dr. Busato está afirmando que o referido projeto não tem embasamento científico e que, “a contrario sensu”, os dirigentes da OAB que defendem o Exame de Ordem o possuem.

 

          No entanto, isso não corresponde à verdade, evidentemente, porque os defensores do Exame de Ordem dizem, apenas, que ele é necessário, devido à proliferação de cursos jurídicos de baixa qualidade. Assim, tendo em vista que o MEC não desempenha corretamente as suas atribuições, a Ordem teria sido obrigada a criar esse Exame, como um filtro destinado a impedir a entrada dos bacharéis “despreparados” e, também, agora, dos desonestos, de acordo com a opinião do Dr. Busato, acima relatada. Mas será que esse discurso corresponde, realmente, a “qualquer conhecimento científico”?

 

          Na minha opinião, nada mais falso. Ao contrário, os dirigentes da OAB e os defensores do Exame de Ordem têm sido inteiramente incapazes de contestar os argumentos jurídicos – estes sim, científicos -, contrários ao Exame de Ordem, que serão apresentados, sinteticamente, a seguir.

 

 

          7.1. O princípio constitucional da isonomia

 

          Este é o argumento mais importante, porque se trata de um fundamento da nossa Ordem jurídica. Nenhuma lei poderá ter validade, se estabelecer uma discriminação positiva ou negativa, desprovida de razoabilidade. É claro que, se o tratamento desigual for justificável, não haverá inconstitucionalidade. Ao mesmo tempo, este é o argumento de mais fácil compreensão, até mesmo por quem não atua na área jurídica. Pergunta-se, então, aos defensores do Exame de Ordem:

 

(a) por que somente os bacharéis em Direito são obrigados a fazer um exame, para a verificação de sua aptidão profissional?

 

(b) por que os médicos, que lidam com a vida humana, estão isentos dessa exigência?

 

(c) por que o Congresso Nacional não se preocupou com o exercício da engenharia por “profissionais despreparados”. Será que um engenheiro, que não fez um “exame de ordem”, não poderia ser potencialmente mais danoso para a sociedade, podendo causar o desabamento de um prédio de quarenta ou cinqüenta pavimentos, do que um advogado, que pode apenas causar a perda da liberdade ou da propriedade, de seu cliente?

 

(d) por que será que o mesmo Congresso Nacional tipificou como crime o exercício ilegal da Medicina, mas o exercício ilegal da Advocacia, por alguém não habilitado, constitui, apenas, uma contravenção penal?

 

Enfim, para explicar de maneira ainda mais simples: se todos são iguais perante a lei – e não poderia ser diferente, em um Estado que se diz republicano e democrático –, qual poderia ser a razão para que os bacharéis em Direito, somente eles, sofressem esse tipo de discriminação?

 

Pergunta-se, então, aos defensores do Exame de Ordem, com todo o seu conhecimento científico, a que se referiu o Dr. Busato, uma vez mais: por que não existe exame, para a avaliação da capacidade profissional, em nenhuma outra profissão regulamentada?

 

Ressalto, desde logo, que não estou dizendo que todas as outras profissões regulamentadas deveriam ter um Exame semelhante. Isso não é verdade e não tornaria constitucional o Exame de Ordem da OAB, nem mesmo no futuro, se as outras profissões adotassem, também, um Exame inconstitucional, semelhante ao da OAB. Aliás, verifica-se que os dirigentes da OAB se têm manifestado, freqüentemente, a respeito da “necessidade” da criação do Exame para as outras profissões, o que denota que eles estão conscientes da existência da inconstitucionalidade, em face do desrespeito ao princípio da isonomia. Eles são perfeitamente capazes de entender que o Exame de Ordem da OAB é inconstitucional, mas imaginam, certamente, que se as outras profissões adotarem um exame semelhante, será mais fácil justificar a existência do Exame da OAB.

 

Para complementar, ainda quanto à isonomia, caberia a pergunta: será que os advogados já inscritos na OAB, que nunca fizeram o Exame de Ordem, não precisariam ser avaliados, também? Isso não fere, da mesma forma, o princípio da isonomia?  Se a OAB, de acordo com os seus dirigentes, tem a missão de proteger a sociedade contra os maus advogados, contra os “despreparados”, qual poderia ser a razão para que somente estivessem obrigados a fazer o Exame de Ordem os novos bacharéis em Direito? Será que essa discriminação não é capaz de sugerir a existência de uma reserva de mercado, em favor dos profissionais já inscritos?

 

Recorde-se, aliás, que o Presidente da OAB declarou, recentemente (12.07.2005), em uma entrevista, (Fonte: Consultor Jurídico) , que ele próprio não conseguiria aprovação nesse Exame!

 

Pergunta-se, então: se o Dr. Busato reconhece que não conseguiria aprovação no Exame de Ordem, apesar de todos os seus enormes conhecimentos e da sua experiência, como advogado e professor universitário, qual poderia ser a razão para o nível de exigência desse Exame, em relação aos jovens bacharéis, se ele deveria, teoricamente, comprovar apenas um conhecimento “mínimo” indispensável ao exercício da advocacia?

 

Com a palavra, a OAB, o Congresso Nacional e qualquer jurista que seja capaz de responder, juridicamente, a todas essas questões.

 

 

          7.2. A inconstitucionalidade formal

 

          A Lei que criou o Exame de Ordem, dizem os seus defensores, é o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), que estaria apenas estabelecendo restrições ao livre exercício profissional, conforme autorizado pela Constituição Federal, em seu art. 5º, XIII – “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

 

           O Estatuto da OAB se limita a dizer, porém, em seu art. 8º, IV, que o bacharel em Direito é obrigado a fazer o Exame de Ordem, como requisito para a sua inscrição. Sem isso, ele não pode advogar. Portanto, é evidente que o Congresso Nacional não “disciplinou” o Exame de Ordem, nesse dispositivo, como seria de sua competência: Constituição Federal, art. 22, XVI – “Compete privativamente à União legislar sobre: (…) organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões…”

 

          O Congresso Nacional disse, apenas, no art. 8º, IV, do Estatuto da OAB:  Para a inscrição como advogado é necessário: (…) IV- aprovação em Exame de Ordem…” e disse, depois (art. 8º, §1º): “O Exame da Ordem é regulamentado em provimento do Conselho Federal da OAB”.

 

          Portanto, não disciplinou, absolutamente, o Exame, e transferiu, de maneira inconstitucional, ao Conselho Federal da OAB, a sua competência legislativa (CF, art. 22, XVI) e, também, a competência regulamentar do Presidente da República (CF, art. 84, IV).

 

Em conseqüência, o Exame de Ordem é regido, hoje, pelo Provimento nº 109/2005, sendo assim formalmente inconstitucional, porque somente uma Lei Ordinária do Congresso Nacional, regulamentada pelo Presidente da República, poderia estabelecer as qualificações profissionais a que se refere o citado inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal.

 

Ressalte-se, ainda, que alguns defensores do Exame de Ordem costumam alegar que essa delegação de competência poderia ter sido feita, corretamente, dessa maneira, para que o Conselho Federal da OAB regulamentasse o Exame de Ordem. No entanto, a doutrina é unânime em reconhecer que a delegação de competência depende sempre de permissão legal. A regra é a indelegabilidade, porque a competência é atribuída ao agente, ou ao órgão do Estado, não como um direito seu, do qual ele possa livremente dispor, mas como um dever, que deve ser exercido em benefício do interesse público. Isso se aplica, evidentemente, ao Congresso Nacional, com a sua competência legiferante, e ao Presidente da República, com o seu poder regulamentar. Em regra, essas competências são indelegáveis. Portanto, se essas competências são estabelecidas pela Constituição Federal, a possibilidade de delegação deve constar, expressamente, da própria Constituição Federal.

 

Quanto ao Congresso, verifica-se que a ele, privativamente, de acordo com o já citado art. 22 da Constituição Federal, compete legislar sobre “…condições para o exercício de profissões…” Verifica-se, também, que o parágrafo único desse art. 22 disse que uma Lei Complementar “poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.

 

Portanto, qualquer delegação de competência, nesse caso, dependeria de lei complementar e somente poderia ser direcionada aos Estados-membros da Federação brasileira. Nunca, evidentemente, ao Conselho Federal da OAB, que não é órgão legislativo.

 

          Quanto à competência regulamentar do Presidente da República, deve ser citado o parágrafo único do art. 84 da Constituição Federal: “O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”. Verifica-se, portanto, que a Constituição permitiu, excepcionalmente, que fossem delegadas, somente pelo Presidente da República – e não pelo Congresso Nacional, através do §1º do art. 8º do Estatuto da OAB -, as competências previstas nos incisos VI, XII e XXV do art. 84. Além disso, o Presidente somente poderá delegar essas competências aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União.

 

Dessa maneira, fica evidente que nem mesmo o Presidente da República poderia delegar, a quem quer que fosse, o seu poder regulamentar, previsto no inciso IV desse artigo. Como poderia, então, o Congresso Nacional delegar o poder regulamentar, que não lhe pertence, ao Conselho Federal da OAB? Somente na imaginação privilegiada dos autores do anteprojeto do Estatuto, elaborado pela própria OAB!

 

É inteiramente inconstitucional, conseqüentemente, o Provimento nº 109/2005, editado pelo Conselho Federal da OAB, para “regulamentar” o Exame de Ordem.

 

Com a palavra, mais uma vez, a OAB, o Congresso Nacional e qualquer jurista que seja capaz de contestar, juridicamente, a inconstitucionalidade formal do Exame de Ordem da OAB.

 

 

                   7.3. A inconstitucionalidade material

 

          O Exame de Ordem da OAB é materialmente inconstitucional porque conflita, frontalmente, com diversos dispositivos constitucionais referentes à autonomia universitária (CF, art. 207) e à competência do Poder Público para a fiscalização e para a avaliação do ensino (CF, art. 209, II). Não cabe à OAB avaliar a qualidade do ensino ministrado pelas instituições de ensino superior da área jurídica, nem avaliar a capacidade profissional dos bacharéis em Direito. Não cabe à OAB dizer o que os cursos jurídicos devem ensinar. A competência da OAB se restringe à fiscalização do exercício profissional.

 

          Isso é tão evidente, que não se compreende como podem os dirigentes da OAB declarar, a todo momento, que é sua a competência para fiscalizar os cursos jurídicos e avaliar os bacharéis, estabelecendo um “filtro” contra os maus profissionais, em defesa da sociedade. No entanto, mil vezes repetidas essas alegações, no espaço privilegiado de que dispõem, na mídia, essas heresias já estão contaminando os nossos conhecimentos jurídicos e  assumindo uma aparência de veracidade. 

 

          Mas não seria, é claro, pelo fato de que o MEC não desempenha corretamente as suas atribuições, que estas poderiam ser transferidas à OAB. Isso é inteiramente absurdo e somente poderia ser imaginado por mentes autoritárias, fundamentalistas, que acreditam possuir o monopólio da moral e da ética, e acreditam desempenhar uma missão história, em defesa da advocacia, ou da OAB, deixando-se guiar, sempre, pela máxima de que os fins justificam os meios.

 

          Infelizmente, isso tem acontecido, de maneira semelhante, no âmbito das defensorias públicas e da assistência jurídica aos carentes, através de diversos convênios, celebrados entre as Seccionais da OAB e o Poder Público – Estados, Municípios e até mesmo a União -, que são “justificados”, pela OAB, da mesma forma: como o Estado não cumpre a sua obrigação referente às Defensorias Públicas, a OAB passa a desempenhar, também, as suas atribuições.

 

          O Exame de Ordem restringe, portanto, de maneira inconstitucional, o livre exercício profissional dos bacharéis em Direito, que já obtiveram a qualificação para a advocacia, em instituições de ensino superior autorizadas e fiscalizadas pelo Estado, através do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Não é verdade, absolutamente, que o curso jurídico forma bacharéis e que o Exame de Ordem os transforma em advogados. Nos termos do art. 43, II, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), o bacharel em Direito – e todos os outros bacharéis, graduados pelas instituições de ensino superior -, está apto ao exercício profissional. De acordo com esse dispositivo, “A educação superior tem por finalidade (….) formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais …” (grifamos)

 

           O setor profissional do bacharel em Direito, evidentemente, é a advocacia, a profissão liberal exercida pelos bacharéis em Direito inscritos na OAB.

 

          De acordo com o art. 48 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,  “os diplomas de cursos superiores reconhecidos, quando registrados, terão validade nacional como prova da formação recebida por seu titular”. Não é possível que a OAB se ache capaz de negar esse fato e de impedir o exercício profissional de quem possui um diploma de bacharel em Direito, que lhe foi conferido por uma instituição de ensino superior, reconhecida e fiscalizada pelo MEC. Se para todos os outros bacharéis o diploma serve como prova da formação recebida pelo seu titular – e quem o disse foram os próprios representantes do povo brasileiro, através de Lei -, como poderia a OAB alegar que os bacharéis em Direito são despreparados e que o Exame de Ordem é um “filtro” indispensável para a proteção da sociedade contra os maus profissionais? E, agora, até mesmo contra os desonestos?

 

          Assim, uma vez diplomado, o bacharel em Direito já está perfeitamente qualificado para o exercício da advocacia – profissão liberal. Resta, apenas, para que ele possa exercer essa profissão, a sua inscrição na OAB, sem a descabida exigência, naturalmente, da aprovação em Exame de Ordem.

 

          Portanto, a OAB não é instituição de ensino e o Exame de Ordem não qualifica profissionalmente o bacharel em Direito. Ela não pode, arbitrariamente, assumir a competência que não lhe pertence. O Exame de Ordem não pode ser confundido com um concurso público, porque o advogado, no exercício de sua profissão liberal, não exerce cargo ou emprego público. Poderá, eventualmente, submeter-se, o advogado, ou até mesmo o bacharel, não inscrito na OAB, aos concursos públicos da área jurídica, como os da magistratura e do Ministério Público.

 

          Ressalte-se que nem mesmo através de uma Emenda Constitucional poderia ser instituído o Exame de Ordem, tendo em vista a proibição constante do §4º do art. 60 da Constituição Federal: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) IV – os direitos e garantias individuais”. A criação de um Exame desse tipo, evidentemente, tenderia a abolir o direito ao livre exercício profissional, enumerado no “catálogo” ao art. 5º e protegido, portanto, como cláusula pétrea.

 

          Desta forma, à entidade corporativa OAB cabe, apenas, a fiscalização do exercício profissional dos advogados. Não lhe cabe avaliar ou qualificar os bacharéis em Direito, que já estão aptos ao exercício profissional da advocacia, sendo incabível, até mesmo, a pretensão da OAB, de avaliar a qualidade do ensino jurídico, porque essa competência é exclusiva e indelegável do Ministério da Educação, de acordo com os citados dispositivos constitucionais.

 

          Em síntese, portanto, o Exame de Ordem da OAB é materialmente inconstitucional,  porque atenta contra a autonomia universitária e porque não cabe à OAB fiscalizar e avaliar o ensino jurídico. Além disso, ele é ilegal, porque conflita com os diversos dispositivos, também já citados, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

 

          Na prática, o Exame de Ordem vem sendo utilizado, pela OAB, como um mecanismo de exclusão dos profissionais formados pelas nossas instituições de ensino superior, visando garantir o mercado de trabalho aos atuais inscritos. Alegando a mercantilização do ensino e o baixo nível de qualidade de muitos cursos jurídicos, a OAB criou um concurso para advogado, usurpando as competências das instituições de ensino superior e do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

 

Com a palavra, mais uma vez, a OAB, o Congresso Nacional e qualquer jurista que seja capaz de contestar, juridicamente, a inconstitucionalidade material do Exame de Ordem da OAB, de preferência sem apelar para as surradas alegações referentes à baixa qualidade dos cursos jurídicos, ao despreparo dos bacharéis e à missão de defender a sociedade contra os maus profissionais. Agora, não apenas os “despreparados”, mas também os desonestos!

 

 

          8. A plasticidade ética dos advogados

 

          Para finalizar, é interessante fazer um paralelo entre a atuação do advogado criminalista e a atuação dos dirigentes da Ordem.

 

           Quando se fala, em tom de crítica, a respeito da “plasticidade ética” dos advogados, especialmente em relação aos que defendem bandidos (não estou dizendo que eles possam ser sócios dos bandidos), essa crítica não procede, porque todos têm direito ao contraditório e à ampla defesa e somente serão considerados culpados depois de um processo jurídico regular. Até a Suzane e os irmãos Cravinhos têm direito à defesa, para que o juri possa decidir. Assim, alguém tem que fazer esse “serviço sujo”, que é absolutamente indispensável para o Estado de Direito e para a democracia. Portanto, cabe ao advogado criminalista fazer tudo o que estiver ao seu alcance, juridicamente, para defender o seu cliente “bandido”.

 

          Pois bem: na minha opinião, os dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil não podem agir dessa mesma maneira, em defesa da Ordem, de seus interesses particulares ou corporativos, ou em defesa do Exame de Ordem, porque eles não podem atuar, nessas hipóteses, como se fossem advogados que estão defendendo bandidos.

 

          Os dirigentes da Ordem não podem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para defender o Exame de Ordem, mesmo sabendo que ele é inconstitucional, como se eles fossem advogados criminalistas que têm a obrigação de defender os bandidos, mesmo sabendo que eles são culpados. O Exame de Ordem, neste caso, encontra-se em uma posição equivalente à do bandido, mas não merece qualquer defesa, porque o raciocínio correto seria que a OAB deve defender a Constituição (Estatuto da Advocacia, art. 44), e nunca um Exame inconstitucional.

 

          Portanto, se os dirigentes da OAB não têm argumentos jurídicos favoráveis à constitucionalidade do Exame de Ordem, deveriam rever o seu posicionamento e passar a combater o Exame, exigindo que o Congresso Nacional aprovasse os projetos que acabam com ele, ou ingressando com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF.

 

          Nenhuma outra atitude seria possível, haja vista que uma das funções básicas da OAB é a defesa da Constituição e da Ordem jurídica. Assim, os seus dirigentes não podem defender sempre os seus interesses, cegamente, ou tudo aquilo que eles sabem que está errado, imaginando que os fins justificam os meios, simplesmente para “ganharem a causa” de qualquer maneira, sem qualquer outra consideração, como se fossem advogados, que estivessem apenas seguindo um dos mandamentos do advogado, citado por Ruy Barbosa, na famosa Oração aos Moços:

 

“Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial.”

 

          A conseqüência dessa atitude, dos dirigentes da Ordem, certamente, será a perda de credibilidade e de legitimidade da OAB, como instituição. Esse é o motivo fundamental das minhas críticas, à OAB e ao Exame de Ordem.

 

 

          9. Considerações finais

 

          O Exame de Ordem da OAB é inconstitucional, porque atenta contra o princípio da isonomia.

 

           Além disso, ele foi disciplinado através de um provimento da OAB, que usurpou as competências do Congresso Nacional e do Presidente da República, tornando-se por essa razão formalmente inconstitucional.

 

          O Exame de Ordem da OAB é também materialmente inconstitucional, porque atenta contra a liberdade de exercício profissional, o princípio da legalidade e a autonomia universitária e usurpa a competência do MEC para a fiscalização e a avaliação dos cursos jurídicos.

 

          Os dirigentes da OAB se limitam a dizer, sempre, que o Exame de Ordem é necessário para avaliar a capacidade profissional e a honestidade (!) do bacharel em Direito e para proteger o interesse público, tendo em vista a proliferação de cursos jurídicos de baixa qualidade. Não contestam, juridicamente, os argumentos referentes à inconstitucionalidade do Exame de Ordem e somente admitem discutir a sua organização, os seus detalhes e o seu “aperfeiçoamento”.

 

          Na minha opinião, o Exame de Ordem não avalia, corretamente, a capacidade profissional do bacharel em Direito. Os critérios utilizados na elaboração e na correção das provas o transformaram em um verdadeiro instrumento de exclusão social.

 

          Na minha opinião, o Exame de Ordem também não é capaz, muito menos, de avaliar a honestidade ou a ética de quem quer que seja. É um absurdo inominável afirmar que esse Exame avalia a ética do bacharel em Direito, para que a sociedade possa contar com “um advogado melhor dotado de princípios éticos” e “merecedor da confiança dos brasileiros”.

 

          A imprensa, infelizmente, divulga, quase com exclusividade, o “discurso” da OAB, em defesa do Exame de Ordem, sem permitir a divulgação das opiniões jurídicas contrárias.

 

          Para que fosse mantido o respeito à Constituição, bem como à imparcialidade e à veracidade das informações jornalísticas, essencial em um regime que se pretende seja republicano e democrático, os dirigentes da OAB deveriam sair de seu isolamento, para contestar os nossos argumentos jurídicos, e a imprensa deveria divulgar as opiniões contrárias ao Exame de Ordem, e programar a realização de uma completa reportagem a respeito desse Exame, para que fossem ouvidos os dois lados interessados na questão: os dirigentes da OAB e os bacharéis impedidos de trabalhar pelo Exame de Ordem.

 

Os meus argumentos, que são também os de inúmeros juristas nacionais e estrangeiros, estão disponíveis na Internet, na página: http://www.profpito.com/exame.html

 

 

* Professor de Direito Constitucional da Unama

Home page: www.profpito.com

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. A Ética do Exame de Ordem. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-etica-do-exame-de-ordem/ Acesso em: 29 mar. 2024