Direito Constitucional

Democracia ou Miragem?

Democracia ou Miragem?

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

22.12.2002

 

Qualquer súdito da Rainha Elisabeth, que não conheça o Brasil, se lhe derem um exemplar traduzido da Constituição de 1.988, ficará com muita inveja da nossa democracia. O gringo ficará pensando que somos todos iguais perante a lei, e que o poder pertence ao povo. Pensará que temos, na realidade, todos aqueles 72 direitos enumerados no art. 5o, como o direito à vida, apesar dos assaltos, das execuções e dos tiroteios entre a polícia e os traficantes. O inglês pensará que temos todos aqueles direitos sociais dos arts. 6o e seguintes, e os direitos políticos, dos arts. 14 e seguintes. Ele pensará, com certeza, que estamos construindo uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I) e que estamos tentando erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3o, III). Acreditará, até mesmo, que o trabalhador brasileiro tem o direito de receber um salário-mínimo capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social…(art.7o, IV). Acreditará, também, que todos temos o direito de ocupar os cargos públicos, especialmente aqueles que são providos através de concursos, em igualdade de condições, para que sejam aprovados os mais capazes.

 

     Mas, por favor, não lhe mostrem as notícias de nossos jornais, como por exemplo:

 

1)                 O Governo que sai está pretendendo ficar com todo o “mérito” pela concessão do reajuste do salário-mínimo, de 200 para 240 reais.

 

2)                 Ao mesmo tempo, o Congresso já aprovou o reajuste dos seus subsídios, para “apenas” 12.000 reais (até mesmo o nome é diferente, bem diferente, “subsídio”, e não o pobre “salário”).

 

3)                 Apesar do valor desses subsídios (por favor, não pronuncie com o som de “z”), políticos, magistrados, conselheiros e outros privilegiados, ainda recebem, em muitos casos, auxílio-moradia, embora os barracos dos pobres é que estejam sendo levados pela enxurrada, nas favelas de São Paulo.

 

4)                 Enquanto isso, em Belém, nossos filhos dificilmente conseguem fazer um concurso público, porque inúmeros cargos, no Estado e no Município, vêm sendo providos através de simples nomeações, há décadas, privilegiando apenas os familiares, os amigos ou os cúmplices de quem possui a competência para indicar, para nomear, ou para evitar que isso aconteça. Nem mesmo as decisões do Supremo Tribunal Federal são cumpridas no Pará, como é o caso do Tribunal de Contas dos Municípios.

 

 

5)                 Depois que naufragou um barco que transportava 347 passageiros, mais do dobro da lotação máxima permitida, a Capitania dos Portos decidiu finalmente cumprir a sua obrigação, e reteve um outro barco, também superlotado (340 passageiros), e provavelmente impediu um novo desastre, como o anterior, no qual morreram 44 pessoas. Pessoas, apenas. Nenhum político, nenhuma autoridade, nenhum magistrado. A respeito, é muito interessante a notícia do Repórter 70 do último dia 22: a empresa proprietária dos barcos que causaram a morte de mais de 100 pessoas foi agraciada pela Capitania, como a mais segura do Pará. Que Deus nos livre das outras empresas, menos responsáveis!

 

6)                 Diariamente, morrem em Belém pedestres e ciclistas, também pobres, porque os motoristas são obrigados a exercitar toda a sua perícia para evitar uma fatalidade, no caos em que se transformou o nosso trânsito, onde os ônibus, os táxis e os carros importados disputam o asfalto com as carroças dos vendedores de bananas e com as bicicletas que transportam botijões de gás! Enquanto isso, os poucos guardas que restaram soletram com suas canetas as multas dos cintos de segurança e dos celulares. Preocupação com a segurança dos ricos? Ou com o aumento da arrecadação?  Para o ciclista pobre, a multa é paga com a vida, ou em uma cadeira de rodas. Provavelmente, sem rodas.

 

7)                 Os jornais noticiaram, também, que a Campanha “Natal sem Fome” arrecadou 5.100 toneladas de alimentos. Façam as contas. Cada um dos 50 milhões de brasileiros que vivem (?) com menos de meio salário mínimo vai receber, se receber, 100 gramas de alimentos, para este Natal. Talvez sejam 100 gramas de passas. Talvez com caroço. Talvez fosse melhor a educação e o trabalho, ao em vez da esmola.

 

Mas vamos parar por aqui, para não aumentar o estresse, e para não prejudicarmos a nossa saúde. Vamos adoecer, tudo vai continuar igual, e o Governo vai continuar desrespeitando o princípio constitucional da dignidade humana, como se o povo somente existisse no dia da eleição.

 

 Observe, portanto, que não adianta a Constituição assegurar tantos direitos, se falta um mínimo de condições econômicas para que esses direitos se tornem efetivos. Sem esse mínimo, nosso ordenamento jurídico não tem qualquer legitimidade. Sem essa efetivação, não se pode falar em direitos humanos, em cidadania, em igualdade, em democracia ou em estado de direito. Nem, muito menos, em justiça. Sem educação e sem trabalho, não existe dignidade humana.

 

A inserção constitucional dos direitos humanos, a atribuição do poder ao povo, e a garantia da liberdade, sem a concretização de um mínimo de condições sociais e econômicas para que essas normas se tornem reais, não passam de miragens, destinadas a desviar o peregrino de sua rota, para que se evitem as mudanças, e para que não se alterem, ao menos substancialmente, ou mais do que o estritamente necessário, os poderes das elites dominantes.

 

 

* Professor de Direito Constitucional

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. Democracia ou Miragem?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/democracia-ou-miragem/ Acesso em: 20 abr. 2024