Direito Constitucional

Religião no Brasil: Breves Apontamentos Constitucionais

Religião no Brasil: Breves Apontamentos Constitucionais

 

 

Denis Donoso*

 

 

I – INTRODUÇÃO

 

                                                           O dito popular nos ensina que religião (entre outros) é um tema que não se discute, até porque o consenso é praticamente inviável nessas questões. Atenta à sabedoria popular, a Constituição da República (CR) de 88 assumiu uma posição neutra, não tendo adotado qualquer religião oficialmente, estabelecendo a liberdade como sua característica marcante, traçando apenas os contornos básicos para garantir o exercício pacífico da fé de cada um.

 

 

II – CARÁTER LAICO (OU LEIGO) E TEÍSTA DO BRASIL

 

                                                           Um Estado pode ou não admitir uma religião ligada a si. Os que admitem são chamados de Estados confessionários; os que não admitem, leigos ou laicos. Assim, Estado laico é aquele que mantém neutralidade em matéria confessional, não adotando qualquer religião como oficial.

 

                                                           A primeira Constituição brasileira (de 25 de março de 1824) era confessional. Seu art. 5º apontava a religião “Catholica Apostolica Romana” como a “Religião do Império”, mas tolerava outras, desde que o culto fosse doméstico ou particular em casas especialmente a isso destinadas, sem jamais ser exercido em locais externos.

 

                                                           Com a proclamação da República em 1890, ocorreu a laicização do Estado, isto é, o Brasil passou a ser um Estado laico, culminando com a salutar separação entre Igreja e Estado, situação que perdura até a última Constituição (1988). Assim é que atualmente o Brasil é neutro em matéria religiosa.

 

                                                           Posto isto, dúvidas surgem quando da análise de algumas passagens da Constituição, especialmente de seu preâmbulo, já que nele os representantes do povo brasileiro admitem que promulgam a Constituição “sob a proteção de Deus”, o que pode sugerir um novo liame do Estado com a Igreja.

 

                                                           A melhor interpretação do preâmbulo, contudo, indica que a expressão “Deus” significa simplesmente que o constituinte partiu da premissa de que um ser supremo existe, sem que isso signifique a reaproximação do Estado com a Igreja, nem mesmo com uma religião especificamente. Não há, portanto, conteúdo sectário na expressão, de maneira a revelar o teísmo do Estado, isto é, o Brasil não é ateu.

 

                                                           Conclui-se que o Brasil é um Estado leigo, mas também é teísta, já que assume posição neutra em questões religiosas, mas ao mesmo tempo admite a existência de um Deus como ser supremo.

 

 

III – NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE TRATAM DA RELIGIÃO

 

                                                           As conclusões acima articuladas são corroboradas pelas normas que versam sobre religião na Constituição, pois todas revelam a crença num ser supremo sem se afastar da neutralidade do Estado em matéria religiosa.

 

 

A – RELIGIÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS (ART. 5º, VI, VII, E VIII)

 

                                                           Em primeiro lugar, tratando de direitos fundamentais, aponte-se as liberdades de crença e de cultos religiosos, conforme a regra insculpida no art. 5º, VI, da CR.

 

                                                           A liberdade de crença é a liberdade de convicção em matéria religiosa, que inclui também o direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado, malgrado teísta, respeito ao ateísmo como opção do indivíduo[1]. A crença é o pensamento não-exteriorizado, que deve ser respeitado e tolerado por todos, já que se limita ao plano íntimo. Ninguém pode ser obrigado a pensar de uma determinada maneira, tampouco ser obrigado a exteriorizar seu pensamento.

 

                                                           De seu lado, a liberdade de culto – projeção da liberdade de crença no plano externo – é que permite as pessoas a honrarem a divindade conforme a ritualística que desejarem. É a liberdade de culto o pensamento exteriorizado.

 

                                                           É garantido pela Constituição o livre exercício dos cultos religiosos, sejam eles quais forem, sendo certo que os locais de culto e suas liturgias terão sua proteção na forma da lei.

 

                                                           A liberdade de culto, porém, não é um direito absoluto, como não o é qualquer direito fundamental, de maneira que pode ceder diante de outros direitos. Assim, deve-se respeito à ordem pública e aos bons costumes, sempre vedada a prática de atos ilícitos[2].

 

                                                           Ocorre que a lei ou até mesmo a Constituição impõem aos indivíduos a prática de determinados atos que podem, muitas vezes, contrariar certas convicções religiosas, o que certamente colidiria com a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Cite-se, por exemplo, o alistamento militar, o voto, a participação no Júri etc.

 

                                                           Para situações como estas é que o art. 5º, VIII, da CR, traz em seu bojo o instituto conhecido como “escusa de consciência”, vale dizer, o direito de exigir do Estado a eximência de uma obrigação legal a todos imposta e que seja incompatível com as convicções pessoais do indivíduo, desde que se cumpra obrigação alternativa fixada em lei[3].

 

                                                           Assim, se uma obrigação for imposta ao indivíduo que lhe contrarie uma convicção religiosa, é possível que ele oponha a escusa de consciência, quando então se obrigará a prestação alternativa prevista em lei. Apenas após a dupla recusa é que pode sofrer a pena prevista no art. 15, IV, da CR.

 

                                                           Aponte-se, ainda nos direitos fundamentais, o direito a assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII, da CR)[4]. Essa assistência em hipótese alguma fará referência a alguma religião em específico, em observância ao caráter laico do Estado.

 

 

B – RELIGIÃO E A ORGANIZAÇÃO DO ESTADO (ART. 19, I)

 

                                                           Mais adiante, no art. 19, I, da CR, pode-se encontrar a justificativa da conclusão de que o Estado brasileiro é leigo, mantendo-se separado da Igreja. Com efeito, esse dispositivo veda às pessoas políticas: “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

 

                                                           Como se vê, não se permite que as pessoas políticas interfiram de qualquer maneira, auxiliando ou criando embaraços, aos cultos religiosos. Igualmente lhes é defeso que se aliem de qualquer maneira a eles ou seus representantes, inclusive mantendo relações de dependência, isto é, veda-se a parceria Igreja-Estado.

 

                                                           O que se permite, unicamente, é que a lei crie mecanismos de colaboração entre Igreja e Estado, o que é salutar. Essa colaboração não deve transcender os limites da neutralidade do Estado, sob pena de a lei que a instituir estar contaminada por vício de inconstitucionalidade. Um exemplo de colaboração entre Estado e Igreja dentro dos ditames constitucionais é a distribuição de cestas básicas a pessoas carentes ou um programa de alfabetização de adultos, cujos propósitos são de interesse público e não têm qualquer identificação especial com alguma religião.

 

 

C – RELIGIÃO E O SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

 

                                                           Se por um lado a Constituição atribui competência tributária às pessoas políticas, indicando quais impostos elas podem instituir, de outro lado a própria Constituição impõe limites ao exercício dessa competência.

 

                                                           Assim, conforme o art. 150, VI, “b”, da CR, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto.

 

                                                           De ver-se que a norma está em perfeita harmonia com o caráter laico do Estado, uma vez que dispensa a todas as confissões religiosas o tratamento idêntico da imunidade tributária.

 

                                                           A imunidade, todavia, alcança apenas o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a finalidade do culto religioso, não se estendendo aos seus anexos, como o estacionamento da igreja, por exemplo (§ 4º do dispositivo sub examine)[5]. Igualmente, só são imunes aqueles templos de cultos que não ofendam a moral e os bons costumes, que, a bem da verdade, sequer poderão funcionar.

 

                                                           Posto isto, conclui-se que os templos de qualquer culto são imunes a impostos, observadas as ressalvas acima.

 

 

D – RELIGIÃO E A ORDEM SOCIAL. O ENSINO RELIGIOSO (ART. 210, § 1º)

 

                                                           A última norma constitucional que trata do tema religião é a do art. 210, § 1º, da CR, dispondo que o ensino religioso será ministrado nas escolas públicas de ensino fundamental, sendo facultativa a matrícula na disciplina.

 

                                                           A facultatividade da matrícula se justifica para que o dispositivo de adeqüe à norma do art. 19, I, da CR. Assim, se o Estado tolera inclusive o ateísmo, não poderia obrigar o indivíduo a freqüentar aulas de ensino religioso.

 

                                                           Para que haja compatibilidade entre as normas em apreço, contudo, é preciso ainda que o ensino religioso ministrado seja imparcial, isto é, não se refira a tal ou qual fé especificamente, o que é extremamente improvável na prática, de maneira que a implementação do ensino religioso nas escolas públicas é inviável[6].

 

                                                           Como se vê, muito embora a Constituição tenha se esforçado para manter a coerência entre todas as disposições sobre religião, a prática revela ser improvável a manutenção do ensino religioso nas escolas públicas, já que é impossível ministrar a disciplina com neutralidade às mais diversas confissões religiosas.

 

 

IV – CONCLUSÕES

 

                                                           Após as ponderações supra, pode-se elencar as seguintes conclusões:

 

  1. Em matéria religiosa, os Estados podem se manter neutros ou assumir alguma religião como oficial; no primeiro caso, chama-se o Estado de laico ou leigo; no segundo, de confessionário;

 

  1. O Brasil é um Estado laico desde a Constituição de 1890, isto é desde a proclamação da República até os dias atuais;

 

  1. A expressão “Deus” contida no preâmbulo da CR de 88 não é sectária, apenas indicando que somos um Estado teísta, ou seja, que crê num ser supremo;

 

  1. Diversas normas versam sobre religião na CR 88, todas em harmonia com a neutralidade do Estado em matéria religiosa;

 

  1. A liberdade de crença, que revela o pensamento não-exteriorizado, é a liberdade de convicção em matéria religiosa e inclui o direito de ser ateu;

 

  1. A liberdade de culto é a exteriorização da liberdade de crença, sendo livre seu exercício desde que em harmonia com a ordem pública e com os bons costumes, vedada a prática de atos ilícitos;

 

  1. Se a lei impuser ao indivíduo a prática de ato que contrarie suas convicções religiosas, é lícito que se invoque a escusa de consciência, quando então se obrigará a prestação alternativa, sob pena de perder seus direitos políticos após a dupla recusa;

 

  1. A assistência religiosa prestada pelo Estado nos termos do art. 5º, VII, da CR, em hipótese alguma fará referência a alguma religião em específico;

 

  1. O caráter laico do Estado é revelado especialmente pelo art. 19, I, da CR, que só permite a ligação do ente estatal com a Igreja no caso de colaboração imparcial de interesse público;

 

  1. A CR dispensa a todas as confissões religiosas o tratamento idêntico da imunidade tributária, mas apenas no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a finalidade do culto religioso; de resto, são tributadas normalmente;

 

  1. O ensino religioso será ministrado nas escolas públicas de ensino fundamental, sendo facultativa a matrícula na disciplina;

 

  1. O ensino religioso deve ser imparcial, isto é, não pode se referir a uma confissão religiosa em específico, o que se revela impossível na prática.

 

 

 

* Mestrando e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil no curso de graduação da Faculdade de Direito de Itu. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil em cursos preparatórios para Magistratura e Ministério Público no Curso Robortella, em São Paulo. Membro do corpo docente da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor convidado no curso de pós-graduação “lato sensu” da Escola Paulista de Direito Social (EPDS). Professor de Direito Civil em diversos cursos preparatórios para o exame da OAB. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros na área jurídica. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

 

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[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 215.

[2] “Poder de policia reconhecido ao estado para evitar a exploração da credulidade pública. Mandado de segurança deferido em parte, para assegurar, exclusivamente, o exercício do culto religioso, enquanto não contrariar a ordem pública e os bons costumes e sem prejuízo da ação, prevista em Lei, das autoridades competentes.Recurso provido em parte.” (STF, RMS 16857/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Eloy da Rocha, RTJ 51/344)

 

“Poder de polícia. Livre exercício dos cultos religiosos, assegurado pela Constituição, não implica na tolerância de ofensa aos bons costumes, na relegação de disposições do Código Penal.” (STF, RMS 9453, Pleno, Rel. Min. Cunha Mello, j 29.8.62, RTJ 27/421)

[3] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 107.

[4] “Suspensão condicional da pena. Suas condições. Caso em que se proibiu o beneficiário de freqüentar, auxiliar ou desenvolver cultos religiosos que forem celebrados em residências ou em locais que não sejam especificamente destinado ao culto. Trata-se de condição que é contrária ao princípio inscrito no § 5º, do art. 153, da Constituição, sobre a liberdade religiosa. A justiça deve estimular no criminoso, notadamente o primário e recuperável, a prática da religião, por causa do seu conteúdo pedagógico, nada importando o local.” (STF – RExtra 92916/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Antonio Neder, j. 19.5.81, RTJ 100/329)

 

[5] Recurso extraordinário. Imunidade tributária de templos de qualquer culto. Vedação de instituição de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades. Artigo 150, VI, “b” e § 4º, da Constituição. Instituição religiosa. IPTU sobre imóveis de sua propriedade que se encontram alugados. A imunidade prevista no art. 150, VI, “b”, CF, deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços “relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”. O § 4º do dispositivo constitucional serve de vetor interpretativo das alíneas “b” e “c” do inciso VI do

art. 150 da Constituição Federal. Equiparação entre as hipóteses das alíneas referidas. Recurso extraordinário provido. (STF – RExtra 325822/SP, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.12.2002, DJU 14.5.2004, v.u.)

[6] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 1963-1964.

Como citar e referenciar este artigo:
DONOSO, Denis. Religião no Brasil: Breves Apontamentos Constitucionais. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/religiao-no-brasil-breves-apontamentos-constitucionais/ Acesso em: 19 abr. 2024