Direito Constitucional

Transição Epistemológica: direitos humanos e multiculturalismo na pós-modernidade

Transição Epistemológica: direitos humanos e multiculturalismo na pós-modernidade

 

 

Maicon Rodrigo Tauchert *

 

 

1. Os direitos humanos, pós queda do muro de Berlin e término da Guerra Fria, sofrem mudança a partir da ótica da ciência, e passam a ser o horizonte partilhado como conceito moral médio a nível global, onde a ordem mundial será baseada no respeito à dignidade da pessoa humana.

 

Porém, hodiernamente, os direitos humanos ainda são efetivados de forma seletiva, ou seja, em decorrência de terem sido usados como promoção política durante a Guerra Fria, percebe-se que a sua universalização está longe de ser atingida.

 

Em decorrência disso, a promoção e a defesa dos direitos humanos é fundamento de uma vasta rede de movimentos sociais e de Organizações Não-Governamentais, dessa forma, (re)formula-se os conceitos de justiça global e sobretudo de cidadania. Os papéis assumidos pelos movimentos sociais e pelas ONG’s, proporcionam uma (re)configuração do global, a partir de agora, chamado de cosmopolitismo. Onde o papel do Estado-Nação, encontra-se em reformulação no cenário mundial, onde as faces de uma globalização hegemônica dificultam a atuação planificada e essencialmente cosmopolita na questão dos direitos humanos. Atuam assim, organismos internacionais sob duas frentes, ou seja, a nível local e a nível global. Tornando-se essencialmente dependentes um do outro nessa questão em particular. Tanto que, alguns autores falam em nível “glocal”, onde um não é possibilitado sem o outro e as transformações em qualquer deles, influencia direta e imediatamente no outro.

 

Sendo assim, faz-se necessário o desvelamento de vários aspectos até então não levados em consideração para formulação de uma reflexão mais aprofundada e precisa sobre os direitos humanos. Nesse sentido, conforme Kymlicka, Andrade, Falk, Carneiro da Cunha e outros, há a

 

“necessidade de repensar as escalas em que se terá de travar a luta pela afirmação da dignidade humana e pelos direitos humanos, decorre também da emergência de novos sujeitos, como os refugiados de desastre econômicos e ambientais ou de catástrofes naturais, os povos indígenas ou as minorias nacionais e étnicas, por exemplo”.

 

Desvelar também, a possibilidade de reflexão que tem por fundamento a relação entre sujeito e sujeito, no sentido de relações humanas com outros seres vivos, reconsiderando os pressupostos da compreensão ocidental e liberal que fundamenta a concepção dos direitos humanos e a distinção metodológica entre humano e não humano, embasada fundamentalmente na reflexão racionalista, metódica, matemática da relação sujeito e objeto da ciência ocidental.

 

Sendo assim, um dos primeiros aspectos a serem desmistificados, é o modelo de racionalidade ocidental desenvolvido e elaborado por René Descartes em seu “Discurso do Método. Regras para a Direção do Espírito”. Descartes pretende elaborar e estabelecer o método racional, de forma matemática e eminentemente dualista. Nessa obra, Descartes elabora vinte e uma regras para direção do espírito, as quais, tratam principalmente, de como ordenar o pensamento, otimizá-lo e clarificá-lo racionalmente.

 

A repercussão de sua compreensão, através de suas obras, teve extraordinária importância na ciência ocidental, ao ponto que chega a ser a principal forma de pensamento a mais de 350 anos, desde sua morte.

 

De forma geral, toda ciência ocidental desenvolve-se a partir de pressupostos cartesianos, ou seja, na lógica “cogito ergo sun”, em que, no pensar racionalmente, está a existência do indivíduo, logo, se não há a comprovação pelo método, do pensar, não há existência.

 

Assim, dá-se um dos principais fundamentos posteriormente desenvolvidos por Immanuel Kant, da relação sujeito-objeto, em que, somente a partir de um a priori, “matemático”, segundo Kant, é possível descrever empiricamente um entendimento. Portanto, para que o discurso sobre o entendimento seja válido, faz-se necessário sua comprovação empírica, sua demonstração objetiva. Deve-se demonstrar a prova objetiva de que o entendimento é valido. Dessa forma, legitima-se um paradigma.

 

Assim, objetifica-se toda e qualquer compreensão e sua possibilidade discursiva. Desencadeando uma forma de pensar baseada na objetificação do conhecimento.

 

Por isso, temos no Direito, por exemplo, sob a tradição romano-germânica, a codificação de todos os pressupostos legais, através do Estado, de forma objetiva, com intuito de prever o futuro das ações humanas em sociedade. E a conseqüente hiper-especialização da ciência, de seus conhecimentos e de cada ramo desses conhecimentos.

 

Evidentemente que a racionalidade dá-se de forma bem mais complexa, porém, o demonstrado, é sem dúvida fator nevrálgico na formação da ciência moderna ocidental.

 

No entanto, na sociedade contemporânea, presenciamos a transição não só paradigmática, mas como, fundamentalmente, epistemológica da ciência ocidental, onde os pressupostos do entendimento, de sua validade e legitimidade, já não mais possibilitam a compreensão da hipercomplexidade atual.

 

Sendo assim, um dos primeiros pressupostos à serem (re)fundados, é a superação da relação sujeito-objeto e da possibilidade da relação sujeito-sujeito, onde proporciona-se a compreensão a partir do sujeito e para o sujeito, ou seja, o objeto, não proporciona a possibilidade de compreensão por si só. Somente a partir da reflexão feita pelo sujeito, proporciona-se o entendimento, esse entendimento só será possível em outro sujeito e não em um objeto. O objeto, sempre será coisa para o sujeito, e a relação possível entre sujeito-objeto, é somente de conhecimento, nunca de reconhecimento, a qual, possibilitada pela relação sujeito-sujeito.

 

Nesse sentido, penso estar a fundamental transição epistemológica da ciência da pós-modernidade, baseada em reconhecer, e não em conhecer. A partir do reconhecimento, será possibilitada a reflexão do multiculturalismo e os fundamentos de sua compreensão. Reconhecendo o outro como sujeito, e sujeito de direito. Desencadeia-se assim, uma reação em cadeia na (re)compreensão, da pessoa, da sociedade, do Estado e fundamentalmente da ciência. Como por exemplo, na ciência do Direito, a compreensão do meio ambiente, como sujeito de direito, e que somos o meio ambiente, sendo assim, este, um direito humano fundamental.

 

Dessa forma, possibilita-se a superação da lógica logocêntrica ocidental, onde o sentido já está dado a priori, onde a origem é o sentido e o princípio é o significado. Assim, tudo o que não está conforme com o sentido, não tem significado, gerando o monolingüismo de quem detém o poder de dar significado, o etnocentrismo, fundamentado pelo antropocentrismo.

 

Essa racionalidade logocêntrica, embasa-se e constitui estereótipos dominadores.

 

Jacques Derrida, como pensador da escola pós-estruturalista, nos proporciona a desconstrução dessas categorias essecialistas-universalizantes, ao negar o fundo significante e o conceito de sentido único e universal, destitui a tradição científica de pensar de forma dualista e dicotômica, estabelecidas a partir de pressupostos a priori, característica do pensamento cartesiano.

 

Derrida possibilita a abertura do signo, na construção de uma teoria que permite pensar pluralidades, diferenças e diversidades. Possibilita-nos a combater a tirania dos signos e perceber nossas alienações.

 

Assim, proporcionando a superação da epistemologia racionalista, e compreendendo a polimorfia assumida pela sociedade contemporânea, possibilitar-se-á a reflexão e compreensão da hipercomplexidade e contingência atual.

 

Será esta, sem dúvida, a epistemologia, que possibilitará a nova compreensão da ciência, que formará os novos paradigmas.

 

2. Após a desconstrução de um velho paradigma e a criação de novo, o qual será a possibilidade de uma hermenêutica diatópica que possibilitará a comunicação intercultural, Boaventura de Sousa Santos e Raimon Panikkar compreendem que a hermenêutica diatópica permitirá a transformação dos topoi, ou seja, dos lugares comuns próprios de cada cultura, que por assim serem, não são interrogados, permitindo sua reflexão com os topoi de outra cultura.

 

Para tanto, o reconhecimento da incompletude de uma cultura, possibilitará o diálogo intercultural dessa, com as demais. Possibilitar-se-á o reconhecimento de diferentes concepções e o seu enriquecimento conseqüente. A partir da superação da tradição de uma concepção de direitos humanos individuais e sua necessária relação com um coletivo, entendendo que as múltiplas relações, em diferentes coletivos, possibilitarão novas configurações dos direitos humanos, e a superação da relação necessária entre o indivíduo e um coletivo. O envolvimento mútuo de culturas, em projeção da diversidade cultural, caracteriza o multiculturalismo.

 

As transformações possibilitadas com os novos fenômenos da sociedade, possibilitarão a discussão de uma nova dimensão dos direitos humanos, para além da concepção clássica das três dimensões de Direitos Humanos Fundamentais.

 

Onde a primeira dimensão é de Direitos Civis (individuais) que surgem com as Declarações de Virgínia de 1776 e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. São direitos negativos ou de defesa, ou seja, direitos de abstenção do Estado perante o indivíduo; a segunda dimensão, dos Direitos Políticos que surgem no século XIX com o advento da Revolução Industrial. São direitos positivos, ou seja, direitos de prestação do Estado ao indivíduo; e a terceira dimensão, de Direitos Sociais que surgem no início do século XX, com o advento da Revolução Russa, Constituição Mexicana de 1917 e Constituição de Weimar de 1919. São direitos participativos, ou seja, direitos de participação do indivíduo formador do coletivo e social, na esfera pública de decisões do Estado.

 

Assim, estrutura-se uma quarta dimensão, dos Direitos de Solidariedade, que surgem no século XX com a Declaração dos Direitos do Homem de 1948. São direitos cooperativos, ou seja, direitos de cooperação em todas as esferas, tanto privadas como públicas, individuais, coletivas, sociais ou difusas.

 

O Direito à Solidariedade compreende o direito ao desenvolvimento, autodeterminação dos povos, direito à paz, direito ao patrimônio comum da humanidade e direito ao meio ambiente sadio. O Direito ao patrimônio comum da humanidade, compreende o desenvolvimento do genoma humano e manipulação genética (compreendido por alguns autores como a 4ª dimensão de direitos humanos fundamentais). Direito ao Desenvolvimento, compreende o desenvolvimento da informática e tecnologia (compreendido por alguns autores como a 5ª dimensão de direitos humanos fundamentais).

 

Destarte, somente a partir de uma relação solidária de cooperação, fundamentada por uma reflexão que compreende a relação entre sujeito e sujeito, será possibilitada a quarta dimensão dos Direitos Humanos Fundamentais. Sobretudo, em uso da hermenêutica diatópica, como meio de reflexão e compreensão dos fenômenos culturais, partindo de uma nova epistemologia, será possibilitada essa transição paradigmática.

 

3. Para tanto, deverá haver a promoção política dos direitos humanos em escala cosmopolita, conforme João Arriscado Nunes, através da proteção legal dos direitos humanos e de seus pressupostos, a promoção política da

 

“dignidade humana e dos direitos que lhe dão forma, através de concepções multiculturais de justiça e de cidadania, e da defesa da multiplicidade de experiências genuinamente democráticas que estão a surgir em diferentes partes do mundo, capazes de articular a cidadania ativa à especificidade cultural e histórica. Uma concepção cosmopolita dos direitos humanos é indissociável, por isso, da defesa da demodiversidade” (apud. Santos e Avritzer, 2002).

 

A pretensão de construção de uma política cosmopolita de direitos humanos, necessariamente deverá reconhecer a diferença em concepções de dignidade humana, que certamente serão encontradas em diferentes culturas.

 

Nesse sentido, a identificação das diferentes formas de violência contra direitos humanos, inseridas em diferentes concepções de mundo, é de fundamental importância.

 

Perceber a incompletude de uma cultura, ao conceber direitos humanos, por exemplo, possibilita o diálogo intercultural que é possibilidade de desvelamento de outras concepções, as quais proporcionarão um envolvimento entre culturas, “baseado na identificação de preocupações homeomórficas e na mobilização das versões que, em cada cultura ou cosmologia, sejam mais capazes de ampliar os círculos de reciprocidade” (Santos e Nunes 2003), solidariedade e cooperação.

 

Inserido na reflexão intercultural, a manutenção da tensão entre igualdade e diferença, entre reconhecimento e assistência, é necessária, pois dessa forma não será possível ocultar formas de violação dos direitos humanos, diferentes das quais estejam positivadas.

 

Portanto, no reconhecer o “outro”, o “diferente”, o “estranho”, como sujeito, não somente em uma concepção sociológica ou filosófica, mas também jurídica, como sujeito de direito, será possibilitada a promoção cosmopolita dos direitos humanos e de sua efetivação.

 

Para tanto, ainda com João Arriscado Nunes, “os direitos humanos são hoje, um terreno de lutas e de tensões que passam pela confrontação entre a alegação de universalidade dos direitos humanos ocidentais e a diversidade cultural das concepções da dignidade humana e das próprias cosmologias que permitem definir o que é ser humano”.

 

4. Por fim, estamos inseridos em uma fase de transição da humanidade, onde os métodos de se pensar racionalmente sobre o mundo, estão plenamente esgotados e já não mais possibilitam, a partir deles, a compreensão do mundo.

 

Assim, ao repensarmos os fundamentos de nossa ciência ocidental e buscarmos uma “revolução científica”, através da prática de uma ciência “extra-ordinária”, por cientistas “extra-ordinários”, os quais não se limitam as regras do jogo, e procuram sempre questioná-las, ultrapassá-las, superá-las, conforme Thomas S. Khun, nos será possível chegar a um novo estágio de compreensão e reflexão, em um novo paradigma epistemológico de se pensar o mundo e a própria ciência.

 

A partir dessa transformação, haverá necessariamente a transformação dos demais paradigmas fundamentados pelo antigo. Assim, haverá transformação direta no direito, por exemplo. Onde sua concepção extremamente positivista, guinará a novos rumos e novas reflexões, até então desconhecidas pelo direito. Tornando-o uma das principais reflexões e forma de compreensão da sociedade e de seus fenômenos e o principal meio de prestar à sociedade, seus anseios.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CASTELLS, Manuel. Fim de Milênio. Paz e Terra. 3ª edição. São Paulo. 2002.

 

DERRIDA, Jacques. O monolingüísmo do autor ou a prótese de origem. Porto: Campo das Letras, 2001.

 

DESCARTES, René. Discurso do Método. Regras para a Direção do Espírito. Martin Claret. São Paulo. 2006.

 

FICAGNA, Alba Valéria Oliveira e outros. Manual de métodos e técnicas de pesquisa. Méritos. Passo Fundo. 2008.

 

FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais. 2002.

 

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Martin Claret. São Paulo. 2006.

 

NASCIMENTO, Evandro (org). Jacques Derrida – Pensar a desconstrução. São Paulo, Estação Liberdade. 2005.

 

SANTOS, Boaventura de Sousa, (Org.). Democratizar a Democracia. Os caminhos da democracia participativa. Civilização Brasileira. 3ª edição. Rio de Janeiro. 2005.

 

 

* Possui graduação em Direito pela Universidade de Cruz Alta – RS. Especialização em Direito Eletrônico e Tecnologia de Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados – MS. Especialização em Metodologia da Pesquisa e do Ensino Superior pela Faplan/Anhaguera, Passo Fundo – RS. Mestrando em Direito pela Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões de Santo Ângelo – RS. Professor Universitário, pesquisador e consultor jurídico. Atua na área de Direito Constitucional, Direito Civil, Direito na Informática e Direito do Consumidor. Em Filosofia e Sociologia do Direito, com Direito e Multiculturalismo e Direito e Autopoiése. Pesquisador em Teoria do Direito e da Sociedade.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
TAUCHERT, Maicon Rodrigo. Transição Epistemológica: direitos humanos e multiculturalismo na pós-modernidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/transicao-epistemologica-direitos-humanos-e-multiculturalismo-na-pos-modernidade/ Acesso em: 20 abr. 2024