Direito Constitucional

Natureza Jurídica dos Municípios no Federalismo Brasileiro

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução – 1. História dos Municípios nas Constituições Federativas do Brasil – 2. Município como ente federativo – 2.1. Autonomia Política – 2.1.1 Autonomia Organizacional – 2.1.2. Autonomia Governamental – 2.2. Autonomia Administrativa – 2.3. Autonomia Financeira Considerações Finais – Referências Bibliográficas

 

INTRODUÇÃO

 

Em 1789, com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, foi criada a Federação como forma de Estado. Por este forma de organização clássica, o poder é dividido em dois níveis, o central, nas mãos do governo federal, e os poderes descentralizados, que são repartidos entre os estados-membros, entes que em conjunto formam o Estado Federal. Ademais, na federação, o direito de autogoverno de cada região autónoma está consignado constitucionalmente e não pode ser revogado por uma decisão unilateral do governo central.

 

Com o sucesso da forma adotada nos Estados Unidos, o federalismo se expandiu e foi recepcionado nos países que estavam se tornando independentes. Contudo, apesar de ter se tornando livre um pouco tempo depois, o Brasil, continuou com o regime monárquico, herdando a forma de governar dos portugueses, já que a corte estava instalada no país.

 

Assim, somente com a promulgação da República, em 1889, e com a adoção do novo texto constitucional, em 1891, o Brasil, influenciado pelos ideais norte-americanos, decidiu adotar o federalismo, que ao contrário dos americanos, ocorreu de forma centrífuga, ou seja, de dentro pra fora, em que o poder central foi descentralizado.

 

Neste primeiro momento, o federalismo brasileiro era dicotômico, só dois entes a compunham, o poder central, formado pela a União, e os estados membros. Com o passar dos anos, sentiu-se a necessidade de repartição das competências, com isso, os municípios foram ganhando cada vez mais importância e, assim, recebendo certas autonomias.

 

Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise sistemática da natureza jurídica dos Municípios perante a República Federativa do Brasil, partindo-se da sua posição na primeira constituição republicana (1891), até a constituição cidadã de 1988. Desse modo, será estudado se o município realmente é uma entidade federativa e quais são os seus graus de autonomia dentro do ordenamento jurídico pátrio.

 

 

1.     História dos Municípios nas Constituições Federativas do Brasil

 

O Brasil adotou a forma de estado federativa desde a sua primeira Constituição Republicana de 1891, esta que foi moldada de acordo com o federalismo estadunidense. Na primeira carta constitucional, os municípios foram relegados a mera extensão dos Estados-membros, já que cabia a estes assegurar àqueles a autonomia dos interesses locais.

 

Numa época em que prevalecia a política do Coronelismo, onde os prefeitos eram escolhidos pelos coronéis, a autonomia municipal dependia do poder Estadual. Assim, como assevera Helly Lopes Meirelles, em sua obra Direito Municipal, na primeira República não havia autonomia municipal, entende o publicista que entre o fim do século XIX e metade do século XX:

 

 

Nessa atmosfera de opressão, ignorância e mandonismo, o Município viveu quatro décadas, sem recuso, sem liberdade, sem progresso, sem autonomia. Os prefeitos eram eleitos ou nomeados ao sabor do governo estadual, representado pelo “chefe” todo poderoso da “zona”. As eleições eram de antemão preparadas, arranjadas, falseadas ao desejo do “coronel”. [1]

 

Como se pode concluir, a primeira Constituição Federal garantia certa autonomia aos municípios, porém, somente de caráter formal, pois materialmente falando, não existia, tudo ficava ao alvedrio dos Estados-Membros.

 

Com a Revolução de 1930 e o fim da política do café com leite, é promulgada, em 1934, uma nova Constituição, em que a autonomia municipal ganhou mais extensão, sendo permitido aos municípios auferirem recursos através da capacidade de instituírem os seus próprios tributos. Ademais, a partir de 1934, os Municípios começaram a ter renda própria, o que os permitia ter certa independência e, consecutivamente, realizarem as suas finalidades, alcançando a satisfação do interesse público.

 

Nessa esteira, em comentários a Carta de 1934, observou Helly Lopes:

 

Era necessário muito mais. Precisavam as Municipalidades não só de governo próprio, mas, antes e acima de tudo, de rendas próprias, que assegurassem a realização de seus serviços públicos e possibilitassem o progresso material do Município. Fiel a essa orientação, a Constituinte de 1934 inscreveu como princípio constitucional a autonomia do Município em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e especialmente a eletividade do prefeito e dos vereadores, a decretação de seus impostos e a organização de seus serviços (art.13). [2]

 

Depois da Constituição de 1934 e a explosão do movimento comunista na Europa, com a instauração dos regimes totalitários, o Brasil não poderia ficar de fora e, em 1937, o Governo Vargas estoura o Plano Cohen, instaurando a primeira Ditadura no Brasil, ou o chamado Estado Novo, com a conseqüente outorga da Constituição de 1937, inspirada na carta polonesa.

 

Na nova carta, houve a concentração dos poderes nas mãos do Executivo Federal, que governava através dos chamados Decretos-Leis. O Brasil sofria um enorme retrocesso em termos de descentralização dos poderes, visto que, aconteceu o contrário, o poder ficou nas mãos do Ditador, extinguindo-se completamente as autonomias estaduais e quase que todas as vantagens que os municípios adquiriram nos regimes anteriores.

 

O Ditador escolhia o Interventor Estadual, que escolhia o Prefeito. Era assim que funcionavam as coisas, não existindo autonomia em nada.

 

Como afirma José Cretella Jr, verbis:

 

A Constituição se resumiu, então, em uma ‘Constituição de um homem só’, posto que a centralização se deu de forma arbitrária igualando-se a um feudo, como afirma Cretella Júnior (1991). Nessa época, deu-se uma centralização do poder no governo central e, por conseguinte, uma intervenção permanente nos Estados, atitude que pôs a perder a repartição de competência entre os entes da União, estipulada na Constituição de 1934. [3]

 

Após o fim da Segunda Guerra Mundial e diante da luta pelo fim dos regimes totalitários, os militares sentiram a necessidade de acabar com o Estado Novo, instaurando no Brasil uma nova ordem jurídica com a promulgação da Constituição de 1946. Assim, o novo texto foi alicerçado nos ideais democráticos, surgindo à necessidade da descentralização das esferas de decisão, havendo a repartição das competências entre a União, os Estados e os Municípios.

 

Neste passo, os municípios saíram fortalecidos, pois retomaram a autonomia financeira, política e administrativa. Todavia, estas ainda eram limitadas. As capacidades governamentais e eleitorais dependiam ainda dos Estados. Além do mais, como observa o saudoso Ministro Oswaldo Trigueiro, o texto magno de 1946 “alargou a projeção do direito federal no campo do municipalismo, mas deu proteção mais eficiente à autonomia municipal e proporcionou ao Município melhor condição de sobrevivência” [4]

 

Em elogios ao Constituinte de 1946, que expandiu a importância dos Municípios, entende o Prof. Helly Lopes, verbis:

 

Na Constituinte, o Municipalismo ganhou corpo e veio a refletir-se na Constituição de 1946 sob o tríplice aspecto político, administrativo e financeiro. Impressionados com a hipertrofia do Executivo no regime anterior, os novos legisladores promoveram equitativa distribuição dos poderes e descentralizaram a administração, repartindo-a entre a União, os Estados-membros e os Municípios, de modo a não comprometer a Federação, nem ferir a autonomia estadual e municipal. [5]

 

Passados quase 20 anos do retorno à democracia, o Brasil voltou a viver um momento triste em sua história. Dessa vez, acontece um golpe militar e novamente um novo texto constitucional é promulgado, em 24 de janeiro de 1967, onde esta constituição que sofreu profundas modificações com a edição da Emenda Constitucional nº 1 de 1969.

 

Nessa nova ordem jurídica, os municípios tiveram suas autonomias enfraquecidas. Houve a centralização dos poderes na esfera da União Federal. Formalmente, as autonomias foram mantidas, mas materialmente a coisa ficou parecida com os textos de 1891 e 1937. Para se ter uma idéia, os prefeitos das capitais eram nomeados obrigatoriamente pelo executivo Federal, este que não era escolhido diretamente pelo povo.

 

Com o advento da constituição 1967 e da sua emenda de 1969, a tendência centralizadora ficou mais forte, sendo considerada como o ‘apogeu do ‘anti-federalismo’, que também é nomeado como ‘federalismo de integração’. Na verdade, foi uma “pseudo” forma de Estado, caracterizada pela negação da descentralização do poder em detrimento da União. [6]

 

Entretanto, apesar do caráter centralizador da CF/67, faz-se necessário advertir que a capacidade financeira municipal não foi retraída. O texto magno discriminou devidamente toda a autonomia tributária das municipalidades, estabelecendo a possibilidade de decretação e arrecadação dos tributos.

 

Com o enfraquecimento do regime militar, o Brasil sente a necessidade de extirpar a CF/67 e impor novas mudanças em seu ordenamento jurídico. Assim, em 27 de novembro de 1985, é aprovada a Emenda Constitucional nº 26, que convocou os Deputados e Senadores do Congresso Nacional para instalarem uma Assembleia Constituinte Nacional, com fito de elaborarem uma nova Constituição.

 

Desta feita, em 1986, o povo foi às urnas, elegeu os seus legisladores constituintes e em 05 de outubro de 1988, o então Deputado Federal e Presidente da Assembléia Constituinte, Ulysses Guimarães, promulgou a Constituição Cidadã, nome pelo qual ficou mais conhecido a nova Constituição da República Federativa Brasil. Com a Constituição de 1988, a categoria do Município na Federação brasileira sofreu substancial alteração. [7]

 

A primeira grande alteração foi à expansão da autonomia municipal, elevando os municípios ao status de ente federativo. A característica fundamental da atual carta é a ampliação da autonomia municipal, no tríplice aspecto político, administrativo e financeiro, conforme estabelecido nos arts. 29 a 31, 156, 158 e 159, outorgando, inclusive, o poder de elaborar as suas leis orgânicas. [8]

 

 

2.    Município como ente federativo

 

Preconizam os artigos 1º e 18º da Constituição Federal de 1988:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

 

Da leitura destes artigos, deflui-se facilmente que agora os Municípios também fazem parte da estrutura federativa do Brasil, algo extremamente peculiar e inexistente no que tange ao Estado Federado, já que foi estabelecida a descentralização em três esferas diferentes, onde o normal seria apenas o Poder Central, no caso a União, e os poderes regionais, que seriam os Estados-Membros.

 

Como se vê, a CF/88 foi totalmente inovadora em termos de Federação. Nenhuma outra constituição havia descentralizado os poderes de tal maneira. A municipalidade recebeu tratamento diferenciado. Nesse sentido, assevera José Nilo:

 

 

Com a consolidação do estatuto municipal na conformidade da Constituição, puderam os Municípios se impor como descentralização políticas, cuja conformação autonômica, atrelada a recuos expressivos, como na carta de 1937 e, após a Revolução de 1964, na Carta de 1967 e na emenda nº. 1 de 1969. Houve, na Carta de 1988, a consagração máxima que se poderia vislumbrar dentro do contemporâneo municipalismo, para a autonomia municipal e seu regime jurídico-constitucional. [9]

 

Ainda sobre a peculiaridade dos Municípios na Constituição, observa José Cretella Jr:

 

Federação Brasileira é única e detentora de várias características que lhe são peculiares. Além das características intrínsecas do Federalismo citadas no tópico anterior – uma lei máxima que institua a forma de Estado Federativa; duas ou mais esferas de governo, federal ou Estatal (em alguns países, como o Brasil – o Município deve ser incluído); autonomia financeira, administrativa, política; indissociabilidade dos componentes da federação; repartição de competência entre eles – existem várias outras que merecem destaque e delimitam a forma de Estado brasileiro. [10]

 

É inegável a adoção pela CF/88 de um Federalismo peculiar, que adotou três níveis de divisão política, União, Estados, Municípios. Os municípios são entes federativos, pois a Constituição, norma que está no ápice do ordenamento jurídico, consagrou no seu texto o direito das municipalidades legislarem, organizarem-se e se auto-estruturarem. Sobre isso, ressalta Paulo Bonavides:

 

Não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988. [11]

 

Em que pese o texto constitucional ter sido explícito em alçar os municípios a ente federativo, parte da doutrina pátria [12] considera que os municípios não fazem parte da federação. Tal entendimento parte da premissa de que o Federalismo Clássico que foi instituído nos Estados Unidos da América não admitia uma terceira esfera de poder, onde apenas poderia haver uma descentralização política para os Estados-membros.

 

Segundo José Alfredo Baracho [13], o município não é entidade federada, os únicos entes federativos são o Estado Federal e os Estados-membros. Esposando entendimento semelhante, leciona José Nilo, verbis:

 

A federação dessarte, não é de Municípios e sim de Estados, cuja caracterização se perfaz com o exercitamento de suas leis fundamentais, a saber, a autonomia e a da participação. Não se vê, então, participação dos Municípios na formação da Federação. Os Municípios não têm representação no Senado Federal, como possuem os Estados federados, não podem propor emendas a Constituição Federal, como podem os Estados, nem possuem Poder Judiciário, Tribunais de Contas e suas leis ou atos normativos não se sujeitam ao controle de concentrado do STF. Ainda, o parecer prévio do Tribunal de Contas ou órgão equivalente só pode ser rejeitado por 2/3 dos Vereadores. Esse quorum qualificado não é exigido, na Carta Magna, para os entes federativos. Sem Estados-membros, não há que se falar em Federação. Sem municípios, não se pode afirmar o mesmo, evidentemente. [14]

 

Por fim, têm-se os ensinamentos de José Afonso da Silva que, apesar de reconhecer que a CF/88 elevou o Município a ente Federativo, defende com unhas e dentes que o constituinte originário cometeu um equívoco, não havendo como se conceber a municipalidade como parte da Federação, mas apenas como um ente político-administrativo, uma extensão dos Estados-membros. Para ele a Federação Brasileira possui peculiaridades configurando-se nela realmente três esferas de poder. Todavia, em posicionamentos posteriores, indaga o mestre José Afonso:

 

E os municípios transformaram-se mesmo em unidades federadas? A Constituição não o diz. Ao contrário, existem onze ocorrências das expressões unidade federada e unidade da Federação (no singular e no plural) referindo-se apenas aos Estados e Distrito Federal, nunca envolvendo os Municípios. [15]

 

Já Raul Horta entende que “a redefinição da posição constitucional do Município não está concluindo pela sua inserção como ente federativo na República.” [16]

 

Ocorre que os doutrinadores que defendem que o município não faz parte da federação, com a devida vênia, partem de premissas equivocadas, advogando a tese de que para que um Estado seja uma Federação é necessário que ele corresponda perfeitamente ao estilo clássico adotado pelos estadunidenses. Os argumentos utilizados são, na sua grande maioria, elementos presentes naquele país da América do Norte e inexistente na peculiar forma do Estado Brasileiro.

 

Aduzem estes constitucionalistas que somente pode haver dois níveis de poder. Contudo, como adverte Pontes de Miranda “Fujamos à busca do Direito Norte-Americano e argentino, porque a concepção brasileira de autonomia municipal é diferente.” [17]

 

Nesta linha de Raciocínio, expõe Sacha Calmon Navarro Coelho:

 

A Constituição Federal inclui no pacto federativo os municípios e o distrito federal, petrificando a fórmula de maneira inusitada, porquanto o federalismo, em sua formação clássica, envolve apenas a união dos Estados-Membros (federalismo dual). Entre nós, o município ostenta dignidade constitucional, mormente em matéria tributária. Cada Estado Federal tem feições próprias. Uma das nossas acabou de ser exposta no que tange aos partícipes do pacto federal. [18]

 

Desta feita, para os eminentes doutrinadores acima citados, os municípios são entes federativos, não importando o que preconiza o federalismo estrangeiro. O que importa é que está estabelecido na Constituição de 1988, ou seja, uma forma peculiar de organização estatal.

 

O cerne do federalismo é a concessão de autonomia, com a descentralização do poder, seja ela dicotômica ou tricotômica.

 

O Judiciário não é fundamental para um ente federado como o município. O Poder Judiciário Estadual supre esta falha, cabendo a ele declarar inconstitucionais normas municipais que afrontem a Constitucional Estadual, como também controlar a legalidade dos atos administrativos praticados pelo executivo e pelo legislador. Não ficam faltando os mecanismos de freios e contrapesos. A falta de corte de contas municipal é mais irrelevante ainda, pois compete à corte de contas estadual cumprir o mesmo papel perante as contas municipais.

 

Quanto a inexistência de participação no Senado Federal, esta advém do fato de que os Parlamentares representam os Estados, estes que são formados por Municípios. Indiretamente há a defesa dos interesses municipais. Ao se defender os estados, os entes menores também são favorecidos.

 

As teses levantadas, que contrariam a federalização dos municípios, têm o seu valor, ninguém pode negar isto, mas elas não se sobrepõem ao disciplinado na Constituição Federal, que de forma explícita, deixou claríssimo que os municípios são entes federativos e possuem tríplice autonomia.

 

A autonomia é o elemento fundamental para a configuração de um ente federado, até o próprio José Afonso da Silva, rende-se a este entendimento:

 

As constituições até agora outorgavam aos Municípios só governo próprio e a competência exclusiva, que correspondem ao mínimo para que uma entidade territorial tenha autonomia constitucional. Agora foi-lhes reconhecido o poder de auto-organização, ao lado do governo próprio e de competências exclusivas, e ainda com ampliação destas, de sorte que a Constituição criou verdadeiramente uma nova instituição municipal no Brasil. Por outro lado, não há qualquer hipótese de prefeito nomeados. Tornou-se plena, pois, a capacidade de autogoverno municipal entre nós. [19]

 

Dessa forma, o município se estrutura através da sua Lei Orgânica Municipal e, posteriormente, por meio da edição de leis municipais; autogoverna-se mediante a eleição direta de seu prefeito, vice-prefeito e vereadores, sem qualquer ingerência dos governos federal e estadual; e, finalmente, auto-administra-se, no exercício de suas competências administrativas, tributárias e legislativas, com permissão diretamente conferido pela Constituição Federal. [20]

 

Ressaltando-se que é tão forte o princípio da autonomia municipal no Federalismo brasileiro, que nenhuma autoridade pode derrogar, sob qualquer argumento, os poderes concedidos ao município. [21]

 

 

2.1.    Autonomia Política

 

                Nas constituições anteriores, aos municípios não havia sido concedido a capacidade política. As cartas repassavam os poderes para os Estados-membros, que se incumbiam de organizar os seus municípios. Sobre essa restrição municipal, comenta Guilherme Calmon Nogueira Da Gama:

 

Não era possível ao Município se auto-organizar. Ou seja, não eram as autoridades municipais quem elaboravam o documento que traçava toda a organização político-administrativa municipal, bem como os princípios, objetivos e diretrizes que deviam ser adotados pela municipalidade. [22]

 

                Com a CF/88, as coisas mudaram. Os municípios ganharam a autonomia política, que se subdivide em autonomia organização e governamental.

 

 

2.1.1.        Autonomia Organizacional

               

                Disciplina o artigo 30 da Constituição Federal combinado com o parágrafo único do artigo 11 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias:

 

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

 

Artigo 11 do ADCT. Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

 

Como se pode notar, a Carta Maior conferiu, diretamente, aos Municípios a capacidade de elaborarem e votarem a sua própria norma organizacional, ou seja, a sua Lei Orgânica.

 

Esta lei, mutatis mutandis, é uma espécie de constituição municipal. É a lei fundamental das municipalidades, que contém normas referentes à estruturação dos municípios, competências dos poderes legislativos e executivo, estabelecendo as normas do processo legislativo e as disposições no que toca as finanças municipais, ou seja, à aferição de rendas e instituição de tributos.

 

A lei orgânica é uma lei em sentido estrito, proposta pelos vereadores e votada em dois turnos, num prazo de dez dias, devendo ser aprovado por dois terços dos membros que compõem a câmara municipal. Ademais, faz-se necessário um quórum qualificado. Num parlamento municipal com 9 vereadores, a lei orgânica será aprovada com os votos de 6 parlamentares.

 

Quanto à lei orgânica, observa Tatiana Maria Silva Mello de Lima:

 

O Município, desse modo, conta com uma Lei Orgânica, o que em outros termos, confere-lhe uma espécie de constituição local. Esta lei equivale, juridicamente falando, a uma Constituição Estadual, assim somente lhes é facultado a possibilidade de deliberar sobre assuntos que a Constituição Federal determinou. A possibilidade de elaboração da Lei Orgânica e a Constituição Estadual é o instrumento que distingue um integrante da federação de outro dotado somente de autonomia administrativa ou legislativa. [23]

 

Nota-se, ainda, que a autonomia para criar a Lei Orgânica não é ilimitada, por derivar da Constituição Federal, o legislador municipal deve respeitar os princípios expostos na Carta Magna Federal e também na Estadual, devendo dispor na Lei Orgânica Municipal os preceitos de reserva constitucional, que são obrigados a aparecerem no texto municipal. A autonomia organizacional advém da CF/88, e deste modo, não pode afrontá-la, sob pena de ser declarada inconstitucional.

 

Em clara chancela a este entendimento, leciona José Nilo:

 

 

Ao contrário do que se vê, o Município, no seu poder auto-organizatório, tem limites constitucionais bem explícitos, de que cogita o art.29, caput, da CR. É dizer: o Município organiza-se e rege-se por sua Lei Orgânica e demais leis que adotar, mas para atingir tal desiderato há que observar os princípios da Constituição da República e os da Constituição do respectivo Estado. É autônomo o Município, nos termos da Constituição; e autonomia não significa apropriação de liberdade ilimitada no e para dispor normativa e organizacionalmente sobre os poderes municipais. Já que se respeitar a fonte única dos poderes: a Constituição da República. Nessa linha de direção são inconstitucionais, v.g., dispositivos da Lei Orgânica que dispõem sobre aumento de despesa pública, sobre criação de órgãos ou entidades municipais, sobre vinculação de remuneração de seu pessoal municipal a índices oficiais do Governo Federal. [24]

 

Por outro lado, cabe ressaltar, que a CF/88, no seu artigo 29 e 30, permite ordena que a Lei Orgânica trate sobre os seguintes assuntos:

 

Legislar sobre assuntos de interesse local;

Suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

Eleição do prefeito, do vice-prefeito e dos vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo realizado em todo o país;

Eleição do prefeito e do vice-prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de municípios com mais de duzentos mil eleitores;

Posse do prefeito e do vice-prefeito no dia 1º de janeiro do ano subseqüente ao da eleição;

Para a composição das câmaras municipais, será observado o limite máximo de:

Subsídios do prefeito, do vice-prefeito e dos secretários municipais fixados por lei de iniciativa da câmara municipal, observado o que dispõem os arts. 37, xi, 39, § 4º, 150, ii, 153, iii, e 153, § 2º, i;

O subsídio dos vereadores será fixado pelas respectivas câmaras municipais em cada legislatura para a subseqüente, observado o que dispõe esta constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva lei orgânica e os seguintes limites máximos:

O total da despesa com a remuneração dos vereadores não poderá ultrapassar o montante de cinco por cento da receita do município;

Inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do município;

Proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto nesta constituição para os membros do congresso nacional e na constituição do respectivo estado para os membros da assembléia legislativa;

Julgamento do prefeito perante o tribunal de justiça;

Organização das funções legislativas e fiscalizadoras da câmara municipal;

Cooperação das associações representativas no planejamento municipal;

Iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado;

 

Ainda quanto à autonomia organizacional, os municípios possuem a capacidade normativa, que é o poder emanado da própria CF/88 e da Lei Orgânica que permite o legislativo e executivo municipal deflagrar o processo legislativo municipal, criando as leis inerentes as suas competências.

 

A capacidade normativa permite à propositura de emendas à lei orgânica, a edição de leis complementares, ordinárias, delegadas, decretos legislativos, resoluções e também a legislação orçamentária, com o plano plurianual, a lei das diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual.

 

Salientando-se, também, que da capacidade organizacional, deriva também o poderes de fiscalização a qual é dado ao órgão legislativo. A função fiscalizatória permite a instauração de CPIs, relacionado também a aprovação [25] das contas do executivo municipal. Lado outro, o legislativo pode exercer função julgadora, nos casos em que o prefeito comete crime de responsabilidade e é submetido a julgamento perante a Câmara Municipal.

 

 

2.1.2.        Autonomia Governamental

 

A capacidade de se autogovernar refere-se ao fato de que os próprios municípios é que escolhem os seus representantes no pode. É através do voto secreto e direto que são escolhidos os vereadores e prefeitos.

 

O prefeito e o seu vice são eleitos para um mandato de quatro anos, podendo serem reeleitos para outro mandato seguido. A forma de escolha é através do princípio majoritário. É eleito o candidato que obtiver mais da metade dos votos nos municípios que possuir mais de 200 mil eleitores, caso não ocorra, haverá um segundo turno somente com os dois candidatos mais votados. Já nos municípios com menos de 200 mil eleitores, é eleito o candidato que tem o maior número de votos.

 

A autonomia governamental também está relacionada aos atos praticados pelo executivo, estes que podem ser de governo ou administrativos. Os atos administrativos estão ligados ao poder de gerir a máquina administrativa, tais como a locação de recursos para a execução de serviços públicos, nomeação e exoneração de servidores. Os atos de governo são meramente políticos, ou seja, inerentes à gestão dos negócios da cidade, representação judicial e relação com outros entes federativos.

 

No tocante a eleição dos membros do legislativo, estes são escolhidos através do critério proporcional, ou seja, cada partido elegerá o número de candidatos proporcional a número de votos obtidos divididos pelo coeficiente eleitoral. Os parlamentares são eleitos para mandatos certos de 4 anos, que é a duração de uma legislatura.

 

 

2.2.   Autonomia Administrativa

 

A capacidade de se autoadministrar refere-se ao fato de que cabe ao Município fazer a administração própria dos interesses locais, não permitindo a intervenção federal ou estadual, no que diz respeito aos interesses municipais. É dever dos gestores municipais decidirem sobre o futuro das necessidades locais. Sobre esta capacidade, comenta o professor Helly Lopes Meirelles, verbis:

O conceito de administração própria não oferece dificuldade de entendimento e delimitação – é a gestão dos negócios locais pelos representantes do povo do Município, sem interferência dos poderes da União ou do Estado-membro. Mas a cláusula limitava dessa administração exige exata interpretação, para que Município não invada competência alheia, nem deixe de praticar atos que lhe são reservados. Tudo se resume, pois, na precisa compreensão do significado de “interesse local”. [26]

 

 

2.3.   Autonomia Financeira

 

Preconiza o inciso III do artigo 30 da Constituição Federal de 1988:

 

Art. 30. Compete aos Municípios:

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

 

Pela dicção deste artigo, vê-se que o Legislador Constituinte Originário deu aos Municípios a sua autonomia financeira, esta que é a mais fundamental de todas as autonomias, já que não adiantaria de nada escolher seus representantes, elaborar suas normas e não ter renda própria para a satisfação das necessidades municipais. Não existiria autonomia, a municipalidade ficaria presa ao ente responsável pelo repasse das verbas necessárias.

 

Sobre a indispensabilidade do poder de tributar municipal, comenta Zé Nilo:

 

Os recursos financeiros, provenientes de seus bens ou serviços remunerados, são as rendas municipais próprias, no sentido estrito, fazendo, consequentemente, parte da receita municipal, em sentido amplo, que “é o conjunto de recursos financeiros que entram para os cofres locais, provindos de quaisquer fontes, a fim de ocorrer às despesas orçamentárias e adicionais do orçamento. [27]

 

Nessa ordem de idéias, é imprescindível a autonomia financeira, está que se consubstancia na possibilidade de os municípios instituírem os seus próprios tributos, arrecadando-os, porém, respeitando sempre os limites estabelecidos no título da Constituição Federal referentes ao Sistema Tributário Nacional.

 

Os municípios podem criar diversos tributos, tais como: Contribuições de Melhoria, taxa pela utilização de serviços públicos e pelo poder de polícia. Ademais, pode arrecadar os seguintes impostos: IPTU, ITBI, ISS. As rendas referentes à arrecadação destes tributos servem para que a municipalidade possa alcançar os seus fins, satisfazendo o interesse público, através de aplicação de recursos na saúde, educação, urbanização, pagamento dos servidores, construção de obras públicas e etc.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

               

                Ao se analisar as outras Cartas Constitucionais, viu-se que com passar dos tempos os municípios foram ganhando cada vez mais autonomia. Inicialmente, eram instâncias administrativas, não escolhiam seus próprios governantes e nem detinham poder para auferir rendas próprias, depois, disso, ganharam capacidade tributária. Por último, com a Constituição de 1988, os municípios atingiram o seu ápice, onde foi consagrada uma tríplice autonomia, a saber: Autonomia Política, Administrativa e Financeira.

        

         A autonomia política refere-se à capacidade de escolher o seu próprio governante e também de elaborar a sua própria lei organizacional. A autonomia administrativa relaciona-se à capacidade de se autogovernar, ou seja, à administração própria dos seus interesses próprios, enfim, é o poder de gestão municipal. No tocante a autonomia financeira, esta é ligada a capacidade de instituir tributos e assim, obter renda própria para a satisfação dos seus interesses.

        

         Portanto o legislador constituinte originário, ao conceder os municípios à tríplice autonomia, os alçou ao status de ente federativo, criando no ordenamento jurídico pátrio uma forma de organização estatal completamente diferente dos dogmas clássicos do federalismo preconizado pelos idealizadores estadunidenses.

        

Constatou-se, então, que o federalismo brasileiro é tricotômico, onde, apesar de os municípios não possuírem poder judiciário próprio e nem representação no congresso nacional, não perdem o conceito de ente federativo, pois a sua tríplice autonomia é o os caracteriza com entes federativos.

 

REFERÊNCIAS

 

[1]MEIRELELES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 38p

[2]Op.cit. p.38

[3]CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1991.

[4]TRIGUEIRO, Oswaldo.  Direito constitucional estadual.  Rio de Janeiro: Forense, 1980

[5]Op.cit. p.40

[6]de LIMA, Tatiana Maria Silva Mello. O Federalismo Brasileiro: Uma Forma De Estado. Estação Científica Online Juiz de Fora, n. 05, Jan 200

[7]ANDRADA, Antônio Carlos. O município na Federação brasileira. – Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica, 2004.

[8]Op.cit. p.42

[9]CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 5 ed.rev. Belo Horizonte: Del Rey. 2001. p.46

[10]Op.cit.p.200

[11]BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Rio de Janeiro. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 200. p.379

[12]José Nilo, José Afonso da Silva, Roque Antonio Carraza

[13]BARACHO JUNIOR, J. A. O. . As Câmaras Municipais e o papel do Vereador. Revista do Legislativo, Belo Horizonte/MG, v. 1, p. 1-8, 2000.

[14]Op.cit.p.58

[15]SILVA, José Afonso.  Curso de Direito Constitucional Positivo.  26.ed.São Paulo: Malheiros.2006. p.640

[16]Apud CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 5 ed.rev. Belo Horizonte: Del Rey. 2001. p.69

[17]Apud MEIRELELES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p.45.

[18]COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005. P.65

[19]Op.cit.p.640

[20]MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 22.ed.-São Paulo: Atlas,2007. p.648

de LIMA, Tatiana Maria Silva Mello. O Federalismo Brasileiro: Uma Forma De Estado. Estação Científica Online Juiz de Fora, n. 05, Jan 200

[21]GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A autonomia do município brasileiro. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, n. 21, p. 141-172, abr./jul. 1998.

[22]de LIMA, Tatiana Maria Silva Mello. O Federalismo Brasileiro: Uma Forma De Estado. Estação Científica Online Juiz de Fora, n. 05, Jan 200

[23]Op.cit.p.85

CF/88 – Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º – O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º – O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

§ 3º – As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.

§ 4º – É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.

[24]Op.cit.p.50

[25]Op.cit.p.273

[26]MEIRELELES, Helly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 38p

[27]Op.cit. p.38

 

 

* Rafael Pontes Vital, Advogado, diplomado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-Graduando em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pelo Centro Universitário de João Pessoa. Coautor da obra “Temas sobre responsabilidade civil”

 

Como citar e referenciar este artigo:
VITAL, Rafael Pontes. Natureza Jurídica dos Municípios no Federalismo Brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/natureza-juridica-dos-municipios-no-federalismo-brasileiro/ Acesso em: 29 mar. 2024