Direito Constitucional

Por enquanto ainda temos liberdade de expressão


Lá pela década de 1980,
se não me falha a memória, chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos um caso de
um cidadão que tinha sido condenado por incenerar em público a bandeira
nacional.

A decisão da Suprema
Corte foi a seguinte: não há nada na Constituição Americana que proíba a
incineração da bandeira, mas há uma garantia expressa da liberdade de
expressão. E que dizer da bandeira do Reino Unido, que na década de 1970 era
usada como toalha de praia desde a Grã-Bretanha a Ipanema? Não consta que
nenhuma autoridade tenha se manifestado contra sob a pífia alegação de
desrespeito a um símbolo pátrio.

É claro que essa
liberdade não é ilimitada: seu limite é justamente quando ela causa, ou gera o
risco de causar, danos morais ou materiais para os outros. Contudo, quando não há
nem a probabilidade de dano, a liberdade de expressão não deve ser cerceada.

Um antigo princípio
jurídico é que a minha liberdade termina onde começa a do outro, ou na versão
de Oliver Wendel Holmes Jr., ex-Ministro da Suprema Corte: “A liberdade de eu
movimentar meu punho termina onde começa seu queixo”.

Na Bienal de São Paulo,
que brevemente será aberta ao público, o artista plástico pernambucano Gil
Vicente – homônimo do antigo dramaturgo português, autor de O Auto
da Mofina Mendes
e de O Auto da Barca
do Inferno
estará expondo uma
série de dez desenhos intitulada Inimigos.

Na referida série, o
próprio artista é retratado executando personagens famosas. Como mostra a Folha de São Paulo, em 18/9/2010, num
desses desenhos o artista aponta uma arma para a cabeça de FHC e noutro passa
uma peixeira pela goela de Lula.

Como trabalho
considerado artístico – se assim não fosse considerado, não teria sido
selecionado para a Bienal – seu autor expressou simbolicamente seu ardente
desejo, bem como o de muitos e muitos brasileiros.

De um ponto de vista
religioso, ele pode até ter cometido o pecado de desejar matar duas pessoas,
mas, considerando que o direito não pune intenções que não chegam a se
materializar em atos preparatórios, parece que o artista não cometeu nem sequer
tentativas de homicídio.

Desejar matar alguém ou
matar alguém numa peça de teatro não é crime. Já pensou se fosse? Othello teria
sido acusado de matar Desdemona a mando de um gangster conhecido como Billy
Shakespeare…

No entanto, “a Ordem dos
Advogados do Brasil de São Paulo divulgou ontem nota pública pedindo para que
os trabalhos do artista pernambucano Gil Vicente sejam excluídos da Bienal de
São Paulo, que abre no próximo dia 25.” (Folha, 18/9/2010).

Mas por que motivo?
Segundo o presidente da OAB/SP, Dr. Luiz Fávio Borges d’Urso, “Essas obras
fazem apologia à violência e ao crime, revelam o desprezo do autor pelas
figuras humanas e demonstram um desrespeito contra as instituições públicas”.

E tem mais: O mesmo
causídico alertou que se as obras não forem retiradas da exposição, a OAB deverá
encaminhar solicitação de abertura de processo pelo Ministério Público.” (Folha, 19/9/2010).

Um dos curadores da Bienal,
Agnaldo Farias, disse que as obras não serão retiradas. Punto e basta! (como costuma dizer o Totó da novela Passione). Segundo pensa ele, a OAB, com
essa advertência ou ameaça, está exercendo um papel que não lhe é adequado: o
de censura. E completou seu pensamento dizendo:

“Esse trabalho é uma
ficção, ela vem do imaginário. Na dramaturgia, também há inúmeros casos de
representação de atentados contra instituições públicas. A OAB de São Paulo vai
pedir que esses autores não sejam mais exibidos também?” (Folha, 18/92010).

Devemos estar lembrados
que recentemente foi promulgado um decreto do Poder Executivo proibindo charges
de políticos em programas humorísticos. Imediatamente, foi realizada uma grande
passeata em Copacabana liderada por profissionais do humor protestando contra
esse tipo de censura. Com todo meu apoio em defesa do riso farto! Rir ainda é o
melhor remédio, principalmente se você vive no Brasil…

Instado a se manifestar,
o STF garantiu o direito constitucional de liberdade de expressão, que segundo
penso se aplica tanto às charges de políticos quanto à execução simbólica dos
mesmos pelo artista Gil Vicente.

Hilariante país é este
Brasil em que há candidatos que são verdadeiros palhaços e conseguem se eleger
com grande votação, arrastando ainda uma meia dúzia pelo voto de legenda.

Está aí o Tiririca só
para não me deixar mentir. Com seu slogan: vote
em tiririca que pior do que tá não fica
, teremos o candidato a deputado com a maior votação em São Paulo repetindo a
façanha de Enéas Carneiro do prona com sua hirsuta barba negra e seu atemorizante slogan Meu nome é Enéas!!! (e bota ênfase nisto).

Em defesa de seu
trabalho, Gil Vicente afirmou: “Eu não mataria ninguém, nem quero que outras
pessoas façam isto. Nada muda na mão de políticos. O país continua cheio de
miseráveis. A morte que eu apoio dessas pessoas [entre outras, a de FHC e Lula]
é simbólica”.

Ambos os episódios, somados
ao PNDH 3 (Plano Nacional dos ‘Direitos Humanos’ 3) do PT, são extremamente
preocupantes, porque são manifestações altamente autoritárias contra a
liberdade de expressão, que é um dos pilares da democracia.

A coisa começa assim, em
episódios aparentemente circunstanciais e de pequena monta, mas acaba mesmo em
mordaças nas nossas bocas. Faz-se oportuna novamente a citação do grande poeta
russo Maiakowsky:

Na primeira noite eles
se aproximam

E roubam uma flor

Do nosso jardim.

Na segunda, já não se
escondem;

Pisam nas flores,

Matam nosso cão,

E não dizemos nada.

Até que um dia,

O mais frágil deles

Entra sozinho em nossa
casa,

Rouba-nos a luz, e,

Conhecendo nosso medo,

Arranca-nos a voz da
garganta.

E já não podemos dizer
nada.

* Mário Antônio de
Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do
Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC
[Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de
Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF,
Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima
Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da
Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso
Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação
Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS,
Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói,
1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século
XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber,
Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil
(Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já
apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos.
Atualmente tem escrito regularmente artigos para
www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para
www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. Por enquanto ainda temos liberdade de expressão. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/por-enquanto-ainda-temos-liberdade-de-expressao/ Acesso em: 29 mar. 2024