Direito Constitucional

Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos e sua Hierarquia Normativa no Sistema Constitucional Brasileiro

I – INTRODUÇÃO

 

Cuida-se de pesquisa desenvolvida a partir da dicotomia de interpretações doutrinárias e jurisprudenciais acerca da recepção dos tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

Na forma que restará demonstrada nos tópicos a seguir abordados, buscou-se demonstrar os diferentes entendimentos existentes a respeito do grau de hierarquia com que são recepcionados tais tratados internacionais.

Enquanto uma boa parte da doutrina e a própria jurisprudência dominante são partidárias da idéia de que os tratados internacionais ingressam na ordem jurídica brasileira na equivalência hierárquica de leis ordinárias, também há posicionamentos que defendem que os mesmos tratados, quando versarem sobre direitos humanos, ingressam tal como se fossem normas de índole constitucional.

A divergência entre as correntes fomentou acaloradas discussões jurídicas ao longo do tempo, e, com aparente intuito de pacificar o entendimento sobre a matéria, a Reforma do Poder Judiciário introduzida pela Emenda Constitucional n.° 45 promoveu uma substancial e polêmica alteração nos parágrafos do artigo 5.°, da Carta Magna.

No desenvolvimento do raciocínio que norteia a pesquisa, serão abordados determinados elementos e conceitos que, em nosso entender, são essenciais à elucidação do tema proposto sob a perspectiva do raciocínio jurídico.

Sem a pretensão de esgotar a matéria, mas sim de dar à temática um desenvolvimento encadeado, serão pincelados temas como: a conceituação de tratados internacionais; noções de hierarquia normativa; a sistemática de elaboração e incorporação dos tratados internacionais sob a ótica do direito internacional e do direito brasileiro; a forma de recepção dos tratados internacionais na ordem jurídica brasileira; os entendimentos jurisprudenciais diferenciados e divergentes acerca do mesmo tema; a posição jurisprudencial brasileira; análise de determinados casos pontuais, como forma de exemplificar a exposição teórica; a exegese do parágrafo 2.° artigo 5.°, da Constituição Federal; a posição doutrinária sobre a Emenda Constitucional n.° 45/2004 e a polêmica gerada em torno da mesma, no que concerne à inclusão do parágrafo 3.º, ao artigo 5.°, da Constituição Federal.

A partir da exposição dos tópicos ora delineados, acredita-se terá o leitor, independentemente de concordar ou não com a conclusão extraída da pesquisa, elementos suficientes para o conhecimento da matéria e, quiçá, para as suas próprias conclusões.

A temática abordada revela importância e desperta interesse jurídico pois cuida de assunto, como dito, marcado por significativas  divergências e diferentes entendimentos. Isso se revela interessante na medida em que a pesquisa busca firmar uma posição a respeito da questão.

Ao mesmo tempo, não obstante a pretensa utilidade doutrinária que emerge do trabalho, cuida de assunto de relevante interesse prático-profissional, uma vez que a tese embarcada pelo mesmo tema se presta a fundamentar uma série de situações da prática jurídica, como a própria defesa de interesses de particulares em juízo (ex.: a questão da prisão judicial do depositário infiel).

 

 

II – DEFINIÇÃO DE TRATADO INTERNACIONAL

 

O tratado internacional é, em suma, um acordo formal e expresso de vontades emanadas de pessoas jurídicas de direito público internacional com o fito de produzir determinados efeitos jurídicos.

Do mesmo modo com que os particulares celebram contratos para o fim de criar direitos e obrigações e regular certas situações fáticas dotando-as de efeitos no plano jurídico, também as pessoas jurídicas de direito público internacional , com o mesmo objetivo, firmam tratados.

Assim como os contratos celebrados entre particulares, em âmbito de direito privado interno, vinculam sujeitos em torno de um objeto, exigindo-lhes a observância de condutas positivas ou negativas e vinculando-os em prol de um efeito previamente almejado, do mesmo modo os tratados o fazem em relação ás pessoas de direito público internacional.

Para José Francisco Rezek[1], o tratado internacional é todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos.

No entendimento da doutrina de Paulo Siqueira Júnior[2], há uma variedade de denominações para os tratados: convenção, ato, protocolo, convênio, ajuste, acordo, etc. Tratados e Convenções são expressões sinônimas. Acordo, convênio, ajuste, arranjo são atos internacionais de maior ou menor alcance, tanto de caráter bilateral, como de caráter multilateral.

Para Hildebrando Accioly[3], tratado é o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas internacionais: é a expressão genérica.

Na conceituação de Celso Ribeiro Bastos[4], os tratados internacionais são acordos formais, eis que, à moda do que acontece com os contratos no direito interno, demandam eles uma concordância de vontades, o que os distingue do ato jurídico unilateral.

No entendimento pacificado pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 2.°, 1, a, tem-se que os tratados internacionais constituem-se em um acordo  internacional  celebrado por  escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, que conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação particular.

Não é por demais, aliar ao entendimento supra que, além dos Estados soberanos, também podem tomar parte dos tratados as organizações internacionais ou supranacionais dotadas –  por seus respectivos atos constitutivos –  de capacidade jurídica internacional.

Em suma, e dadas as definições ora trazidas a baila, vê-se, que os tratados internacionais são, em última análise, verdadeiros “contratos” firmados entre pessoas jurídicas de direito público internacional, com vistas a regular determinadas situações e convergir interesses comuns ou mesmo antagônicos. Tais “tratos”, como visto, exigem manifestação expressa e escrita, bem como – na forma com que oportunamente se verá – reclamam formalidades específicas com vistas à obtenção de sua existência, validade e eficácia.

 

 

III – TRATADO COMO FONTE DE DIREITO INTERNACIONAL

 

O direito internacional tem entre as suas fontes, além dos tratados celebrados entre pessoas jurídicas de direito internacional, também os costumes e princípios gerais do direito, jurisprudência, doutrina e, até mesmo, eqüidade.

Até o final de século XIX, observava-se que o direito internacional público era antes assentado em preceitos de ordem consuetudinária, do que em fontes escritas. Tais preceitos costumeiros, por seu turno, eram (e até hoje o são) fulcrados nos próprios princípios gerais do direito e em demais valorativos axiológicos de aceitação relativamente pacificada entre os diversos estados e as poucas organizações internacionais existentes à época.

Desde o final da Primeira Grande Guerra, e mais notadamente a partir do segundo período pós-guerra, o incremento quantitativo e qualitativo de organizações internacionais impulsionou uma forte intensificação do chamado direito dos tratados.

Convenções e acordos internacionais passaram a ser mais comuns e freqüentes, na medida em que o cenário que se verificava à época apontava para uma inarredável necessidade de intensificação das relações jurídicas entre estados soberanos e um número crescente de pessoas jurídicas de direito internacional distintas destes.

Entende-se que essa evolução do direito internacional tenha atingido o seu ápice com a concepção da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em data de 26 de maio de 1969, muito embora tenha tal tratado entrado em vigor somente a partir de 27 de janeiro de 1980.

É de se  anotar, não obstante à dita convenção, que desde 1929, a Corte Internacional de Haia, já havia criado o primeiro tribunal internacional. Tal tribunal, como de se esperar, prestava-se à pacificação de conflitos de interesse entre os estados soberanos, mas, contudo, não fixava limites geográficos, bem como não delimitava a matéria jurídica a que se destinava a sua prestação jurisdicional.

O Tribunal de Haia, ou Corte Internacional de Justiça, através de seu respectivo estatuto chegou a delimitar uma ordem hierárquica de fontes de direito internacional a ser utilizada em suas decisões. Muito embora seja o entendimento de vários doutrinadores de que aludida delimitação não tivesse o condão de hierarquizar as fontes de direito internacional, é fato que o tratado foi enumerado como a primeira delas.

Apesar de o consenso da maior parte da doutrina internacionalista direcionar-se no sentido de que inexiste uma hierarquia de fontes no direito internacional, não se pode olvidar (não necessariamente discordando desse posicionamento) o fato de que os tratados internacionais são uma fonte de suma importância e influência na moldura hodierna.

Nesse sentido, Iure Pedroza Menezes[5], sustenta o que segue:

 

Por sua capital importância, o tratado internacional é considerado como a principal fonte do direito das gentes, pois, é através dele que se encontra o consenso expresso dos sujeitos de direito internacional.

 

 

IV – VISÃO SUMÁRIA DA ELABORAÇÃO, CONFECÇÃO E VIGÊNCIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS

 

Já foi dito que os tratados internacionais obedecem a uma ritualística específica para a sua elaboração, firmação e entrada em vigor na ordem jurídica dos celebrantes.

Pode-se explicitar tal sistemática, para fins de melhor compreensão didática, dividindo-as em fases.

As fases pelas quais o tratado internacional  passa, desde a sua concepção até a sua efetiva vigência e exigibilidade no plano jurídico internacional, são: negociação, firma, ratificação e depósito, promulgação e registro.

Na fase da negociação, o estado soberano ou organização internacional partícipe deve ser representado por quem de direito. A representatividade originária, por excelência (no caso dos estados soberanos), é dos chefes de estado e/ou dos chefes de governo, os quais têm os poderes de mandatários do estado soberano que representam. Tal condição, no entanto, não exclui desta fase demais indivíduos, como ministros ou staff especializado, desde que munidos de um mandato outorgado por aquele que detém a representatividade originária, dotando-os de plenos poderes para enfrentarem a fase negocial em nome do ente soberano que representam. Diz-se que são plenipotenciários, porque dotados de um mandato representativo (carta de plenos poderes), detém representatividade derivada.

Ainda, em respeito à fase negocial, informa-se que seu desenrolar pode ser levado a cabo por um idioma comum entre os estados, ou mesmo, idioma distinto dos respectivos vernáculos, desde que avençado pelos negociantes. Também, em atenção ao  instrumento resultante da negociação (tratado), pode este ser lavrado em versões autênticas e de mesmo teor e forma, em idiomas diversos, sobretudo no caso de estados que não tenham a mesma língua pátria.

Seguindo-se a fase negocial e ajustados os termos do pacto, tem-se a firma, ou assinatura, que dota de fé do tratado. Nada mais é do que a subscrição idônea do mesmo instrumento por aquele que legitimamente detém poderes de negociação na forma anteriormente abordada, com vistas a obrigar as partes nos termos da avença.

Pode ocorrer, nessa fase, o que se denomina de assinatura ad referendum, nos casos em que se suscita ao plenipotenciário referendar a sua firma, dotando-a de autenticação e confirmação pelo órgão administrativo de seu respectivo estado, que tenha poderes para tanto. A firma ad referendum, uma vez reconhecida e autenticada, tem efeito retroativo à exata data de assinatura do tratado.

Exauridas das fases de negociação de aposição de firma, segue-se o trâmite com a ratificação e depósito do tratado. A ratificação é o ato de natureza unilateral pelo qual o signatário reafirma a sua intenção de “contratar”, informado na ordem internacional que a manifestação de vontade tem, como efeito, o condão de gerar direitos e obrigações nos limites da avença firmada.

No Brasil, a ratificação de um tratado, embora seja prerrogativa do Poder Executivo, requer prévia autorização do Poder Legislativo.

Assim, depois de negociado e firmado, o tratado é remetido para exame ao Congresso Nacional, por mensagem do Presidente da República, que se faz acompanhar do inteiro teor do instrumento e, também, de exposição de motivos, de lavra do Ministro das Relações Exteriores.

Uma vez no Congresso, o texto é analisado sob os aspectos de constitucionalidade, oportunidade e conveniência e, se aprovado pelo Senado e pela Câmara, sua ratificação é autorizada por meio de decreto legislativo, promulgado pelo Presidente do Senado e publicado em Diário Oficial. Publicado o decreto, estará o Presidente da República autorizado (não obrigado, eis que ato discricionário) à proceder a sua ratificação.

Ato contínuo, o instrumento de ratificação é levado a depósito, o que ocorre, comumente no estado em que se deu a sua firma. O mesmo ocorre com a via original do pacto, bem como, por eventualidade, com instrumentos de adesão, e a notificação de sua denúncia.

Havido o depósito dos instrumentos de ratificação, o tratado é promulgado. A promulgação é ato realizado por cada um dos estados signatários na forma de suas legislações específicas e tem índole interna. Tal ato, levado a  cabo  por órgão oficial de publicidade  de cada estado e por meio de decreto do Presidente da República, além de se prestar a atestar a existência do pacto internacional e demonstrar o atendimento às formalidades legais a ele inerentes, tem o efeito de tornar o tratado obrigatório na ordem interna, ou seja, o decreto presidencial promulgado, a partir do prazo que assinalar (eis que possível a vacatio),  importará na efetiva vigência do pacto internacional na ordem jurídica interna.

Por fim, esgotadas as fases de negociação, firma, ratificação, depósito e promulgação, tem-se o registro do tratado. Por meio de requerimento endereçado ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) –  ou secretaria do respectivo órgão supranacional a que se estendem os limites subjetivos da avença –  e com o fito de dar publicidade internacional às avenças que se encerram no pacto, o mesmo é registrado junto ao referido órgão. A partir daí, passa a gozar de eficácia externa, podendo ser invocado perante qualquer órgão da ONU, em atenção ao que preleciona a Carta da ONU, em seu art. 102, alínea 2.ª.

 

 

V – O TRÂMITE DO TRATADO FRENTE À CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

 

Dadas as considerações acima, a respeito dos procedimentos de confecção e vigência dos tratados internacionais, passa-se a analisar tópico com remissão expressa ao tratamento dado ao mesmo pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A Constituição Federal Brasileira cuida da sistemática e dos procedimentos de celebração e recepção de tratados, em suma, a partir da análise e interpretação combinada dos seguintes dispositivos: art. 21, I, art. 84, VIII e art. 49, I, a seguir transcritos:

 

Art. 21. Compete à União:

I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;

(…)

 

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(…)

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;

(…)

 

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;

(…)

 

O art. 59, VI, da Carta da República, dispõe que:

 

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

(…)

VI – decretos legislativos;

(…)

 

O decreto legislativo a que se refere o dispositivo acima, tem a função de regular matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional – tal como as previstas no art. 49 da CF – e que produzam efeitos em âmbito externo. A sua aprovação fica condicionada ao regulamento do art. 47, que dispõe:

 

Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros.

 

Da interpretação dos dispositivos da carta constitucional, acima citados, conclui-se que o Presidente da República como Chefe de Estado e na qualidade de representante da União , tem a competência exclusiva e originária para firmar tratados que obriguem a República Federativa do Brasil.

Tais tratados, uma vez submetidos a tal procedimento devem submeter-se ao crivo do Poder Legislativo, por meio do Congresso Nacional a quem cabe a atribuição constitucional de aprovar o pacto internacional e, só assim, autorizar o Executivo a ratificá-lo.

Havidos estes procedimentos, o tratado é promulgado por meio de decreto presidencial, quanto passa a ser dotado do exequatur, ou seja, é valido e eficaz no plano interno.

Cuida-se, em suma, do modo com que se procede à integralização dos tratados internacionais no direito interno brasileiro.

 

 

VI – A INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS – MONISMO E DUALISMO JURÍDICO

 

Como cediço, os tratados internacionais figuram como a principal fonte de direito internacional. Sua  exigibilidade no plano jurídico interno depende, por certo, de sua internalização, ou seja, a forma através da qual a sua força normativa passa a ser eficaz no plano interno dos Estados signatários e o meio pelo qual isso se dá.

Não raro, e dada a complexidade da figura estatal, sobressai-se a matiz conflitual do binômio tratado-direito interno.

Tal enfrentamento guarda estreita relação com o conceito de soberania, e a maior ou menor “elasticidade” desse mesmo conceito varia em atenção à realidade, ou às realidades diversas de cada estado soberano em contraponto com o plano internacional.

Em um estado atual de coisas em que não se pode prescindir do relacionamento interestatal e em que a interdependência em maior ou menor grau é a tônica da “sociedade mundial”, o fator soberania é flexível em razão de fatores de interesse e de conveniência particular de cada estado nacional.

Cediço é que, no plano internacional, todo e cada estado é soberano e, destarte, ao menos em tese, goza das mesmas prerrogativas e tratamento  que os demais, com autonomia volitiva e jurídica para agir e se portar na defesa de seus respectivos interesses soberanos.

Aqui, novamente, não ‘é descabida a comparação do estado soberano com a pessoa jurídica ou física de direito interno, ao menos para o fim de delinear os limites de suas respectivas vontades e a defesa de seus interesses particulares.

Enquanto o ente jurídico ordinário e de direito interno tem sua atuação limitada no mundo jurídico e controlada pelos limites da lei e da função jurisdicional estatal, sem que lhe seja dada a oportunidade de exercitar a escolha de submeter-se ou não ao poder do estado, a pessoa jurídica de direito público internacional, por excelência, não é submetida a qualquer sorte de ordenamento, senão por sua própria vontade. Reside, neste aspecto, um dos caracteres de relevada importância de sua soberania. 

Quando um acordo entre estados é firmado e posto em vigor, é de se supor que sua celebração e eficácia resultaram da vontade de seus respectivos signatários em contrair entre si direitos e obrigações, comprometendo-se a determinadas condutas e guiando-se pela seara da pacta sunt servanda.

Entretanto, como dito, e apesar de o tratado exprimir, em última análise, a vontade de seu signatário, a superveniência de conflitos havidos entre direito interno e externo é uma realidade palpável e concreta.

Com vistas a dirimir e enquadrar a solução de controvérsias desta sorte sob a perspectiva jurídico-científica, é que se deu azo ao surgimento das doutrinas monista e dualista.

A doutrina dualista prega, em síntese que a ordem jurídica interna (direito interno) e a ordem jurídica externa (direito internacional) são conceitos distintos que não se comunicam e não dependem um do outro. Para os adeptos de tal doutrina as fontes donde emanam a produção das normas internas e externas são substancialmente diversas, cindidas uma da outra.

Destarte, segundo professa o dualismo a norma de sorte internacional não adentra a ordem jurídica interna, senão quando os estados, em exercício de soberania e total autonomia de vontades, assim o quiserem, de tal forma que se chega a negar a possibilidade de existência de conflitos de competência.

A doutrina monista, por seu turno, flui em vertentes diversas, das quais uma corrente professa o monismo com primazia no direito interno e outra o monismo com primazia no direito internacional.

O monismo que advoga a primazia do direito interno em detrimento do direito internacional, prega a absoluta soberania estatal, de tal forma que um estado soberano só é sujeito ao seu próprio ordenamento jurídico e a nenhum outro a não ser que sua própria vontade soberana assim o queira.

Tal vertente monista, informa em seu fundamento que a ordem jurídica é una e somente a interna, de forma que, ao firmar um tratado, o estado nada mais faz do que “nacionalizar” a norma internacional e fazê-la parte integrante do seu próprio ordenamento jurídico.

Em razão de tal concepção monista com primazia da ordem interna, os críticos de tal doutrina enfatizam que ela sustenta verdadeira negação à existência do direito internacional como ordem jurídica independente vez que promove a sua estatização.

De outra banda, outra vertente monista reza a primazia do direito internacional sobre a ordem jurídica interna. Por tal concepção doutrinária defende-se o efeito inverso do anteriormente abordado.

Assim, a doutrina monista que prega a primazia do direito internacional, a norma externa absorvida pela vontade do estado predomina sobre a norma interna, devendo haver sempre a prevalência da primeira.

O monismo com primazia na norma internacional é o que predomina na prática jurídica, consagrada pela jurisprudência maciçamente dominante e expressamente declarada pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu artigo 27, que reza que, in verbis, uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.

No direito brasileiro, sem cotejar a recente alteração promovida pela Emenda Constitucional n.º 45, e apesar de haver decisões dos tribunais superiores que se coadunem com a vertente monista da primazia do direito internacional, todos os tratados internacionais firmados pelo Brasil sujeitam-se ao controle de constitucionalidade, tal como ocorre com todas as demais normas internas de hierarquia infraconstitucional.

Verdadeiro marco de tal concepção, e digno de maiores aprofundamentos, é o Recurso Extraordinário de n.º 80.004, cujo acórdão data do ano de 1978. Tal recurso enfrentou um conflito havido entre norma internacional decorrente de tratado celebrado pelo Brasil e norma legal interna promulgada após a vigência de tal tratado. A corte constitucional, no caso em tela, decidiu que a prevalência deveria ser dada à norma interna, em detrimento da norma oriunda do pacto internacional, eis que a primeira, por ser posterior, externava a última vontade do legislador.

A decisão ora mencionada é alvo de severas críticas, que questionam, sobretudo, o fato de o STF ter subvertido o valor dos tratados permitindo que uma norma interna posterior à sua celebração venha a quebrá-los, em atentado à própria segurança jurídica no plano internacional.

Ainda, sobre monismo e dualismo, oportuna é a transcrição da doutrina de Iuri Pedroza Menezes[6]:

 

Uma das bases teóricas do dualismo é a diversidade das fontes de produção normativa das normas jurídicas internas e internacionais. Outra base teórica refere-se aos destinatários das normas: as normas internacionais são formuladas pelos Estados, em conjunto, para serem aplicadas aos próprios Estados; as normas internas são formuladas pelo Estado, unilateralmente, para ser aplicadas aos indivíduos, súditos do Estado.

Em âmbito internacional, o Estado apresenta-se como um membro da sociedade internacional. Em âmbito interno, o Estado apresenta-se, sobretudo, como ente soberano, legitimado a impor regras aos seus indivíduos, através da atividade do jus imperii.

(…)

A corrente monista defende a unicidade da ordem jurídica, não concebendo um sistema jurídico interno absolutamente separado do direito internacional. Como salientou Hildebrando Accioly, “em princípio, o direito é um só, quer se apresente nas relações de um Estado, quer nas relações internacionais”. Essa é também a visão, dentre outros, de Vicente Ráo e de Hans Kelsen. Para essa vertente doutrinária, o confronto entre direito interno e direito internacional jamais se apresentaria como fato, mas como conflito de normas jurídicas.

Segundo esclarece Gerson de Britto Mello Boson, o monismo possui três direções básicas, no que se refere ao seu fundamento: monismo jusnaturalista; monismo lógico e monismo histórico.

O monismo jusnaturalista busca na unidade do Direito elementos metajurídicos, de onde se emanam as normas fundamentais para a convivência humana, subdividindo-se em: a) teleológico, que coloca a unidade do Direito como sendo a unidade da própria vida e do cosmos, como fruto de criação divina, em cuja vontade esplende a natureza; b) racionalista, que não vê em Deus o vértice do Direito, mas sim na unidade da razão humana, considerando o Direito como produto da natureza racional humana; c) psicológico, de fundo subjetivo, que vislumbra o Direito como um resultado da consciência da massa dos indivíduos; d) axiológico, que buscam explicar a unidade do Direito tendo em vista o valor de justiça que o circunda; e) sociológico, que afirma ser a unidade do Direito nada mais que uma tradução das leis biológicas que governam a vida e o desenvolvimento da sociedade, seja nacional, seja internacional.

O monismo lógico, baseado nas teorias kelsenianas, vislumbra o Direito como uma estrutura piramidal alicerçada numa regra fundamental hipotética. Aqui, não se vê o Direito como ciência que tem por objeto fenômenos naturais, mas sim regras de cunho obrigatório.

O monismo histórico afirma ser o Direito um fruto da evolução histórica. Aqui o direito interno e o direito internacional são equânimes, reafirmando expressões da consciência jurídica de uma determinada época. Assim, o direito interno e internacional são frutos de uma mesma passagem histórica, portanto, não podendo ser visto como regramentos separados.

 

 

VII – A HIERARQUIA NORMATIVA

 

Antes que se adentre à análise específica da hierarquia normativa que o direito brasileiro atribui aos tratados internacionais e, mais notadamente aos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, mister seja dispensada atenção a algumas noções básicas do conceito de hierarquia das normas de direito.

Este tópico não cuidará de enquadrar a hierarquia normativa ao sistema constitucional brasileiro, mas sim de traçar e delimitar a sua conceituação específica para o direito, como um todo.

Na doutrina jurídica de Michel Temer[7], tem-se que a hierarquia consiste em na circunstância de uma norma encontrar a sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade numa norma superior.

Partindo-se deste breve postulado, tem-se a dizer que a hierarquia das normas de um estado soberano se revela pela subordinação das normas jurídicas ditas inferiores às normas jurídicas superiores, ou seja, a norma jurídica oriunda de um “tronco normativo” mais elevado é que tem o poder de ditar e estabelecer os limites da norma que se vê abaixo. Pode-se afirmar que o grau mais alto se constitui de normas de caráter fundamental, ou seja, o que se diz de normas-raízes. 

Nesse espectro é comum ver-se a representação do sistema normativo, em função de sua hierarquia, por uma pirâmide, em que o vértice é representado pela dita norma fundamental. Ou fazendo uso de outra metáfora gráfica, representa-se o sistema hierárquico normativo por uma árvore em que a raiz é a norma fundamental.

Nas palavras de Norberto Bobbio[8], a esse mesmo respeito, tem-se que:

 

Dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa é a norma fundamental. (…)

Posto um ordenamento de normas diversas, a unidade do ordenamento postula que as normas que o compõe sejam unificadas. Essa “reductio ad unun” não pode ser realizada se no ápice do sistema não se põe uma norma única, da qual as outras direta ou indiretamente derivem.

Essa norma única não pode ser senão aquela que impõe obedecer ao poder originário do qual deriva a constituição, que dá origem às leis ordinárias, que, por sua vez, dão origem aos regulamentos, decisões judiciárias, etc. Se não postulássemos uma norma fundamental, não acharíamos o “ubi consistam”, ou seja, o ponto de apoio do sistema. E essa norma última não pode ser senão aquela de onde deriva o poder primeiro.

Tendo definido todo o poder jurídico como produto de uma norma jurídica, podemos considerar o poder constituinte como poder jurídico, mas somente se o considerarmos como produto de uma norma jurídica. A norma jurídica que produz o poder constituinte é a norma fundamental.

 

Desta sorte, e visto não se tratar de matéria de dificultada compreensão, permite-se afirmar que a hierarquia normativa em um sistema de direito, qualquer que seja ele, perfaz-se a partir de um fundamento central e nevrálgico de validade, que nada mais é do que uma norma de caráter fundamental.

Tal norma emana de um poder constituinte que, por seu turno é o gerador da Carta Magna do estado soberano. Desta feita, é forçoso concluir (o que não é nenhuma novidade) que a constituição é a própria norma fundamental em um estado de direito.

Decorre como corolário lógico deste raciocínio que nenhuma norma originária do tronco constitucional tem o poder hierárquico de sobrepor-se a este, sob pena de negar-se o estado de direito e, via de conseqüência, o próprio direito.

Assim sendo, o sistema jurídico organizado pressupõe a sobreposição de um sistema de hierarquia normativa, no qual a norma inferior só tem  existência e validade legítimas se sua disciplina se amoldar às fronteiras das normas superiores e, sucessivamente, à própria norma fundamental.

 

 

VIII – OS TRATADOS INTERNACIONAIS E SUA RECEPÇÃO HIERÁRQUICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO – CONCEPÇÃO DE VERTENTES DOUTRINÁRIAS

 

Balizados os elementos fundamentais para o compreensão da temática abordada, tais como conceitos elementares do que sejam os tratados internacionais, entendimento de noções de hierarquia e sistemática de recepção e vigência dos mesmos no ordenamento interno, passa-se a analisar, com mais comprometimento para com  o escopo do estudo, o modo com que a doutrina nacional trata o aspecto hierárquico das normas jurídicas que se inserem em nosso ordenamento pela via dos tratados internacionais.

Sem deixar de lado os conceitos já oportunamente deduzidos sobre as correntes doutrinárias monista e dualista, mas sim interagindo com as idéias lançadas pelas mesmas, pode-se afirmar a existência de três vertentes distintas formadas acerca do tema.

Uma destas três correntes posiciona-se no sentido de entender que os tratados internacionais sobre direitos humanos gozam de supremacia em razão das demais leis, pelo que atribui os mesmos uma hierarquia normativa equivalente aos dispositivos constitucionais.

Outra vertente exara o entendimento de que as normas jurídicas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos têm assento hierárquico de caráter infraconstitucional, ou seja, ingressam no ordenamento jurídico brasileiro na qualidade de leis de índole ordinária.

Há, por fim, uma terceira corrente doutrinária que recebe as normas advindas de tratados internacionais sobre direitos humanos classificando-as também como normas de hierarquia infraconstitucional, mas de caráter especial.

Cada uma das três vertentes restará sumariamente comentada a seguir.

A primeira das três correntes doutrinárias acima citadas, tem por expoente no Brasil, dentre outros,  a jurista Flávia Piovesan, cujo magistério servirá de baliza para a exposição de seus fundamentos.

Em suma, o entendimento da jurista a que ora se alude parte da análise da exegese do artigo. 5.°, parágrafo 2.º, da Constituição Federal, que a seguir se transcreve in verbis:

 

Art. 5.°

(…)

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

Pela interpretação do dispositivo constitucional acima, e segundo entendimento de Fernanda Piovesan, a partir do momento em que o legislador afirmou que os direitos previstos na Carta da República não excluem os decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário, ele teria permitido a inclusão destes mesmos direitos derivados de ajustes internacionais. Em síntese, os direitos encartados nos acordos internacionais seriam,  por previsão do próprio dispositivo supra, também constitucionais.

A interpretação de que o dispositivo em tela faz alusão aos direitos humanos incluídos em tratados, no entendimento da mesma doutrinadora, decorre de um critério sistemático da própria constituição, qual seja, o fato de que a não-exclusão dos direitos é tratada no artigo 5.º, que por seu turno, cuida de regulamentar e delimitar os direitos e garantias fundamentais derivados da Carta Magna. 

Logo, também a não-exclusão das normas sobre direitos humanos, avençadas pelo Estado Brasileiro em tratados internacionais faz com que estes sejam incluídos no próprio rol dos direitos e garantias individuais, como se estivessem, em última análise, inscritos na própria Constituição Federal.

Deste modo, por força da interpretação sistemática e teleológica do texto do artigo 5º, §§ 1º e 2º, a Constituição de 1988 atribuiria  aos direitos enunciados em tratados internacionais de direitos humanos natureza de norma constitucional, de aplicabilidade imediata. Poder-se-ia afirmar que no Brasil se adota o monismo nacionalista, consagrando a idéia de que não há necessidade de lei que reproduza o conteúdo dos tratados internacionais para que os mesmos tenham validade. Os tratados teriam vida própria, autônoma, por força do compromisso internacional celebrado pelo Brasil.

Em suma, segundo a corrente capitaneada por Flávia Piovesan, nenhuma norma legal brasileira pode se sobrepor às normas decorrentes de tratados internacionais que versem sobre direitos e garantias individuais.

Contrariamente à esta corrente, aqueles que professam que as normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos equivalem a leis ordinárias e não tem índole de norma constitucional, contrapõe-se sob o argumento de que o decreto legislativo (através do qual o Congresso Nacional autoriza o Presidente da República a ratificar o tratado, como já oportunamente verificado) não teria o poder de emendar a Constituição. Prosseguem, a exemplo de Ana Cristina Brenner[9], sustentando que:

 

 (…) considerando-se que os tratados internacionais são referendados por decreto legislativo e aprovados por maioria simples, não seria razoável entender que pudessem ser equiparados ou mesmo revogar uma norma constitucional , a qual exige, para ser modificada, maioria qualificada (três quintos) do Congresso, em dois turnos. Isso, evidentemente, acabaria por proporcionar um abalo à rigidez da Constituição e, por conseguinte, restaria comprometido o princípio da segurança jurídica.(…)pode-se referir também que, a par do quorum qualificado, há limites materiais que balizam a reforma da constituição, na medida em que algumas questões sequer podem ser discutidas pelo constituinte reformador. Sendo assim, acaso admitíssemos estarem os decretos legislativos que incorporam tratados no mesmo nível hierárquico das normas constitucionais, dito princípio poderia restar afetado.

 

Outro dos argumentos encabeçados pela primeira corrente é de que os tratados não são aplicados com a natureza de lei ou do próprio decreto legislativo (que só se presta a autorizar a ratificação), mas sim são a própria expressão do direito internacional vigente no território brasileiro. Em suma, seriam recepcionados não como lei interna e dotados de cláusula de recepção plena[10], concluindo-se que somente poderiam ser revogados por procedimento próprio e não pela forma ordinária da lei.

A segunda corrente rebate tal argumento sob o fundamento de que, no dizer de Ana Cristina Brenner, se o próprio legislador erigiu como mandamento constitucional a recepção dos tratados por meios dos decretos legislativos, na dicção do que reza o artigo 49, I, c/c o artigo 84, VIII, seria inconstitucionalidade sustentar a incorporação automática na ordem jurídica, dispensando-se, por via de conseqüência, a edição do decreto pelo executivo para que irradiem efeitos tanto no plano interno como no plano internacional.

Com base neste raciocínio a segunda corrente passa a admitir que os tratados internacionais incorporados por meio do decreto legislativo podem revogar as leis ordinárias que lhes são anteriores e, por meio inverso, as leis posteriores aos tratados podem também lhes revogar a vigência.

Tal posição, inclusive, já foi ratificada pela própria jurisprudência brasileira ao julgar o “controvertido” Recurso Extraordinário 80.004, que, em suma, entendeu que uma lei ordinária posterior a um decreto legislativo que autoriza a ratificação do tratado revoga o mesmo. No caso em comento, tratou-se do Decreto-lei 57663/1966 (Lei Uniforme de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias) que, no entender do Colegiado, teria sido revogado pelo Decreto-lei 429/1969.

Mais um forte argumento da primeira corrente centra-se no que reza o artigo 98 do Código Tributário Nacional, in verbis:

 

Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

 

Pela interpretação de tal dispositivo, em que pese regular matéria de índole tributária, o legislador pátrio teria manifestado a intenção de, em nome da segurança jurídica no plano internacional, fazer com que as regras decorrentes de tratados fossem hierarquicamente superiores à legislação ordinária, eis que, no caso em apreço, detém índole de lei complementar.

Não obstante a essa posição da primeira corrente doutrinária, entendemos que o mesmo raciocínio não pode ser aplicado ao caso do presente trabalho, eis que este versa com especificidade acerca dos tratados que regulam direitos humanos.

Por fim, há uma terceira corrente que, como já inicialmente registrado, entende que os tratados internacionais são equivalentes a normas infraconstitucionais especiais. Em sentido contrário à tese advogada pelos seguidores da segunda corrente, que entende serem os tratados internacionais equiparados a leis ordinárias, podendo-se, portanto,  aplicar aos mesmos o  princípio da lex posterior derogat priori, os partidários deste terceira corrente defendem a prevalência do princípio através do qual a lei especial revoga a geral.

Assim, para esta corrente doutrinária (tratados como leis infraconstitucionais especiais), as convenções internacionais teriam status de leis especiais pelo fato de que as disposições de um tratado resultam de uma predisposição/acordo internacional em que convergem as vontades de estados soberanos. Tais estados delegariam uma fração desta soberania em nome de um escopo maior e comum e, por esta razão não seria plausível de se admitir que qualquer dos signatários deixasse de dar atendimento à norma de direito internacional pelo fato de esta restar simplesmente revogada por leis ordinárias posteriores.

Se assim o fosse a credibilidade e o conceito de segurança jurídica do estado dissidente restaria maculado, bem como prejudicadas por ausência de fidúcia futuras negociações em âmbito internacional.

 

 

IX – DO ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ACERCA DA TEMÁTICA

 

Balizadas as três correntes doutrinárias que tratam da hierarquia dos tratados internacionais em face do ordenamento jurídico brasileiro, passamos a averiguar qual é o entendimento da jurisprudência pátria acerca da mesma temática.

Os nossos tribunais superiores não deixam dúvidas maiores acerca deste assunto, na medida em que a jurisprudência já pacificada pelas cortes assenta-se no entendimento de que os tratados internacionais (aqui não se refere exclusivamente aos que tratam de direitos humanos e/ou garantias e direitos fundamentais, mas também a estes) são recepcionados pela ordem jurídica brasileira com equivalência de leis ordinárias. Em suma, pode-se dizer que a jurisprudência nacional afilia-se ao entendimento dos doutrinadores da segunda corrente outrora abordada.

No entanto, diferentemente do que entende esta segunda corrente (tratado com status de lei ordinária), a inclinação da jurisprudência não nos permite afirmar que as cortes necessariamente (embora haja divergências) recepcionem para as convenções internacionais o princípio de que a lei posterior revoga a lei anterior. No entendimento da maior parte dos julgados a norma decorrente de tratados não é revogada por lei posterior, mas, tão somente, tem a sua prevalência preterida por esta nas hipóteses em que se apresente antinomia.

Isso implica dizer que, de acordo com tal posicionamento, a lei nacional posterior à vigência do tratado não necessariamente o revoga. Ocorre que uma vez verificada a divergência pontual e específica de uma norma internacional e uma norma nacional posterior a ela (mesmo que de caráter ordinário), prevalecerá a segunda naquele aspecto particular antinômico ou divergente.

Tal entendimento, entretanto, em nosso juízo, equivale, ao menos no aspecto prático, à própria aceitação do princípio da lex posterior derogat priori, na medida em que também nega vigência ao tratado internacional.

Quando se adentra à análise das normas de sorte constitucional ou complementares à constituição, como mais veemência as cortes superiores dão prevalência à norma nacional, independentemente de serem posteriores ou anteriores aos tratados.

O posicionamento do STF e do STJ em negar vigência às normas decorrentes de tratados em face da antinomia das leis nacionais é compreensível nas hipóteses em que tais regras internacionais não cuidem de direitos e garantias fundamentais, como os direitos humanos. Posicionamento contrário não se espera ante a redação do parágrafo 2.° do art. 5.° da Carta Magna.

Em nosso entendimento, a divergência de interpretação (sob a qual se concentra a presente pesquisa, como cediço) e eventuais críticas ao entendimento das cortes nesse particular jazem nas decisões que dão prevalência às normas nacionais (mesmo que de índole constitucional) em detrimento das normas decorrentes de tratados, quando estas últimas  versem sobre direitos humanos.

Como meio de exemplificar o entendimento da jurisprudência acerca do tema, atentemos para os colacionados  a seguir transcritos de forma literal:

 

24017265 – HABEAS CORPUS – DEPOSITÁRIO – PRISÃO CIVIL – TRATADO INTERNACIONAL QUE PROÍBE PRISÃO POR DÍVIDA – NORMA INFRACONSTITUCIONAL – EXEGESE DOS ART. 5º, INCISO LXVII, E SEU § 2º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – A convenção americana sobre direitos humanos, conhecida como pacto de são José da costa rica, não suplantou o inciso LXVII da Constituição Federal, daí sendo possível a prisão depositário infiel. Essa norma internacional passou a integrar o sistema jurídico brasileiro com status de norma ordinária; raciocínio diverso consagraria total subversão da rigidez constitucional, prevista no art. 60 e seus parágrafos da Carta Política. (Prof. Luiz Alberto David Araújo – PUC-SP). Ademais, na esteira de inúmeros precedentes do e. STF e desta c. Corte regional, a matéria já não comporta maiores e alongadas discussões, sendo, pois, nítida a intenção da paciente de buscar derradeiro remédio para a inafastável constrição justificada de sua liberdade. Ordem de habeas corpus denegada. (TRT 15ª R. – HC 00997-2003-000-15-00-7 – (00642/2003) – 1ª SDI – Rel. Juiz José Pedro de Camargo R. De Souza – DOESP 03.10.2003) JCF.5 JCF.5.2 JCF.5.LXVII JCF.60

 

30054544 – REINTEGRAÇÃO – CONVENÇÃO Nº 158 DA OIT – IMPOSSIBILIDADE – ARTIGO 7º, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO – NECESSIDADE DE LEI COMPLEMENTAR – Conquanto a Lei Maior, em seu artigo 5º, § 2º, consigne que os direitos e garantias por ela previstos não excluem outros decorrentes de tratados internacionais, também não afasta a circunstância de que referidos atos, ao se incorporarem ao direito positivo pátrio, devem guardar estrita harmonia com a ordem constitucional, tanto no âmbito formal, quanto no material. Nesse contexto, considerando que os tratados e convenções internacionais, ao se incorporarem à ordem jurídica interna, situam-se no plano hierárquico correspondente ao das leis ordinárias, não há como se admitir que referidos atos tratem de matéria reservada constitucionalmente ao crivo de lei complementar. Por essa razão, não se revela compatível com a realidade constitucional brasileira a tese sustentada pelo reclamante, no sentido da viabilidade de sua reintegração com fundamento na Convenção nº. 158 da OIT, na medida em que referido ato versa sobre a matéria prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição, cujo tratamento no plano infraconstitucional está exclusivamente reservado à lei complementar. Recurso de revista não conhecido. (TST – RR 403494 – 4ª T. – Rel. Min. Milton de Moura França – DJU 31.08.2001 – p. 643) JCF.7 JCF.7.I JCF.5 JCF.5.2

 

9005449 – AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE DEPÓSITO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – INADIMPLÊNCIA – DEPOSITÁRIO INFIEL COMINAÇÃO DE PRISÃO CIVIL – CONSTITUCIONALIDADE – PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA – INTERPRETAÇÃO – RECURSO IMPROVIDO – 1. É admissível a prisão civil do alienante que se revela depositário infiel. 2. O texto constitucional em vigor, não inviabiliza a decretação da prisão civil do depositário infiel, o qual, não se afasta, em substância, da redação da carta revogada, o que proporcionou a recepção das lei que regem a matéria. 3. A equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel não ofende a Carta Magna, sendo legitima, a prisão civil, do devedor fiduciante, que descumpre, sem justificação, ordem judicial para entregar a coisa ou o seu equivalente em dinheiro. 4. A prisão civil não é pela dívida, mas pela não entrega do bem dado em garantia ou, o seu equivalente em dinheiro. 5. Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (2 do art. 5 da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do estado-povo na elaboração da sua Constituição, por essa razão, o art. 7, n 7, do Pacto de São José da Costa Rica, deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5, lXVII, da Carta Política. (TAPR – AI 150278500 – (12405) – Curitiba – 1ª C.Cív. – Rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo – DJPR 05.05.2000) JCF.5.2 JCF.5

 

702731 – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – A CF proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII, última parte). É constitucional a prisão civil do depositário infiel de bem gravado com cláusula de alienação fiduciária, porque o depósito a que se refere a CF e como tratado pelo direito positivo brasileiro, não é apenas o depósito convencional, mas também o necessário e legal. Precedente. Os arts. 1º (art. 66 da Lei nº. 4.728/65) e 4º do DL 911/69 definem o devedor alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou credor, em face da natureza do contrato. Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (§ 2º do art. 5º da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração da sua Constituição; por esta razão, o art. 7º, nº. 7, do Pacto de São José da Costa Rica, (“ninguém deve ser detido por dívida: este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da CF. (STF – HC 77.942-1 – RJ – 2ª T. – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJU 11.12.1998) JLAF.4 JCF.5 JCF.5.2 JCF.5.LXVII

 

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn. 1.480 – DF, cujo relatório foi lavrado pelo Ministro Celso de Mello, acerca do mesmo tema, assim decidiu:

 

(…) Paridade normativa entre atos internacionais e normas infraconstitucionais de direito interno.

Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa (…)

No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõe de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, o critério da especialidade.

 

(…) Inadmissível a prevalência de tratados e convenções internacionais contra o texto expresso da Lei Magna (…). Hierarquicamente, tratado e lei situam-se abaixo da Constituição Federal. Consagrar que um tratado deve ser respeitado, mesmo que colida com o texto constitucional, é imprimir-lhe situação superior à própria Carta Política (STF, RTJ 121/270, RE 109.173-SP, rel. Min. Carlos Madeira).

 

(…) A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República. Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento básico. Nenhum valor jurídico terá o tratado internacional que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. (STF, DJU 02.08.96, p. 25.794, ADIn 1.480-3, desp. do presidente em exercício, Min. Celso de Mello).

 

Também, em reforço ao posicionamento do STF, traz-se a baila a decisão relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RHC de n.° 79.785, publicada no Diário de Justiça em 22 de novembro de 2002,  cujo fragmento a seguir se transcreve:

 

(…) Assim como não afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente do que as emendas a ela e aquele que, em consciência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (C.F., art. 102, III, b).

 

 

X – A VERDADEIRA EXEGESE DO PARÁGRAFO 2.° DO ARTIGO 5.º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 

 

Reportemos-nos à redação do parágrafo 2.°, do art. 5.°, da Constituição Federal, em seus estritos termos, para, na seqüência da exposição, analisarmos seus verdadeiros sentido e alcance:

 

Art. 5.°

(…)

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

A jurista Flávia Piovesan, aceitando por correta a enumeração proposta pelo Professor José Afonso da Silva, admite a existência de três categorias distintas de direitos e garantias individuais previstos em nossa Constituição Federal.

A primeira destas categorias cuida dos direitos e garantias individuais expressos no texto constitucional, ou seja, aqueles enumerados pelos  incisos do próprio artigo 5.°, tais como, a título de exemplo, a isonomia de tratamento e direitos entre os sexos, a livre manifestação de pensamento, a inviolabilidade de domicílio e de correspondência, o direito de propriedade, o devido processo legal, dentre inúmeros outros.

A segunda das categorias cuidaria dos direitos e garantias implícitos no texto constitucional, ou seja, aqueles que se subentendem nas regras que tratam das garantias, tal como o direito à identidade pessoal e determinados desdobramentos do direito à vida, por exemplo.

Por fim, enumera-se em uma terceira categoria o conjunto de direitos e garantias fundamentais que decorrem de normas expressas em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Trata-se de uma categoria de direitos fundamentais que não decorre de disposição expressa do texto constitucional e nem de emersão implícita, mas sim de normas externas, às quais a própria Carta da República denota observância.

Para o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a Constituição Federal admite que, além dos direitos explicitamente reconhecidos, existem outros que decorrem do regime e dos princípios por ela (a Constituição) adotados, incluindo também aqueles que derivam de tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm ou podem vir a provir do regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização (…) quais sejam estes direitos implícitos, é difícil de apontar.

A Professora Flávia Piovesan complementa e, a nosso ver, refina o entendimento do Professor Manoel, ao lecionar que se os direitos que decorrem dos princípios e do regime adotados pela Constituição Federal são implícitos e de difícil caracterização no texto legal, o mesmo não pode ser dito em relação aos direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário. Isso porque os direitos incorporados ao nosso ordenamento pela via dos tratados internacionais não são implícitos nem mesmo de difícil caracterização. Pelo contrário, a norma jurídica incorporada pela via dos tratados é expressa e explícita no texto destes mesmos documentos. Prossegue acrescentando que se os direitos implícitos apontam para um universo de direitos impreciso, vago, elástico e subjetivo, os direitos expressos na Constituição e nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, compõem um universo claro e preciso de direitos . Quanto a estes últimos, basta examinar os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo Brasil, para que se possa delimitar , delinear e definir o universo dos direitos internacionais constitucionalmente protegidos.

Como bem se observa do posicionamento interpretativo ora traçado, há uma nítida diferença entre as razões esposadas pelo mesmo e a posição atual da jurisprudência brasileira. Pode-se dizer o mesmo em relação às primeira e terceira correntes doutrinárias já oportunamente abordadas por este  trabalho.

Vê-se, no entendimento da corrente professada e sustentada pela jurista Flávia Piovesan, que a recepção dos tratados internacionais sobre direitos humanos, dos quais seja o Estado Brasileiro signatário, se dá em pé de hierarquia constitucional, e não na forma de lei ordinária e, nem mesmo, de lei ordinária de caráter especial, na forma com que defendem as já suscitadas correntes doutrinárias.

Em nosso entendimento, a tendência de pensamento dessa vertente que considera tratados internacionais sobre direitos humanos em posição hierárquica equivalente a de norma constitucional, mesmo a contrário senso da posição atual do Pretório Excelso, nos parece a mais acertada e sintonizada com a interpretação do parágrafo 2.°, do artigo 5.°, da Carta da República.

Entendemos, assim,  que a corrente que professa a integração das normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos na mesma hierarquia de leis ordinárias não pode prosperar.

Para Valério de Oliveira Mazzuoli[11], que compartilha do mesmo entendimento, se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados “não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5.º, § 2.º), é porque ela própria está a autorizar que esses direitos e garantias constitucionais constantes dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil “se incluem” no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar certos direitos e garantias, a Constituição “os inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando, assim, o seu “bloco de constitucionalidade”. Segundo o magistério de André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, à expressão “não excluem” constante do parágrafo 2.º do art. 5.º da Carta Magna brasileira “não pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá. (…) Quanto aos demais tratados de Direito Internacional Convencional particular, aí sim, pensamos que eles cedem perante a Constituição mas tem valor supralegal, isto é, prevalecem sobre a lei interna, anterior e posterior. Ou seja, adotamos a posição que se encontra expressamente consagrada nas Constituições francesa, holandesa e grega”.  E assim o fazendo, o status do produto normativo convencional não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. (…) tanto os direitos como as garantias constantes dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, passam, com a ratificação desses instrumentos, a integrar o rol dos direitos e garantias constitucionalmente protegidos.  É também a lição de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, para os quais, todas as garantias processuais penais da Convenção Americana sobre Direitos Humanos “integram, hoje, o sistema constitucional brasileiro, tendo o mesmo nível hierárquico das normas inscritas na Lei Maior” (…).  A Prof.ª Ada Pellegrini, a esse propósito, bem leciona: “… a partir de 6.11.92, com a promulgação do Decreto n. 678, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, passou a integrar o ordenamento pátrio. E as normas de garantia da Convenção guardam, no plano interno, o mesmo nível hierárquico das regras do artigo 5.º da Constituição, porquanto, nos termos de seu § 2.º, ‘os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais de que a República do Brasil seja parte. (…) Dessa forma, mais do que vigorar como lei interna, os direitos e garantias fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil, por força do mencionado artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, passam a ter, por vontade da própria Carta Magna, o status de “norma constitucional”. A isto se acrescenta o argumento, sustentado por boa parte da doutrina publicista, “de que os tratados de direitos humanos apresentam superioridade hierárquica relativamente aos demais atos internacionais de caráter mais técnico, formando um universo de princípios que apresentam especial força obrigatória, denominado jus cogens”. Tais regras de jus cogens, a exemplo dos direitos humanos fundamentais, aliás, tem o caráter de serem normas imperativas de direito internacional geral, sendo consideradas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional dos Estados, em seu conjunto, como normas que não admitem acordo em contrário (é Direito imperativo para os Estados) e que somente podem ser modificadas por uma norma ulterior de direito internacional geral que tenha, ademais, o mesmo caráter. Assim, somente surgindo nova norma de direito internacional geral é que os tratados existentes que estejam em oposição com esta norma se tornarão nulos e terminarão.

Para o Professor Celso de Albuquerque Mello, também citado por  Valério de Oliveira Mazzuoli,  o § 2.° do art. 5.° da Constituição Federal não penas empresta hierarquia constitucional aos tratados de proteção aos direitos humanos, mas mais do que isso, chegando a ponto de afirmar-se ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma Constituição posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada, postura esta que tem grande vantagem de evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar a constitucionalidade dos tratados internacionais.

O mesmo entendimento já foi compartilhado pela Juíza Luciane Storel da Silva, na forma com que se infere do colacionado de jurisprudência a seguir:

 

24013598 – DIREITOS HUMANOS DO TRABALHADOR – PREVALÊNCIA SOBRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PREVISTO NO ART. 37, II, CF, APLICADO AO ESTADO – Os direitos humanos enunciados em tratados internacionais possuem natureza de norma constitucional, na esteira do art. 5º, § 2º, CF. Ao lado dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho, insculpidos no art. 1º, CF, visam salvaguardar os direitos do ser humano e não as prerrogativas do Estado. Assim, o princípio da legalidade trazido no art. 37, II, CF, subordina-se àqueles primeiros, não podendo desgarrar-se, sob pena de violação a normas internacionais ratificadas por nosso país. (TRT 15ª R. – Proc. 31599/01 – (8046/02) – 3ª T. – Relª Juíza Luciane Storel da Silva – DOESP 04.07.2002 – p. 28) JCF.37 JCF.37.II JCF.1 JCF.5 JCF.5.2

 

Também o Desembargador Carlos Alberto Bencke, da 5.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entendendo pela incorporação imediata dos tratados sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil, assim decidiu:

 

PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – HABEAS CORPUS – Proibição da prisão cível, pelo nosso ordenamento jurídico, que recepcionou a convenção americana sobre direitos humanos, aprovada em San Jose da Costa Rica. Aplicação do par. 2º do art. 5º da Constituição Federal, que enseja ao interessado invocar tratados internacionais, sem necessidade de legislação interna específica. Ordem concedida. (TJRS – HC 599070166 – 5ª C.Cív. – Rel. Des. Carlos Alberto Bencke – J. 15.04.1999)

 

Para Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior[12], entre nós, por vontade constitucional, os direitos e garantias fundamentais previstos nas convenções ratificadas pelo Brasil têm status de norma constitucional, sem embargo de que as autoridades do Executivo e do próprio Judiciário, “por falta de afinidade com a aplicação das normas de Direito Internacional, têm se equivocado com freqüência, em detrimento dos princípios que devem reger as boas relações internacionais”. Não fosse assim, perderia todo o sentido a previsão do parágrafo 2.º do art. 5.º da nossa Carta Magna.

Percepção diversa da inteligência e da exegese do parágrafo 2.º, do art. 5.º, de nossa Constituição Federal faria com que o ordenamento jurídico brasileiro fosse dirigido à contramão da própria tendência e evolução da ciência jurídica internacional. As mais modernas, eficazes e avançadas constituições do mundo seguem, no que tange a normas decorrentes de tratados sobre direitos humanos, o mesmo entendimento da corrente avalizada pelos estudiosos ora comentados, ou seja, que estas integram o ordenamento jurídico dos estados signatários em grau de hierarquia constitucional.

A Constituição Portuguesa, datada de 2 de abril de 1976, em seu artigo 16, reza, in verbis, o que segue:

 

Artigo 16.º
(Âmbito e sentido dos direitos fundamentais)

1. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.

2. Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

 

A Constituição Alemã, somada às emendas que lhe foram acrescentadas ao longo do tempo, reza expressamente que as normas gerais de direto internacional público fazem parte integrante de seu texto, sobrepondo-se, inclusive às leis nacionais e, reitera que as normas decorrentes de tratados internacionais constituem-se em fonte de direitos e obrigações para os seus habitantes, na forma do texto que se depreende de seu artigo 25.

A Constituição Espanhola de 1978, tida por exemplo ao reconhecimento que relega às convenções internacionais sobre direitos humanos, chega a submeter o procedimento de denúncia aos tratados internacionais à aprovação do Poder Legislativo e, além disso, prescreve que, esta eventual denúncia deve ser levada a cabo pelos procedimentos previstos nos próprios instrumentos denunciados, ou, se o caso, de acordo com as regras e princípios gerais de direito internacional.

Tem-se, na própria América Latina o exemplo da Constituição Chilena, a qual em razão das modificações havidas por ocasião do plebiscito de 30 de julho de 1989 que promoveram a sua reforma, passou a integrar na parte final de seu artigo 5.°, que é dever dos órgãos do Estado respeitar e promover os direitos garantidos por esta Constituição, assim como os tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes.

Ainda na América Latina, a Constituição da Colômbia, de 1991, reza que os tratados sobre direitos humanos que tenha sido ratificados pelo Estado Colombiano prevalecem na ordem interna e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia. Na mesma esteira é o que determina a Constituição Argentina, que a partir da reforma constitucional de 1994, passou a relegar a determinados tratados internacionais sobre direitos humanos grau de hierarquia constitucional.

Para Antônio Augusto Cançado Trindade[13], a tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos , é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central. (…) Os fundamentos últimos da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o consenso generalizado formado hoje em torno da necessidade de internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação cultural de nossos tempos, juridicamente viabilizada pela coincidência de objetivos entre o direito internacional e o direito interno quanto à posição da pessoa humana. Como, também neste domínio, a um Estado não é dado deixar de cumprir suas obrigações convencionais sob o pretexto de supostas dificuldades de ordem constitucional interna, com mais razão ainda não deve haver desculpa para um Estado de não se conformar a um tratado de direitos humanos no qual é parte pelo simples fato de seus tribunais interpretarem, no plano de direito interno, o tratado de modo diferente do que se impõe no plano do direito internacional.

 Debruçando-se sobre o tema afeto à eficácia das garantias fundamentais gravadas na Constituição, pontifica Flávia Piovesan ao adotar a concepção de Ronald Dworkin[14]; (…) que o ordenamento jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio sistema constitucional.

Dado o conteúdo de reflexões ora trazido a baila, não é de se questionar a real intenção do legislador constitucional brasileiro que, ao redigir o parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Constituição Federal, não manifestou outro posicionamento senão o de garantir que os tratados internacionais que englobem mataria afeta a garantias fundamentais e direitos humanos fossem incorporados pela Carta da República, desde que ratificados pelo Estado Brasileiro.

Não se entende, em que pesem os argumentos doutrinários e jurisprudenciais diversos, que seja outra a exegese do mencionado dispositivo de lei.

Reforço lógico deste posicionamento é materializado pelo fato de o texto da Lei Suprema ter inscrito a não-exclusão das normas decorrentes de tais tratados justamente do artigo que trata dos direitos e garantias individuais.

Ademais, em ratificação desta idéia, deve-se atentar ao fato de o constituinte também ter disposto nos artigos 1.º, inciso III e 4.º da Carta Magna, respectivamente, o que segue:

 

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;

(…)

 

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos[15];

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Doutrina Vinculada

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

X – concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

 

O constituinte de 1988 não só deu prevalência aos direitos humanos à regência das relações internacionais, como também, ao tratar dos direitos e garantias individuais (nos quais, como visto, incluem-se os direitos decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos), estatuiu no parágrafo primeiro do artigo 5.º, a seguinte redação:

 

§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

 

Logo, as normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos, pela própria exegese do parágrafo 2.º, do artigo 5.º, da Lei Maior, são recepcionadas com hierarquia de regras constitucionais, revogando, inclusive, regras de mesma carga hierárquica, visto que a disposição expressa de não exclusão de outros direitos e garantias fundamentais decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte impõe tal interpretação.

Seguindo-se o raciocínio, pela interpretação combinada do parágrafo 1.º do mesmo dispositivo constitucional, depreende-se que tais normas não só têm força suficiente para se sobrepor às próprias normas constitucionais anteriores a elas, como também têm aplicabilidade imediata no ordenamento jurídico nacional, desde que ultimados os trâmites exigidos à sua plena exigibilidade na ordem interna.

Considerando que a previsão para a ratificação dos tratados internacionais, e sobretudo para aqueles que incluam novo rol de direitos e garantias fundamentais (direitos humanos), é expressamente prevista no texto do parágrafo 2.º, do artigo 5.º, não há o que se falar em atento à soberania com a recepção de tais normas com carga hierárquica constitucional. Isso porque se a Carta da República prevê tal recepção no rol não excludente dos direitos e garantias fundamentais já expressamente consignados no texto constitucional, também prevê que o próprio exercício da soberania do Estado delega à República Federativa do Brasil o exercício soberano do direito de escolha.

Em suma, trata-se do princípio da autonomia da vontade aplicado em nível de direito público internacional. O exercício da soberania de um Estado não se revela pelo ato temerário de descumprir obrigações internacionalmente assumidas em nome de sua independência política, mas sim pela liberdade de aderir ou não a um pacto de índole internacional. O Estado Soberano não é livre para descumprir um tratado, mas sim tem liberdade para decidir se é de seu interesse obrigar-se ou não para com o objeto do pacto internacional.

Um vez signatário de um acordo, entendemos que aos Estados incide de forma  plena a aplicação e vigência o princípio jurídico universal da pacta sunt servanda, através do qual não lhe é dado escusar-se à observância da avença firmada.

Para Valério de Oliveira Mazzuoli[16], aprovando um tratado internacional, o Poder Legislativo se compromete a não editar leis a ele contrárias. Pensar de outra forma seria admitir o absurdo. Aprovado o tratado pelo Congresso, e sendo este ratificado pelo Presidente da República, suas disposições normativas, com a publicação do texto, passam a ter plena vigência e eficácia internamente. E de tal fato decorre a vinculação do Estado no que atine à aplicação de suas normas, devendo cada um dos seus Poderes cumprir a parte que lhes cabe nesse processo: ao Legislativo cabe aprovar as leis necessárias abstendo-se de votar as que lhe sejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentá-las, fazendo todo o possível para o cumprimento de sua fiel execução; e ao Judiciário incumbe o papel preponderante de aplicar os tratados internamente bem como as leis que o regulamentam, afastando-se da aplicação de leis nacionais que lhes sejam contrárias. (…) Se o Congresso Nacional dá sua aquiescência ao conteúdo do compromisso firmado, é porque implicitamente reconhece que, se ratificado o acordo, está impedido de editar normas posteriores que o contradigam. Assume o Congresso, por conseguinte, verdadeira obrigação negativa, qual seja, a de se abster de legislar em sentido contrário às obrigações assumidas. Admitir, pois, que o Legislativo possa editar lei, revogando o tratado anteriormente firmado, é reconhecer, nas palavras da Dra. Mirtô Fraga “o predomínio das Assembléias, em oposição a comando superior que declara harmônicos e independentes os Poderes do Estado”. E, se porventura editadas, tais leis jamais terão o condão de afastar a aplicação interna do tratado concluído anteriormente.

Em reforço à mesma tese, não se pode deixar de observar o texto do artigo 27, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que estatui que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.

Considerando que o Brasil é signatário de tal convenção internacional, é de se concluir que assumiu no plano externo a obrigação (pacta sunt servanda) de respeitar as normas decorrentes dos tratados em que figure como parte e de não descumpri-las sob o argumento de que sua legislação dispõe em sentido contrário às mesmas. Assumiu a obrigação internacional de fazer com que as normas decorrentes dos tratados sejam aplicadas em seu território e á sua gente, bem como concordou em não editar nem fazer prevalecer leis internas que contrariem as disposições tratadistas.

Para Antônio Augusto Cançado Trindade[17]  Como poderia um Estado Parte em um tratado explicar aos demais Estados Partes a derrogação ou a revogação do referido tratado por uma lei? Que segurança jurídica ofereceria este Estado no cumprimento de seus compromissos internacionais ?

 

 

XI – A EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 45 – ACRÉSCIMO DO PARÁGRAFO 3.°, AO ARTIGO 5.°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

 

A Emenda Constitucional de n.° 45, datada de 08 de dezembro de 2004, conhecida por Reforma do Judiciário, que deu recepção à PEC n.° 29/2000,  promoveu uma série de alterações no texto constitucional. Dentre as modificações havidas, uma é de interesse especial ao objetivo da presente pesquisa. Trata-se do acréscimo do parágrafo 3.º, ao artigo 5.º, da Constituição Federal.

Sem excluir os demais parágrafos 1.° e 2.°, a referida emenda adicionou a seguinte redação:

 

§ 3.º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

 

Logo, a redação do artigo 5.º da Carta Magna, passou, com omissão dos seus respectivos incisos a registrar o seguinte ordenamento:

 

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3.º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

 

Como bem se vê da interpretação literal do texto acima transcrito, ao que tudo indica, a intenção de legislador reformista foi a de pacificar a alongada discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito da recepção hierárquica das normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A interpretação combinada de tais dispositivos (os já existentes e o recente parágrafo 3.º), em nosso entender, teve, contudo, um efeito inverso, na medida em que ao invés de pacificar o entendimento já divergente acerca da matéria, veio a fomentar as já acaloradas discussões, lançando mais dúvidas e opiniões desencontradas.

A redação acrescida propicia e busca endossar o entendimento de que as normas sobre direitos humanos oriundas de convenções internacionais de que o Brasil seja signatário são, originalmente recepcionadas em nosso ordenamento no patamar hierárquico de normas ordinárias de direito (leis federais).

Na medida em que o acrescido parágrafo determina a necessidade de quorum privilegiado como condição para que as normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos adquiram a equivalência hierárquica de emenda à Constituição, está, por lógico, a admitir que todas as outras regras incorporadas por tratados internacionais que não sejam recepcionadas pela forma de votação descrita no texto do dispositivo acrescentado são de hierarquia normativa equivalente às leis ordinárias.

Para o Professor Aldo de Campos Costa[18], a inclusão do parágrafo 3.º, ao art. 5.º da Constituição Federal, que estabelece que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas da Constituição, foi absolutamente infeliz. (…) a redação do dispositivo reforçou a interpretação que sustenta a paridade hierárquica entre tratado e lei federal, que não é endossada (…) pelo artigo 5.°, parágrafo 2.°, da Constituição de 1988 (…)

O raciocínio do doutrinador acima citado ganha fundamento e procedência, na medida em que se analisam as idéias já lançadas oportunamente no presente trabalho.

Uma relevante dúvida gerada pela alteração do texto constitucional centra-se no questionamento acerca dos tratados internacionais firmados pelo Brasil antes do advento da Emenda de n.° 45. Nesse diapasão, questiona-se em que grau de hierarquia estão posicionados tais tratados internacionais de proteção de direitos humanos.

Se o legislador admitiu que os tratados aprovados pelo rito do novel parágrafo 3.º, do artigo 5.º, da Constituição Federal têm hierarquia de emenda à Constituição, qual é a hierarquia atribuída às convenções celebradas anteriormente à vigência de tal dispositivo? São de índole constitucional ou de grau ordinário? Haveria necessidade de que os “antigos” tratados fossem novamente submetidos ao crivo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal? Em havendo tal necessidade, por que meio seria instrumentalizado este “novo” procedimento de votação?

Os problemas gerados pelos questionamentos ora suscitados trazem reflexos práticos para o Estado Brasileiro na ordem jurídica internacional. Sendo o Brasil signatário dos mais importantes tratados internacionais sobre direitos humanos, a reação das demais partes (estados estrangeiros e entes públicos internacionais), não será, por certo, abonadora e compreensiva ao tomar conhecimento de que os compromissos firmados no plano das convenções sobre direitos humanos podem não ser tomados como fundamentais pelos tribunais brasileiros e considerados à margem das normas constitucionais, bem como, relegados a um plano hierárquico de índole ordinária, podendo, inclusive, ser revogados por legislação interna posterior.

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, por ocasião do exame realizado sobre a PEC 29/2000, bem observando as conseqüências advindas do acréscimo do parágrafo 3.º, ao artigo 5.°, da Carta Magna, chegou a sugerir que do texto da proposta de emenda fosse suprimida a parte final, ou seja, opinou no sentido de que a redação do dispositivo fosse limitada ao que segue:

 

Os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional.

 

Uma vez que o  texto sugerido pelo mencionado conselho tivesse sido adotado pelo legislador reformista, a celeuma que ora se estabeleceu teria sido evitada e, ao mesmo tempo, a idéia de equivalência de normas tratadistas sobre direitos humanos teria sido, por fim, alocada na posição que defendemos por correta, qual seja, a de hierarquia de norma constitucional.

De todo raciocínio até o momento desenvolvido, permite-se afirmar, inclusive, que a introdução de um parágrafo 3.º ao texto originário do artigo 5.° da Constituição Federal, quer seja pela redação que lhe atribuiu a Emenda Constitucional n.° 45, quer seja pela própria redação sugerida pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, seria desnecessária.

Tal conclusão tem por motivação a própria redação já consolidada pela inteligência do parágrafo 2.º do mesmo dispositivo constitucional, a qual, como já narrado e fundamentado, já teria por si só a força de regulamentar a matéria afeta à receptividade hierárquica das normas de tratados internacionais sobre direitos humanos.

Em suma, a simples interpretação de que os direitos e garantias enumerados no artigo 5.º da Carta Magna não excluem outros decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário (na forma do parágrafo 2.º), já bastaria ao entendimento de que tais normas convencionais seriam recepcionadas com status hierárquico equivalente às regras constitucionais, eliminando a necessidade de qualquer sorte de reforma.

Dessa forma, se de um lado a intenção da emenda em questão foi a de pacificar as divergências havidas em torno da interpretação dada ao tema, por outro lado ela só veio a semear maiores dúvidas e desencontro de posições. Isso, sem nem mesmo cogitar o retrocesso que tal implemento normativo legou à legislação pátria face às modernas tendências do direito internacional.

Outro aspecto a ser abordado em relação à suscitada emenda, foi convenientemente ventilado pelo Professor Valério de Oliveira Mazzuoli, para quem a própria alteração em comento é inconstitucional.

No raciocínio do jurista citado,  se a Constituição Federal permite que tratados internacionais de direitos humanos ingressem no ordenamento interno brasileiro, revestindo-se da natureza de “norma constitucional”, e, dispondo o produto normativo desses tratados sobre direitos e garantias individuais, a outra conclusão não se chega senão a de que, pelo mandamento do § 1.º do art. 5.º, e do § 4.º, inciso IV, do art. 60 da Carta de 1988, após a entrada de tais normas no ordenamento jurídico brasileiro, não há mais sequer uma no ordenamento jurídico brasileiro, não há mais sequer uma maneira de suprimir qualquer dos direitos provenientes daquele produto normativo convencional, nem mesmo através de Emenda à Constituição[19]. Ou seja, a partir do ingresso de um tratado internacional de direitos humanos no ordenamento constitucional brasileiro, todos os seus dispositivos normativos passarão, desde o seu ingresso, a constituírem cláusulas pétreas, não mais podendo ser suprimidos por qualquer maneira.

 

XII – PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS  – PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA E A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL – ABORDAGEM EXEMPLIFICATIVA E PRÁTICA DA TEMÁTICA PESQUISADA

 

Por intermédio do decreto-legislativo de n.° 226 de 12/12/1991, incorporou-se ao ordenamento jurídico brasileiro o texto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica.

A observação e análise desta convenção internacional é pertinente ao presente estudo na medida em que se presta a exemplificar com fatos concretos a divergência de entendimentos de que cuida a temática da pesquisa.

A Constituição Federal Brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1998, dispõe no inciso LXVII, do artigo 5.°, o que segue:

 

LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

(…)

 

Da interpretação clara do dispositivo, vê-se que o ordenamento brasileiro não permite a prisão civil e por dívidas, exceto nas hipóteses em que se configure o inadimplemento de prestação alimentícia e, também, depósito infiel.

Todavia, o Brasil, como exposto, é signatário da Convenção Americana de Direitos humanos, a qual, em seu artigo 7.º, item 7, dispõe in verbis:

 

Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal

(…)

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

 

Denota-se da redação de ambos os dispositivos que, enquanto a Constituição Federal veda a prisão por dívida, admitindo a pena privativa de liberdade apenas para as dívidas de alimentos e o depósito infiel, a convenção em comento limita a prisão civil tão somente ao caso do alimentante inadimplente.

Desse modo, surge um conflito entre a legislação constitucional brasileira e a norma decorrente de acordo internacional, qual seja, a divergência sobre a possibilidade, ou não, de prisão do depositário infiel.

Para o deslinde da questão, necessário, portanto, seja interpretado o acordo internacional firmado e ratificado pelo Estado Brasileiro sob o seu aspecto de recepção hierárquica, tal como abordado pela presente pesquisa até o momento.

Os dispositivos em conflito no presente caso (norma constitucional e norma de tratado internacional) cuidam, ambos, de questão afeta a direitos humanos, prerrogativas e direitos fundamentais, ou seja, têm por objeto normas de regulamentação do direito de liberdade do indivíduo, na medida em que vedam a prisão por dívidas enumerando de forma taxativa, e em caráter de exceção,  as hipóteses em que a mesma pode ser dar.

Se, de um lado, o Estado Brasileiro, como dito, é signatário de tal pacto internacional sobre direitos humanos, de outro lado, a sua própria lei interna (neste caso de índole constitucional) dispõe de modo diverso.

À luz de tudo o que já se fundamentou na presente pesquisa, poder-se-ia equacionar o conflito emergido de duas maneiras distintas e incompatíveis entre si. Uma delas, seria a aplicação do pensamento da corrente que entende que as normas decorrentes de tratados internacionais são recepcionadas como hierarquia de legislação ordinária; a outra, por lógico, seria a resolução por uso da corrente que entende que as normas de tratados internacionais sobre direitos humanos são recepcionadas como regras legais de hierarquia constitucional.

Para o primeiro caso, a conclusão seria óbvia, ou seja, ante o conflito do inciso LXVIII, do artigo 5.°, da Constituição Federal e o artigo 7.°, n. 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a prevalência seria do primeiro dispositivo, ou seja, da legislação brasileira. Para a segunda corrente de pensamento, a solução seria exatamente a inversa, ou seja, prevaleceria e determinação do pacto internacional, eis que versa sobre questão afeta a direitos humanos e, portanto, tem grau hierárquico equivalente à norma constitucional, por força do parágrafo 2.°, do artigo 5.°, da Constituição Federal.

A questão já foi enfrentada pelos Tribunais Pátrios em diversas oportunidades. Em relação a isso, como já observado, a posição dominante é no sentido de negar vigência aos tratados internacionais quando se põe em conflito com a Carta Magna, demonstrando uma tendência monista com primazia da ordem jurídica interna, sobretudo em relação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.

No entanto, em sentido contrário, é de se destacar  a decisão do Ministro Marco Aurélio, membro do STF, no julgamento do Habeas Corpus nº. 72183-4-SP, onde assim proveu:

 

Ainda que se pudesse colocar em plano secundário os limites constitucionais, a afastarem, a mais não poder, a possibilidade de subsistir a garantia da satisfação do débito como meio coercitivo, no caso de alienação fiduciária, que é a prisão, tem-se que essa, no que decorre não da Carta Política da República, que para mim não a prevê, mas do Decreto-Lei nº. 911/69, já não subsistente na ordem jurídica em vigor, porquanto o Brasil, mediante o Decreto nº. 678, de 6 de novembro de 1992, aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, ao chamado Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. É certo que somente o fez cerca de vinte e dois anos após a formalização. Entrementes, a adoção mostrou-se linear, consignando o artigo 1º do Decreto mediante o qual promulgou a citada Convenção que a mesma há de ser cumprida tão inteiramente como nela se contém. Ora, o inciso VII do art. 7º revela que: ” ninguém deve ser detido por dívidas”.Este princípio não limita, os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Constata-se, assim, que a única exceção contemplada corre à conta de obrigação alimentar. A promulgação sem qualquer reserva atrai, necessariamente e no campo legal, a conclusão de que hoje somente subsiste uma hipótese de prisão por dívida civil, valendo notar a importância conferida pela Carta de 1988 aos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A teor do disposto no § 2º do art. 5º, tais documentos geram direitos e garantias individuais   (…) Em síntese: hoje não mais subsiste o Decreto-lei nº. 911/69 na parte em que dispunha sobre prisão civil quando não pagas as prestações ajustadas e ausente a devolução do bem por aquele que, a um só tempo, em mesclagem de qualificações, o adquiriu e o alienou ao credor fiduciário.

 

O Superior Tribunal de Justiça, na mesmo sentido do entendimento atualmente dominante, também já manifestou o entendimento corroborado pela atual tendência doutrina do direito internacional, na forma com que se depreende dos anexos colacionados:

 

HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – INADMISSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ E STF – SEGURANÇA CONCEDIDA.O art. 5º, §2º da CF dispõe que os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime jurídico e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que o país seja parte. Por sua vez, no pacto de San José da Costa Rica, dispôs-se: ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. (Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), art. 7º, item 7). Ilação inafastável a de que deixa de ser possível a prisão do depositário infiel. Em trabalho publicado na revista dos tribunais sob o título de prisão civil do depositário infiel em face da derrogação do art. 1.287 do Código Civil pelo Pacto de São José da Costa Rica, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe sustentam que embora constitucional a permissão de prisão civil do infiel depositário, está em plena vigência, como norma de caráter geral, o Pacto de San José da Costa Rica, derrogatório de todas as previsões legislativas de caráter geral sobre prisão civil, principalmente o art. 1.287 do Código Civil e os artigos 885, par. único; 902, § 1º e 904, par. único, todos do CPC. ( HC nº. 99.017387-9, de Fraiburgo, Des. João José Schaefer – TJSC – HC00.019088-4ª C. Cív. – Rel. Des. Pedro Abreu, j. 09.11.2000).

HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – 1. Cabe habeas Corpus para afastar a possibilidade de prisão civil a ser decretada em sentença proferida nos autos de ação de depósito, na qual o paciente, conforme informações do Juízo de Direito, será compelido a depositar o bem alienado fiduciariamente, ou o equivalente em dinheiro, sob pena de prisão, sendo irrelevante que a execução do referido decisum esteja subordinada ao seu trânsito em julgado. 2. A jurisprudência deste Tribunal (Resp. nº. 149.518-GO, Corte Especial, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 05.05.99) firmou-se no sentido de não admitir a prisão civil de depositário infiel vinculado a contrato de alienação fiduciária. 3. Recurso de habeas corpus provido”. (STJ – Ac. 199901043204 – RHC 9304-MG- 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – DJU 27.03.2000, p. 00091).

HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Decidiu a Corte Especial, ao julgar a assentada 20.10.2000, o HC 11.918-CE, manter a sua anterior orientação, consubstanciada no julgamento proferido no Resp. nº. 149.518-GO, no sentido de que é ilegítima a prisão do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. II- Habeas Corpus concedido”. ( STJ. HC 15332-SP; 3ª T. Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJU 30.04.2001, p. 130).

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PRISÃO CIVIL – IMPOSSIBILIDADE – POSIÇÃO UNIÂNIME DO STJ – O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ATRAVÉS DE SUA CORTE ESPECIAL, NO RESP. 149518, JULGADO EM 11.5.99, RELATADO PELO MIN. RUY ROSADO DE AGUIAR, POR UNANIMIDADE DE VOTOS, UNIFORMIZOU A JURISPRUDÊNCIA NO SENTIDO DE QUE NÃO CABE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, PORQUE NÃO EXISTE DEPÓSITO EFETIVO NA ESPÉCIE- RECURSO PROVIDO. ( TAPR – AC 142766500 – Curitiba, 4ª C. Cív., Rel. Juiz Clauton Camargo, DJPR, 17.03.2000).

 

 

XIII – CONCLUSÃO

 

A partir das pesquisa desenvolvida pelo presente trabalho, há de se enumerar certas ponderações e conclusões.

Primeiramente, há que se assumir que a doutrina brasileira é divergente acerca da forma de recepção dos tratados internacionais sobre direitos humanos, em face de sua posição hierárquica frente ao ordenamento jurídico nacional. Tal divergência, tem seu cerne nas diferentes interpretações dadas à exegese do parágrafo 2.º, do artigo 5.º, da Constituição Federal Brasileira.

A jurisprudência nacional, por seu turno, e ao contrário da interpretação dada em estudos de direito comparado,  sobretudo o Supremo Tribunal Federal, assenta entendimento de que, diante do conflito entre a norma tratadista e a Constituição Federal, deve prevalecer a norma insculpida nesta última, eis que considera que as normas decorrentes de tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico brasileiro em posição de equivalência à legislação ordinária (leis federais).

Em contraposição a parte do entendimento doutrinário e em discordância da inclinação jurisprudencial, há a corrente que defende que as normas decorrentes de tratados internacionais, quando estes versarem sobre direitos e garantias fundamentais, devem ser recepcionadas pela ordem jurídica interna com o status de norma constitucional, segundo a interpretação que atribuem ao parágrafo 2.º, do artigo 5.º, da Constituição Brasileira. A mesma corrente, entretanto, exara o entendimento de que se as normas oriundas de tratados internacionais não tiverem por objeto direitos humanos devem ser recepcionadas na mesma posição hierárquica da leis ordinárias.

Como resultado do raciocínio firmado acerca dos diferentes posicionamentos, tanto sob a égide constitucional, quanto sob o aspecto do próprio direito internacional, partilhamos do entendimento do grupo de juristas que entendem que as normas decorrentes de tratados internacionais sobre direitos humanos devem ser recepcionadas pela legislação brasileira com status constitucional, tornando sem efeito a legislação nacional (inclusive as normas constitucionais) em tudo quanto dispuserem de forma antinômica.

Por decorrência lógica do entendimento acima esposado, consideramos que a introdução havida por força do acréscimo do parágrafo 3.º, do artigo 5.º, da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional de n.° 45, ao invés de pacificar a alongada divergência de interpretações sobre a hierarquia dos tratados, veio a tumultuar a celeuma, ao mesmo tempo em que criou uma série de problemas de ordem técnico-jurídica no tocante à interpretação dos tratados internacionais firmados anteriormente à sua vigência.

Referida alteração, além de disseminar mais discórdia sobre o tema, em nosso entender, foi medida desnecessária, uma vez que a verdadeira exegese do parágrafo 2.º, do artigo 5.º, da Carta Magna, como sustentado,  já cuidava de disciplinar a forma de recepção dos tratados internacionais de modo satisfatório.

Em suma, a interpretação jurisprudencial dada ao tema, bem como a introdução havida por força da Emenda Constitucional de n.° 45, vai de encontro às modernas tendências do direito internacional, que empreende notado esforço para a convergência das legislações (sobretudo as do ocidente) dos diversos estados soberanos. Ao mesmo tempo, a prevalência da interpretação dominante no Brasil sobre a forma de recepção das normas de tratados sobre direitos humanos causam insegurança jurídica no plano internacional, ou seja, justificado temor em relação ao efetivo cumprimento das avenças firmadas pelo Estado Brasileiro, cuja legislação e, sobretudo a atual interpretação dada à mesma, põem em cheque a credibilidade relativa aos princípios da boa-fé e da pacta sunt servanda.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1.                   REZEK, José Francisco. Direito internacional público. 6. ed.São Paulo: Saraiva, 1996, p. 14.

2.                   SIQUEIRA JÚNIOR, Tratados internacionais ….., p. 9.

3.                   ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 23-25.

4.                   BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 216. 

5.                   Iure Pedroza Menezes, Os Tratados Internacionais e o Direito Interno dos Estados, http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_tratadoint.html – em 08/05/2005

6.                   Iure Pedroza Menezes, Os Tratados Internacionais e o Direito Interno dos Estados, http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_tratadoint.html – em 08/05/2005 v- IDEM À NOTA N.° 05.

7.                   TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p.148.

8.                   BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 08. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 58-60.

9.                   BRENNER, Ana Cristina. Emenda Constitucional n.° 45/04 e a posição hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna. In internet: www.tex.pro.br/wwwroot/04de2005/aemendaconstitucional_anacristinabrenner… maio de 2005.

10.               BRENNER, Ana Cristina. Emenda Constitucional n.° 45/04 e a posição hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna. In internet: www.tex.pro.br/wwwroot/04de2005/aemendaconstitucional_anacristinabrenner… maio de 2005.

11.               MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Hierarquia constitucional e a incorporação automática dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos no ordenamento brasileiro. Internet. www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_21/artigos/art_valerio.htm, em 16/06/2005.

12.               Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior. O judiciário brasileiro em face dos direitos humanos. In Justiça e Democracia: revista semestral de informação e debate, n.° 2, jul./dez. 1996 – ano 1,p. 13.

13.               CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito internacional e direito interno: sua interação na proteção dos direitos humanos. Internet. 16/06/2005.www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade

14.               Direitos Humanos e o Direito Constitucional”, ed. Max Limonad, 1996, p. 60.

15.               MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Supremo tribunal federal e os conflitos entre tratados internacionais e leis internas. Internet. Em 16/06/2005. www.advogado.adv.br/artigos/2004/valeriomazzuoli

16.               entrevista publicada na Revista Justiça e Democracia, 01/Julho, Janeiro a Junho/1996

17.               COSTA, Aldo de Campos. Direitos humanos. Reforma gera tumulto quanto à hierarquia dos tratados internacionais. Internet, em 11/10/2005. www.unb.br/fd/colunas_Prof/aldo_campos_01.htm.

18.               BASTOS C.R. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 5. ed. São Paulo:Celso Bastos Editora, 2002.

19.               ACCIOLY H. Manual de direito internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.

20.               PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supranacional: a exigência da federalização. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao. Acesso em 15 de setembro de 2005.

21.               BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 18 de setembro de 2005.

22.               JUNQUEIRA, André Luiz. Interpretação constitucional relativa aos Direitos Humanos. DireitoNet, São Paulo, 03 de junho de 2005. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/x/20/81/2081. Acesso em 10 de novembro de 2005.

23.               BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

24.               CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo, Saraiva, 1991.

25.               MAZZULOI, Valério de Oliveira. Direitos humanos & relações internacionais. Campinas: Agá Júris, 2000.

26.               REZEK. José Francisco. Direito dos tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

27.               PIOVESAN, Flávia.Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.

28.               RODAS, João Grandino. Tratados internacionais. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 1991.

 

 

* Juliano Lago Sebben, Advogado, inscrito na OAB/RS 50.803 na OAB/PR 33.255. Especilista em Direito Processual Civil e Direito Internacional. Pós-graduando em Gestão Pública Municipal.

 

 

 

 



[1] REZEK, José Francisco. Direito internacional público. 6. ed.São Paulo: Saraiva, 1996, p. 14.

[2] SIQUEIRA JÚNIOR, Tratados internacionais ….., p. 9.

[3] ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 23-25.

[4] BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 216. 

[5] Iure Pedroza Menezes, Os Tratados Internacionais e o Direito Interno dos Estados, http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_tratadoint.html – em 08/05/2005

[6] Iure Pedroza Menezes, Os Tratados Internacionais e o Direito Interno dos Estados, http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_tratadoint.html – em 08/05/2005 v- IDEM À NOTA N.° 05.

[7] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p.148.

[8] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 08. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 58-60.

[9] BRENNER, Ana Cristina. Emenda Constitucional n.° 45/04 e a posição hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna. In internet: www.tex.pro.br/wwwroot/04de2005/aemendaconstitucional_anacristinabrenner… maio de 2005.

[10] BRENNER, Ana Cristina. Emenda Constitucional n.° 45/04 e a posição hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna. In internet: www.tex.pro.br/wwwroot/04de2005/aemendaconstitucional_anacristinabrenner… maio de 2005.

 

[11] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Hierarquia constitucional e a incorporação automática dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos no ordenamento brasileiro. Internet. www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_21/artigos/art_valerio.htm, em 16/06/2005.

[12] Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior. O judiciário brasileiro em face dos direitos humanos. In Justiça e Democracia: revista semestral de informação e debate, n.° 2, jul./dez. 1996 – ano 1,p. 13.

[13] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito internacional e direito interno: sua interação na proteção dos direitos humanos. Internet. 16/06/2005.www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade

 

[14] Direitos Humanos e o Direito Constitucional”, ed. Max Limonad, 1996, p. 60.

[15] Não destacado no original.

[16] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Supremo tribunal federal e os conflitos entre tratados internacionais e leis internas. Internet. Em 16/06/2005. www.advogado.adv.br/artigos/2004/valeriomazzuoli

 

[17] entrevista publicada na Revista Justiça e Democracia, 01/Julho, Janeiro a Junho/1996

 

[18] COSTA, Aldo de Campos. Direitos humanos. Reforma gera tumulto quanto à hierarquia dos tratados internacionais. Internet, em 11/10/2005. www.unb.br/fd/colunas_Prof/aldo_campos_01.htm.

[19] Destaque acrescentado.

Como citar e referenciar este artigo:
SEBBEN, Juliano Lago. Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos e sua Hierarquia Normativa no Sistema Constitucional Brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/tratados-internacionais-sobre-direitos-humanos-e-sua-hierarquia-normativa-no-sistema-constitucional-brasileiro/ Acesso em: 29 mar. 2024