Direito Constitucional

Sem Direito a Defesa

Sem Direito a Defesa

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

Uma das grandes conquistas da Constituição Federal de 1988 foi o alargamento do direito de defesa, pedra de toque maior da democracia brasileira e de qualquer democracia. Em três incisos do artigo 5º ficou ele inteiramente resumido, a saber, nos LIV, LV e LVII, assim redigidos:

 

“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

….

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

 

Como se percebe, o inciso LV fala em ampla defesa tanto no processo judicial, quanto no administrativo.

 

Uma das características, entretanto, da prática legislativa adotada após 1988, foi a de os governos, através de sucessivas leis, reduzirem gradativamente tais direitos, ao ponto de se poder considerar hoje que o tema do direito de defesa tornou-se texto para tertúlias acadêmicas, nas instituições de letras ou nas reuniões filosóficas.

 

Com efeito, as denominadas penhoras “on line”, sem conhecimento do atingido e antes de qualquer defesa, torna todo o cidadão vulnerável, toda a empresa insegura e a democracia brasileira assemelhada à “república” criada por Orwell, em sua obra “1984”, em que ninguém era dono de nada e só o Poder do Grande Irmão prevalecia.

 

É impressionante o que tem acontecido em matéria trabalhista, o que principia a acontecer em matéria tributária e ameaça alastrar-se por todos os ramos do Direito, à luz de que a “justiça rápida” não precisa “ser justa”, e que a ampla defesa é um empecilho para a celeridade processual. A Justiça célere é sempre melhor, mesmo que “injusta”!!!

 

Quantas empresas tornam-se inviáveis por penhoras “on line”, pois o simples bloqueio de seus recursos destinados ao pagamento de salários, juros, fornecedores e tributos, ao final do mês, tornam-nas inadimplentes, sem que se possam defender, de imediato, desta invasão ao seu direito de propriedade.

 

E, não poucas vezes, a penhora é absolutamente insubsistente. Para eliminá-la, todavia, nos casos de sua total inconsistência, leva-se de 6 a 8 meses para derrubá-la, período que muitas empresas e muitos contribuintes não suportam esperar.

 

Há casos de pessoas que vivem de aposentadoria e a penhora recai sobre tais recursos depositados no Banco, com o que são privadas do mínimo para viver.

 

Falar em garantias da Constituição, nem pensar. O Poder Público, em matéria tributária, preocupa-se cada vez mais em reduzir os direitos do contribuinte, assim como a retirar-lhe recursos, a qualquer custo, para atender a uma política que não é “tributária”, mas “meramente arrecadatória”. “Tributo” indevido, se nas burras estatais, embora indevido, é “recurso útil” e, como dizia o poeta Rotrou, “todos os crimes são belos quando o trono é o preço”.

 

A exaltação máxima desta implosão do direito de defesa, deu-se com a Lei Complementar n. 118, que visou incluir no Código Tributário Nacional o seguinte artigo 185-A :

“Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial.”

 

A lei, em última análise, passa a admitir a penhora “on line”, sem defesa prévia, inclusive de bens impenhoráveis e indisponíveis, pois se bens penhoráveis não forem encontrados, o juiz determinará a indisponibilidade de outros bens e direitos, que só podem ser os indisponíveis e os impenhoráveis. Muita gente poderá, a partir desse aniquilamento do direito de defesa, perder sua única casa, seu único bem de família, tendo que ir morar embaixo de pontes.

 

È bem possível que nossas autoridades tenham a mesma visão de Anatole France sobre o direito da igualdade: todos os homens são iguais, podendo tanto os ricos como os pobres, se quiserem, viver embaixo de pontes.

 

Creio que chegou o momento de a sociedade reagir. Se a Constituição ainda for a Carta Maior de um país, se a cidadania só existir em função de uma lei suprema que assegure, como cláusula pétrea, os direitos e garantias individuais, não há como nem porque se admitir a supressão – como tem sido feito – do mais relevante de todos os direitos numa democracia, qual seja o direito da ampla defesa. Mais do que qualquer outra matéria, esta merece profunda reflexão de todos os brasileiros.

 

 

* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Sem Direito a Defesa. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/sem-direito-a-defesa/ Acesso em: 25 abr. 2024