Direito Constitucional

A Polêmica sobre despesas com a educação

A Polêmica sobre despesas com a educação

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Chamou nossa atenção, ultimamente, as discussões em torno das despesas com a Educação no Município de São Paulo. A inaplicação de 30% da receita de impostos na Administração passada gerou insatisfação na Câmara de Vereadores. O Executivo, tentando contornar a situação, enviou projeto de lei para compensar nos exercícios futuros as despesas feitas a menor. A oposição tentou sobrestar a tramitação do projeto legislativo e, posteriormente, impedir a promulgação da lei, através de medida judicial na qual obteve liminar. A lei, contudo, foi promulgada antes da notificação formal da medida judicial, gerando mais contestações no Legislativo. A imprensa chegou a noticiar a propositura de ação direta de inconstitucionalidade dessa lei. Esses são os fatos.

    

Na verdade, a Constituição Federal determina que a União aplique, anualmente, o mínimo de 18% e os Estados e Municípios, o mínimo de 25% das respectivas receitas de impostos (art. 212). Desses 25%, Estados e Municípios devem aplicar o mínimo de 60% no desenvolvimento do ensino fundamental (art. 60 do ADCT), ao passo que a União deve aplicar 30% dos 18% na erradicação do analfabetismo e na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental (§ 6º do art. 60 do ADCT). A vinculação do produto de arrecadação de impostos é vedada pelo art. 167, IV da CF com as exceções aí especificadas. Qualquer vinculação não autorizada ou em percentual superior àquele previsto na Carta Magna será inconstitucional. Portanto, inválido é o percentual de 30% estabelecido no art. 208 da LOMSP (Leo Orgânica do Município de São Paulo).

    

Em termos teóricos não deveria haver vinculação de um percentual fixo de despesas com a Educação. Na pior das hipóteses, a norma constitucional que estabelecesse esse percentual mínimo deveria ter natureza programática. O orçamento anual, como instrumento de concretização do plano de ação governamental, deverá sempre refletir as reais necessidades de cada sociedade local, regional ou nacional. Cabe a cada governo eleger as prioridades dentro das reais possibilidades financeiras. De nada adiantaria a Constituição prescrever, genérica e abstratamente, um grande percentual de despesas para o setor educacional se isso implicasse sacrifício desmesurado de outros setores, igualmente importantes, ou, se representasse paralização de investimentos inadiáveis, capaz de inviabilizar o Estado a médio e longo prazos.

    

Entretanto, considerando que a média educacional no nosso País é de três anos e meio contra a média de oito a nove anos de outros Países, e considerando ainda, o tradicional descuido das autoridades govenamentais com o setor educacional, os percentuais estabelecidos na Constituição se justificam. Desde que limitado a um determinado prazo (8, 10 ou 12 anos) essa despesa compulsória trará benefícios à sociedade, porque no contexto de uma economia globalizada o fator educacional pesa muito na qualificação de mão de obra, que irá definir a competitividade de nossos produtos e serviços.

    

Porém, na prática, nem a União, nem os Estados e os Municípios têm aplicado na Educação o limite constitucionalmente previsto. O próprio orçamento anual da União para o exercício de 1998, por exemplo, prevê as despesas com a Educação em cerca de 16,55%, aquém dos 18% determinados pela Constituição Federal (Lei nº 9.598, de 30 de dezembro de 1997). Nenhum dos 27 Estados e nenhum dos milhares de Municípios deve estar aplicando os 25% determinados pela Carta Política. Em tese, o descumprimento do art. 212 da CF importa no crime de responsabilidade política (art. 85, VI da CF). Mas, se fosse aplicar esse dispositivo, literalmente, nenhum governante escaparia do impeachment. Não se pode esquecer que ninguém é obrigado a fazer o impossível. Se as receitas tributárias não se realizarem como previstas, por uma razão ou outra (agravamento da recessão, medida judicial etc), ou, se a superveniência de uma conjuntura anormal forçar o redirecionamento de recursos orçamentários não se pode responsabilizar o governante.

    

Mas, o que mais nos intriga nos noticiários são as tomadas de medidas legislativas e judiciais por conta do descumprimento do art. 212 pela Administração passada. Ora, esse preceito é de natureza orçamentária e deve ser interpretado à luz de normas de direito financeiro. As despesas com a Educação, nos percentuais aí previstos, deverão ser consignadas nas respectivas leis orçamentárias anuais da União, dos Estados e dos Municípios. Lei orçamentária é lei de efeito concreto, de natureza temporária, para viger de 1º de janeiro a 31 de dezembro de cada ano. A lei orçamentária anual do exercício de 1996, por exemplo, não mais existe no mundo jurídico. Se foi descumprido qualquer de seus preceitos, quando sob execução, se está diante de um fato consumado, nada mais restando a fazer senão a apuração de responsabilidade na forma do art. 85, VI da CF. Se não foi aplicado no setor educacional os 25% da receita de impostos daquele ano o mal está perpetrado de forma irreversível e irreparável. Descabe providência legislativa para aplicar a “diferença” nos exercícios futuros. As despesas com a Educação não têm a mesma natureza de despesas com a amortização da dívida pública, por exemplo, a qual, poderia ser alongada no tempo, através de medida legislativa. Mandar gastar, nos exercícios subsequentes, a verba inaplicada, superando o limite constitucional, não só seria uma medida injurídica, como também, refugiria do bom senso. Isso nos faz lembrar da reclamação que fizemos, no passado, contra um Jornal de grande circulação, por falha no serviço de entrega por três dias consecutivos. A empresa jornalística apresentou as desculpas e, no dia seguinte, entregou quatro exemplares idênticos. Ler um jornal inteiro já era cansativo, imagine-se, então, ter que repetir a leitura! Por tudo isso estranhamos bastante toda essa celeuma em torno da inaplicação dos 30% destinado ao setor educacional, por sinal, absolutamente inconstitucional. Se uma determinada autoridade penitenciária tivesse promovido a execução de um condenado, sem as formalidades legais, certamente ninguém cogitaria de qualquer providência para repetir a execução conforme as prescrições legais.

 

 

* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da

  Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. A Polêmica sobre despesas com a educação. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-polemica-sobre-despesas-com-a-educacao/ Acesso em: 28 mar. 2024