Responsabilidade Civil

Ato Médico – Terapeuta Habilitado é Intocável

 

 

Tendo em vista recente aprovação pela Câmara dos Deputados, do projeto dito regulamentador da arte médica, os profissionais da saúde exercitantes de atividades já regulamentadas, como da área da Psicologia, da Nutrição, da Acupuntura, etc., têm manifestado grave insatisfação, vez que imaginam estarem sujeitos à perda do direito de continuarem nas suas profissões com capacitação para diagnosticar e eleger livremente a forma de tratamento dos pacientes em suas áreas de atividade.

 

Os profissionais da medicina integrantes do congresso nacional têm se desdobrado para explicar o fenômeno, esclarecendo amiúde que a novel regulamentação não atenta contra outras profissões da área de saúde e que, ao contrário, une todas elas à medicina para que seja estabelecido um convívio agradável.

 

Posto o acontecimento com todas as suas envolventes como fenômeno jurídico, há a exalçar que em verdade a regulamentação da arte médica em nada pode interferir nas atividades outras, da saúde, já regulamentadas.

 

Ora, no Título II, dos Direitos e Garantias Fundamentais, da Constituição Federal, o Capítulo I diz sobre os Direitos e deveres individuais e coletivos, no art. 5º, «verbis»:

 

«XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.»

 

Impende destacar que na hipótese incide em verdade a regra doutrinária do «Direito consumado» à situação do terapeuta habilitado, de molde a revelar a veemência com que pontifica-se a garantia constitucional do Direito adquirido.

 

Do prelecionado por Francisco Campos (Direito Civil, Rio, Freitas Bastos, 1956, p. 274) extrai-se que «Tempus regit factum, isto é, o fato consumado sob o império de uma lei continuará a ter o estatuto legal do tempo em que se consumou ou se aperfeiçoou em todos os seus elementos. Assim, para que a lei nova não se aplique ao passado, é necessário que haja um fato de que o direito então vigente faça decorrer um efeito jurídico, pouco importando que o efeito já se haja produzido ou venha a produzir-se, futuramente, mediante o evento de uma condição ou termo. Para que o fato, porém, continue a reger-se nas suas condições de forma e de substância e, portanto, nos seus efeitos, pela lei anterior, é indispensável que seja um fato inteiramente consumado sob o império dessa lei, ou, reproduzindo a expressão literal do CC, é indispensável que o fato seja um ato jurídico perfeito. O § 2° do art. 3º da Introdução ao Código Civil Brasileiro assim define o ato jurídico perfeito: ‘Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou’.»

 

Conforme Bacon, «O ofício das leis, dizia Portalis, é regular o futuro; o passado não lhes pertence. Onde quer que a retroatividade das leis fosse admitida deixaria de existir não somente a segurança, mas a sombra da segurança.» Leges et constitutiones futuris certum est dare formam negotiis, non ad facta preterita revocari, – Just. L 7 Cod. de Legibus. (Apud Duarte de Azevedo, Controvérsias Jurídicas, S. Paulo, Escolas Profissionais Salesianas, 1907, p. 1).

 

Duarte de Azevedo assevera ainda, ao cuidar da questão a envolver relações de Direito Privado: «Quando, porém, o princípio da irretroatividade é máxima constitucional, não há fazer-lhe exceções; o legislador fica preso, nunca se lhe pode atribuir a intenção de dominar nas leis novas fatos passados, e os juízes são obrigados a esta regra de interpretação, que decorre do sistema do direito. […] Assenta-se que produz efeito retroativo a lei, quando ofende algum direito adquirido, fórmula que se pode converter na seguinte: não se deve aplicar a lei a fatos pretéritos, que tenham produzido aquisição de direitos. […] Direitos adquiridos, diz Merlin, são os que se acham no domínio de alguém, e que já não lhe podem ser tirados. Tais são os direitos que provêm de um contrato ou quase contrato; os que provêm de uma sentença que passou em julgado, os que competem ao herdeiro por testamento ou ab-intestato, desde que se abre a sucessão por morte do indivíduo, cuja é a herança, etc. Mas isso é confundir direitos adquiridos com direitos consumados, como argúi Gabba … Os direitos provenientes de um contrato feito e acabado, e sobretudo os que decorrem de uma sentença que passou em julgado, ou de uma sucessão já devolvida e adquirida, são direitos consumados, que nem as próprias leis interpretativas (as mais retroativas de todas), e as que expressamente se retrotraem ao tempo passado, podem atingir.» (Ob. cit., pp. 2 e 3).

 

Por ocasião da extinção da profissão do Engenheiro Operacional, porque habilitado mediante curso de 3 (três) anos, em pleno império do governo revolucionário assim foi definida a «quaestio iuris»:

 

«A Resolução CFE nº 05/77 revogou o currículo mínimo do curso de engenharia de operação, estabelecendo a data limite de 01/01/79 para que fossem sustados os vestibulares para o curso em questão, o que permitiria às instituições de ensino superior converterem os seus cursos de engenharia de operação em cursos de formação de tecnólogos ou em habilitação do curso de engenharia.» (Abappg).

 

Ao que se vê, extinguiu-se o curso, respeitaram-se os direitos dos alunos e as habilitações concedidas, não tendo os profissionais sido vítimas de qualquer restrição ou discriminação, estando todos realmente habilitados.

 

A Carta Magna ainda determina:

 

«I – Artigo 5º

«Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)

«XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

«II – Artigo 6º

«Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

«(…)

«Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

«(…)

«Artigo 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.»

 

E, contemplando o texto fundamental, exsurge de chofre o raciocínio no sentido de que ao cidadão habilitado para o exercício de uma das profissões ligadas à área da saúde por força de ato jurídico perfeito, é assegurado o reconhecimento do seu título profissional enquanto cumpra os requisitos do seu estatuto legal, fazendo tal prerrogativa parte da sua constituição pessoal, não podendo ver impedido ou limitado o exercício da sua atividade em razão do advento da normatização de atividade outra, que aliás não pode abranger a sua.

 

A Egr. Câmara de Educação Básica, do CNE, do Ministério da Educação, em Parecer CNE/CEB 38/2003, de 3 de dezembro de 2003, Rel. Prof. Nélio Marco Vincenzo Bizzo ensina que:

 

«A questão da irretroatividade das leis remonta aos primórdios do Direito e da Lei. É quase redundante afirmar que a lei sempre foi feita para conformar os atos futuros e não os pretéritos. Este entendimento, aparentemente simplório, prevalece desde a mais remota antiguidade e constitui a base da legislação brasileira. De fato, o civilista Rubens Limongi França afirma que tão logo a República Chinesa unificou diferentes etnias há mais de 3 mil anos, houve a promulgação de novos códigos acompanhada da expressa aplicação do princípio da irretroatividade das leis (Direito Intertemporal Brasileiro, doutrina da irretroatividade das leis e do direito adquirido, Editora dos Tribunais, São Paulo, 1968, 2a. edição, p30-32).

 

«A Referência à Irretroatividade das Leis na História

 

«Uma lei nova, ao dispor para o futuro, não elimina os registros da lei antiga, senão faz cessar parcial ou totalmente as projeções da anterior para o futuro. Mesmo em caso de revogação, a lei extinta continua a ter aplicabilidade nos casos ocorridos sob sua vigência, porque os atos são regidos pela lei existente ao tempo em que se efetivam. (…)

 

«O insigne jurista Limongi França, expôs sua tese de que o Princípio de Irretroatividade das Leis se funda na razão natural após extensa análise de uma plêiade de códigos, desde a antigüidade até nossos dias, no Oriente e, mais profundamente, no Ocidente, na Grécia e em Roma. No Direito Romano, antes de Justiniano, e no próprio direito justinianeu, Limongi França localiza o princípio da irretroatividade e até mesmo o delineamento básico que seria estabelecido naquilo que denomina de fase científica e a codificação do Direito Civil. Nos famosos discursos contra Verres, Cícero já utilizava o princípio da irretroatividade das leis, mas Limongi França localiza como fato marcante para todo o direito do Ocidente a chamada Primeira Regra Teodosiana, do ano 393 AD.

 

«Essa regra dizia: ‘Todas as normas não prejudicam fatos passados, mas regulam apenas os futuros’ (op.cit. p. 53). Ela permanecerá como referência no famoso Código Teodosiano, baixado quase 50 anos depois por Teodósio II, que editou a chamada Segunda Regra Teodosiana, nos seguintes termos, na tradução do referido autor: ‘É norma assentada a de que as leis e constituições dão forma aos negócios futuros e de que não atingem os fatos passados, a não ser que tenham feito referência expressa, quer ao passado, quer aos negócios pendentes’ (op cit. p. 56).

 

«Limongi França aponta para a locução latina ‘certum est’. que define sua tradução de ‘é norma assentada’. Ela indicaria que ‘a irretroatividade das leis já era norma definitivamente radicada no espírito jurídico dos Romanos’ (op. cit. p.57). Será essa Segunda Regra Teodosiana que se inscreverá no Direito Justinianeu como princípio fundamental e que se manifestará em diversos contextos.»

 

A propósito o Prof. Mauro Roberto Gomes de Mattos, «in» Competência de Direito Administrativo, Rio, Forense, 1998, pág. 373 lembra:

 

«No campo do Direito Público a boa-fé é o fator preponderante para manter a intangibilidade dos atos administrativos praticados em prol da coletividade, sendo irrevogável o ato que haja criado direito, mesmo que no futuro seja alterado ou revogado o comando legal instituidor do aludido direito.» (Gr.).

 

O Prof. Francisco Campos, ao analisar a irretratabilidade dos atos administrativos que já produziram efeitos, ensina:

 

«A irretratabilidade dos atos administrativos, que decidem sobre a situação individual, é ainda, um imperativo de segurança jurídica.» (Direito Administrativo, Rio, Forense, vol. II, pág. 7).

 

Vindo José Frederico Marques explicitando:

 

«… limite imposto à revogabilidade está no respeito aos direitos subjetivos por perfeitos criados pelo ato administrativo.»

 

O Direito, aliás, é uma ciência humana.

 

Parece não ser possível encerrar este despretensioso trabalho, sem deixar de trazer à colação, expressões reveladoras da mais apurada sabedoria, a par da mais eloqüente sensibilidade humana.

 

Vejamos:

 

«A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, ‘o homem que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem da natureza só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade, querer mudar através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças’.» (Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, S. Paulo, RT, 1991, 3ª ed., pág. 323).

 

Em conclusão, roga-se vênia para ponderar que os terapeutas habilitados têm seus direitos garantidos, tal como reconhecidos oficialmente.

 

 

* Eulâmpio Rodrigues Filho, Professor Titulado de Direito Processual Civil da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos do Instituto de Direito Processual – B. Horizonte,  Advogado

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Eulâmpio Rodrigues. Ato Médico – Terapeuta Habilitado é Intocável. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/responsabilidade-civil/ato-medico-terapeuta-habilitado-e-intocavel/ Acesso em: 29 mar. 2024