Direito Civil

Da União Estável, ao Casamento

 

 

RESUMO: A opção pelo casamento não muda o direito adquirido sobre os bens na forma que já se tiver consumado no curso da união estável, nem deve servir de pretexto para mudar a partir daí o mesmo, quiçá, com vista a desconstituição daquele direito com subseqüente separação.

 

A união estável pela sua peculiaridade, por ter precedido qualquer norma, antes, forçou o advento dela, não obstante, autoriza que se diga a seu respeito, que nem tudo está completamente esclarecido. Vez ou outra surge um fato novo que provoca indagações. É certo que não diz respeito ao seu reconhecimento em si, pois, o texto constitucional é suficientemente claro quando a define, não deixa nenhuma margem de dúvida que se possa suscitar.

 

Basta ler, do art. 226 da Constituição Federal, o § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

 

Com esta decisão, o legislador constituinte reconheceu uma situação em todos os aspectos tangível e segundo a qual vivem alguns milhares de casais por este Brasil a fora. Pessoas que unem suas vidas, vêem o tempo passar e acham que assim mesmo está bom, não é preciso papel passado. Habitam sob o mesmo teto, embora não seja fundamental1, têm filhos, constituem uma família.

 

Houve um tempo em que foram intolerados. Mas com a Constituição de 1988, até porque os Tribunais já se haviam antecipado reconhecendo tal realidade, as uniões entre um homem e uma mulher, desde que não haja impedimento para que se casem, é considerada união estável, pelo que, sem restrições, cumpre ao Estado, protegê-la.

 

Tal proteção é ampla, deve ser interpretada no sentido de que esses conviventes, além de terem um para com o outro as mesmas obrigações dos que se casam, têm reconhecidos, entre outros, o direito aos bens adquiridos em sua constância, logo, à partilha, no caso de dissolução e à meação, no de morte.

 

Mas já não é raro encontrar casais que unidos estavelmente, decidem se casar. Querem colocar no papel suas vontades.

 

A LEI

 

Um novo Código Civil rege a vida civil dos brasileiros. Reuniu no seu bojo diversas legislações esparsas, entre elas, quanto diz respeito ao casamento com os pressupostos para que seja celebrado, o regime de comunhão dos bens que pode ser adotado. Estabelece também, quando as vontades se fragilizam diante dos obstáculos, como se procederá na separação e no divórcio.

 

No subtítulo: DO REGIME DE BENS ENTRE OS CÔNJUGES, consta o art. 1.641, que dispõe:

 

É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

 

I – …

 

II – da pessoa maior de sessenta anos.

 

III – …

 

Não se cogitará das hipóteses dos incisos I e III, uma vez que a linha desta reflexão tem como ponto de partida a união estável, a possibilidade de casamento, entre os que a constituem e ainda mais particularmente, no caso da idade dos contraentes ou de apenas um deles, superar os sessenta anos. Não só a legislação civil se ocupa com esse detalhe, o faz também a lei penal.2 Nesse caso, particularmente, é de clareza absoluta a evidência de que a decisão do legislador foi proteger eventual incauto nubente que pudesse ser vítima da gatunice do outro que visa não o seu bem mas os bens que possui. Mira a possibilidade de uma morte que venha antes que a própria e após um tempo de sacrifício, passar a viver melhor que antes.

 

É por isto, que certos casamentos já foram declarados nulos, já foi negada pensão por morte e negado reconhecimento de diferentes direitos ao serem argüidos, quando o casamento aconteceu, quando ao menos um dos contraentes ultrapassou o sexagésimo aniversário.

 

Mas a lei não há de ser aplicada indistintamente a todos os casos. Aliás, o novo Código Civil se abriu por inteiro ao disposto no art. 5º da sua Lei de Introdução da qual consta que: na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. A partir dele, o Juiz tem larga possibilidade de fazer uso de seu discernimento. Pode até suprir lacunas da mesma lei, quando esta não satisfaz para ser justo ante a realidade que tem ante si e deve julgar.

 

E quanto ao casamento que será celebrado uma vez reconhecida a união estável?

 

O dispositivo constitucional, repete-se, deve ser interpretado sem restrições. Inclusive, quanto aos bens. Todos os que foram adquiridos na constância da união, é certo que o foram, como resultado do concurso do labor de cada um, ocupado nas tarefas que lhe são específicas, e assim, é evidente, se comunicam. A união estável que o Estado protege, ultrapassa a mera consideração ou limite de cama, mesa e banho. É representada pelo afeto, pela dedicação, pela complementaridade do outro, do lhe permitir toda mobilidade de agir, sem cogitação de gênero.

 

Mas como já acenado, o deparar-se com caso concreto continua suscitando dúvidas. É o de certa Maria e certo José que são solteiros, têm hoje 62 e 66 anos respectivamente. Convivem há 42 anos. Desta união têm um filho com 38 anos. Querem-se casar. Para tanto, dirigem-se ao cartório. O oficial considerando que está caracterizada a união estável e que pelo tempo transcorrido, se trata tão somente de converter de direito uma realidade de fato, instrui o procedimento invocando o art 45 da Lei 6.515/77 que diz:

 

Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no artigo 258, parágrafo único, nº II, do Código Civil3.

 

Agiu acertadamente. Maria e José podem escolher livremente o regime de bens a ser adotado, o que aliás, se constituirá, no caso deles, mera formalidade. Entre eles se consumou o “tudo que é teu, é meu”, se têm.

 

Se o regime escolhido for o da comunhão parcial, não se poderá em nenhuma hipótese, no entanto, desconsiderar qual é a situação dos bens que possuam, se possuem, mais precisamente, em nome de quem se encontram, uma vez que, depois de quatro décadas, o casamento não poderá ter o condão de desconstituir um direito plenamente revestido do que se chama adquirido ou servir de pretexto para eventual golpe posterior, um pedido de separação, deixando a outra parte despossuída da parcela que lhe cabe.

 

E mais uma vez, volta a Lei de Introdução a acudir estes argumentos. No art. 2º diz o § 2o – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. (g/n).

 

Deste modo, mesmo que o Novo Código Civil disponha diversamente, como acima já se transcreveu, prevalece em vista do que trata, a parte final deste outro dispositivo, de novo, a LICC: Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

 

Sim, há direito adquirido de ambas as partes. Estabelecer diversamente, redundará em prejuízo daquele em cujo nome não estiverem os bens que possuem. Com a “separação de bens” um deles ficará desprovido do que ajudou a construir, do patrimônio que amealhou.

 

Neste sentido ainda, a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, serve como mais um argumento, ainda que ao contrário: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

 

Por fim, ainda uma consideração sobre em que se possa traduzir a proteção do Estado sobre a união estável. É absolutamente igual a de quem se casou. Não depende de que seja invocado para que seus destinatários dela se beneficiem. Está colocado na Constituição, valer-se dela, é mera decorrência do que possa estar sendo pretendido. É como um grande guarda-chuva abrigando todos os que se encontrarem naquela particular situação. É cláusula auto aplicável.

 

Conclusão:

 

Quando da conversão de uma união estável em casamento, a escolha do regime de comunhão dos bens é de escolha livre dos contraentes, devendo-se atentar para os termos do art. 45 da Lei n.º 6515/77, que valerá até que se possa evidenciar UE anterior a 28 de junho de 1977.

 

A proteção do Estado prevista no § 3º do art. 226 da Constituição Federal, não depende de reconhecimento outro que não seja a da própria união estável que por sua vez independe de ser declarada por sentença.

 

O direito adquirido que decorre da união estável arrima qualquer outro que venha a ser pretendido. O casamento não deve servir de pretexto para o pleitear em seguida, da separação, despojando o outro dos direitos que antes de sua ocorrência existiam.Notas de rodapé convertidas

 

 

Notas de rodapé convertidas

 

1 STJ Súmula n.º 382 ‘A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato’

 

2 Quando pela alínea h do art 61 do Código Penal, agrava o crime contra este.

O CPP o desiguala desnecessariamente, e isto se constitui numa falha antiga a carecer correção, pois o isenta da participação no júri. (Art 434).

 

3 A referência é ao CC de 1916. Ar. 258 – Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial..

 

 

 

* Marlusse Pestana Daher, Promotora de Justiça, Ex-Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, em Direito Civil e Processual Civil, Mestra em Direitos e Garantias Fundamentais.

Como citar e referenciar este artigo:
DAHER, Marlusse Pestana. Da União Estável, ao Casamento. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/da-uniao-estavel-ao-casamento/ Acesso em: 20 abr. 2024