Direito Civil

Comentário a Acórdão – Tema: Valor de desestímulo e enriquecimento sem causa – REsp 839.923/MG – STJ

Alexandre Castro Sousa[1]

1. EMENTA

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. AGRESSÃO FÍSICA AO CONDUTOR DO VEÍCULO QUE COLIDIU COM O DOS RÉUS. REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS. ELEVAÇÃO. ATO DOLOSO. CARÁTER PUNITIVO-PEDAGÓGICO E COMPENSATÓRIO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Na fixação do valor da reparação do dano moral por ato doloso, atentando-se para o princípio da razoabilidade e para os critérios da proporcionalidade, deve-se levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido, sem se perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. 2. Sendo a conduta dolosa do agente dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, mediante emprego de reprovável violência física, o arbitramento da reparação por dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação, sem perder de vista a vedação do enriquecimento sem causa da vítima. 3. Na hipótese dos autos, os réus espancaram o autor da ação indenizatória, motorista do carro que colidira com a traseira do veículo que ocupavam. Essa reprovável atitude não se justifica pela simples culpa do causador do acidente de trânsito. Esse tipo de acidente é comum na vida diária, estando todos suscetíveis ao evento, o que demonstra, ainda mais, a reprovabilidade da atitude extrema, agressiva e perigosa dos réus de, por meio de força física desproporcional e excessiva, buscarem vingar a involuntária ofensa patrimonial sofrida. 4. Nesse contexto, o montante de R$ 13.000,00, fixado pela colenda Corte a quo, para os dois réus, mostra-se irrisório e incompatível com a gravidade dos fatos narrados e apurados pelas instâncias ordinárias, o que autoriza a intervenção deste Tribunal Superior para a revisão do valor arbitrado a título de danos morais. 5. Considerando o comportamento altamente reprovável dos ofensores, deve o valor de reparação do dano moral ser majorado para R$ 50.000, 00, para cada um dos réus, com a devida incidência de correção monetária e juros moratórios. 6. Recurso especial provido. (REsp 839.923/MG, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 15/05/2012, DJe 21/05/2012)

2. COMENTÁRIO

Trata-se do REsp n. 839.923/MG julgado em 15/05/2012 pela quarta turma do Superior Tribunal de Justiça que, por unanimidade, deu provimento ao recurso interposto pela parte autoral. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão.

A ação indenizatória por danos morais, estéticos e materiais, foi ajuizada por Edésio Moreira da Silva contra João Cardoso Neto e Roberto Carlos da Silva. Como fora constatado nas instâncias ordinárias, em 15 de novembro de 1998, o autor da ação, com seu veículo, colidiu com a traseira do carro do réu João Cardoso Neto. Por tal fato, os réus saíram do veículo e espancaram o autor, com socos, chutes, além de bater a sua cabeça contra uma grade.

Ficou constatado nos autos que a agressão ocasionou inúmeras lesões no corpo da vítima, principalmente no rosto, já que teve seu nariz quebrado em três lugares, visíveis cortes no supercílio direito e na base esquerda do nariz, bem como grandes hematomas nos olhos. Sem dizer dos graves abalos psíquicos e emocionais enfrentados pelo agredido.

O juízo de primeiro grau não acolheu o pedido de indenização por danos materiais, pois não provados, e também não acolheu o pedido de dano estético, porquanto as cicatrizes deixadas no rosto não poderiam ser caracterizadas como deformidades permanentes. No entanto, o dano moral foi reconhecido, tendo sido fixada a reparação em 250 salários mínimos para cada um dos agressores.

Para se ter ideia do quantum indenizatório fixado pelo juiz, verifica-se que, sendo o salário mínimo R$ 788,00 (setecentos e oitenta e oito reais) em junho de 2015, cada um dos agressores deveria pagar à vítima o valor de R$ 197.000,00 (cento e noventa e sete mil reais).

Para chegar a esse valor, o juiz considerou a alta renda dos réus, suas propriedades (fazenda e comércio) e suas respectivas declarações de Imposto de Renda dos últimos cinco anos. Por fim, considerou ainda a alta ofensa à honra e à dignidade do autor e de sua família.

Apesar do tamanho rigor da sentença do juízo de primeiro grau, o Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais reformou drasticamente a decisão, conforme observa-se na ementa a seguir:

ACIDENTE DE TRÂNSITO – AGRESSÕES FÍSICAS AO MOTORISTA CAUSADOR DO EVENTO – DANO MORAL – PROVAS – TESTEMUNHAS NÃO CONTRADITADAS – BOLETIM DE OCORRÊNCIA – VALOR PROBANTE – PRESUNÇÃO JURIS TANTUM – VALORAÇÃO DAS PROVAS – ARBITRAMENTO DO DANO MORAL – PARÂMETRO – 49ª REUNIÃO DO CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS JUIZ RONALDO CUNHA CAMPOS. – Cabe ao réu, de acordo com o art. 333, inc. II, provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor e não tendo, pois, se desincumbido desta tarefa de vez sustentar sua defesa em documento que gozam de presunção juris tantum de veracidade, valor este que se encontra afastado por provas robustas em contrário, deve ser mantida, neste particular a r. sentença, fustigada que reconheceu a ocorrência de danos morais decorrentes de agressão física incontinente ao acidente de trânsito provocado pelo autor, de vez tornar-se irrelevante se este encontrava-se ou não embriagado. – Deve ser reduzido o valor arbitrado a título de danos morais equivalente a 500 salários mínimos para o caso de lesão corporal, pois, de acordo com os parâmetros da 49ª Reunião do Centro de Estudos Jurídicos Juiz Ronaldo Cunha Campos, realizada em 28.8.98, cujas decisões uniformizam e orientam os julgados desta Casa, tal valor poderia equivaler-se para casos de morte de ente querido, conforme circunstância do óbito.

Como visto na última parte do julgado, o tribunal reduziu o valor arbitrado porque este equivaleria aos casos de morte de ente querido e não aos casos de agressão. Reduziu-se, pois, de 500 salários mínimos para R$ 13.000,00 (treze mil reais), para os dois réus.

Obviamente insatisfeito, o autor recorreu ao Superior Tribunal de Justiça alegando que esta redução resultaria em quantia irrisória. Aduziu que

o Tribunal desconsiderou todas as provas produzidas nos autos e circunstâncias que comprovaram a crueldade da agressão, bem como a capacidade econômica dos ofendidos (possuíam à época um Jeep Cherokee) e simplesmente aplicou a “tabela”, ou seja, se o autor tivesse levado apenas um “tapa na cara” teria direito aos mesmos 50 salários mínimos que lhe foram atribuídos pelo Tribunal, após ser brutalmente e covardemente espancado por dois “pit boys”, de situação econômica e financeira abastada, que somente não mataram o autor porque o mesmo foi arrancado de suas mãos. Pois, por tudo que se comprova da instrução processual os mesmos tinha a intenção de matar o autor e inclusive ameaçaram de morte uma das testemunhas.

No julgamento, o entendimento unânime da Quarta Turma do STJ, cujo relator fora o Ministro Raul Araújo, foi no sentido de dar provimento ao recurso especial para majorar o valor dos danos morais, condenando cada um dos réus a pagar ao autor o valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).

Para reformar a decisão, o Relator se baseou nos seguintes argumentos, in verbis:

É certo que o magistrado, seguindo os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, deve, na fixação do valor da reparação do dano moral, levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido, mas não pode perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. Há casos em que a conduta do agente é dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, atuando com dolo, o que torna seu comportamento particularmente reprovável. Nessa perspectiva, o arbitramento do dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação. Com efeito, a reparação punitiva do dano moral deve ser adotada “quando o comportamento do ofensor se revelar particularmente reprovável – dolo ou culpa grave e, ainda, nos casos em que, independentemente de culpa, o agente obtiver lucro com o ato ilícito ou incorrer em reiteração da conduta ilícita” (CAVALIERI FILHO, Sérgio.Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed., rev. e ampl., São Paulo: Atlas, 2010, p. 99). Conforme lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “na reparação por dano moral estão conjugados dois motivos, ou duas concausas: I) punição ao infrator pelo fato de haver ofendido um bem jurídico da vítima, posto que imaterial; II) pôr nas mãos do ofendido uma soma que não é o pretium doloris, porém o meio de lhe oferecer a oportunidade de conseguir uma satisfação de qualquer espécie, seja de ordem intelectual ou moral, seja mesmo de cunho material o que pode ser obtido ‘no fato’ de saber que esta soma em dinheiro pode amenizar a amargura da ofensa e de qualquer maneira o desejo de vingança. A isso é de acrescer que na reparação por dano moral insere-se a solidariedade social à vítima” (Responsabilidade Civil, atualizador Gustavo Tepedino, 10ª ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: GZ, 2012, pp. 413-414). Atento a essas questões, o eminente Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS fez importantes ponderações, in verbis: “Deveras, é fato que se vive hoje um novo tempo no direito, quer com o reconhecimento (e mais do que isto, como garantia constitucional) da indenização por dano moral, quer – e aí com revelação de certa perplexidade – no concernente à sua fixação ou avaliação pecuniária, à míngua de indicadores concretos. Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano em destaque, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. Como fixar a reparação?; quais os indicadores? Por certo, devido à influência do direito norte-americano muitas vezes invoca-se pedido na linha ou princípio dos ‘punitive damages’. ‘Punitive damages’ (ao pé da letra, repita-se o óbvio, indenizações punitivas) diz-se da indenização por dano, em que é fixado valor com objetivo a um só tempo de desestimular o autor à prática de outros idênticos danos e a servir de exemplo para que outros também assim se conduzam. Ainda que não muito farta a doutrina pátria no particular, têm-se designado as ‘punitive damages’ como a ‘teoria do valor do desestímulo’ posto que, repita-se, com outras palavras, a informar a indenização, está a intenção punitiva ao causador do dano e de modo que ninguém queira se expor a receber idêntica sanção. No caso do dano moral, evidentemente, não é tão fácil apurá-lo. Ressalte-se, outrossim, que a aplicação irrestrita das ‘punitive damages’ encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002. Assim, o critério que vem sendo utilizado por esta Corte na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito.” (REsp 210.101/PR, Quarta Turma, DJe de 9/12/2008, grifo nosso).

Concluiu o Relator:

Portanto, não obstante autorizado, em determinadas circunstâncias, o reconhecimento do caráter punitivo do dano moral, não se pode perder de vista, em seu arbitramento, a vedação do enriquecimento sem causa da vítima. Na hipótese dos autos, os réus espancaram o motorista, autor da ação indenizatória, que colidira com a traseira do carro que ocupavam. Essa reprovável atitude não se justifica pela eventual culpa do autor na ocorrência do acidente de trânsito, tampouco por sua alegada embriaguez – a respeito da qual existe discussão nos autos (na r. sentença, o d. Juízo a quo desconsiderou o boletim de ocorrência que sugeria a embriaguez do autor, porquanto tal dado não estava embasado em exame que comprovasse se havia, realmente, ingestão de álcool – (fl. 324, e-STJ). Afirmou o Magistrado que o estado desnorteado da vítima decorria, provavelmente, das pancadas violentas na cabeça. O colendo Tribunal de Justiça, de outro lado, concluiu pela lisura do referido boletim de ocorrência e, portanto, pela embriaguez da vítima) . Ao contrário, esse tipo de acidente é comum na vida diária, estando todos suscetíveis ao evento, o que demonstra, ainda mais, a reprovabilidade da atitude extrema, agressiva e perigosa dos réus de, por meio de força física desproporcional e excessiva, buscarem vingar a involuntária ofensa patrimonial sofrida. Nesse contexto, o montante de R$ 13.000,00, fixado pela colenda Corte a quo, para os dois réus, mostra-se irrisório e incompatível com a gravidade dos fatos narrados e apurados pelas instâncias ordinárias, o que autoriza a intervenção deste Tribunal Superior para a revisão do valor arbitrado a título de danos morais. Destarte, considerando o comportamento doloso altamente reprovável dos ofensores, deve o valor do dano moral ser arbitrado, em atendimento ao caráter punitivo-pedagógico e compensatório da reparação, no montante de R$ 50.000,00, para cada um dos réus, com a devida incidência de juros moratórios e correção monetária.

A linha utilizada pelo Relator é a de que a fixação do valor da reparação do dano moral deve ter caráter punitivo e pedagógico, e que, para tanto, deve-se levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido, bem como o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ilícito.

Portanto, o Relator filia-se claramente à linha do punitve damages (indenização punitiva), na qual a indenização visa desestimular o autor à prática de outros idênticos danos e também a servir de exemplo para que outros também assim se conduzam. Afirma ainda que a teoria do punitve damages é designada, no Brasil, como teoria do valor do desestísmulo, possuindo a mesma natureza, a intenção punitiva ao causador do dano e a inibição de práticas semelhantes por outrem.

Pois bem.

Com todo respeito à decisão proferida pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, afirma-se que ela fere o Direito e a Justiça. Fere o direito porque vai de encontro aos preceitos legais do Código Civil e da Constituição; fere à justiça pois subverte o princípio fundamental da igualdade.

Antes de entrar propriamente no cerne da questão, é importante mencionar que há entendimento que aponte diferença entre o punitive damages e a teoria do valor do desestímulo. Rogério Donnini afirma que

Diferentemente do punitive damages do direito norte-americano, o fator ou valor de desestímulo não pode exceder o valor compensatório, mas permite ao magistrado, de maneira proporcional e compatível com o quantum fixado a título de compensação pelo dano moral suportado, aumentar o valor da indenização a ponto de não mais estimular a prática do ato danoso pelo ofensor. Embora exista claramente a ideia de punição na fixação do valor de desestímulo, não se pode afirmar que o nosso sistema tenha adotado o punitive damages, posto haja semelhança entre esses dois institutos, o que não impede o juiz de arbitrar um valor a título de pena pela prática reiterada do ofensor ou outra situação que demonstre menosprezo pela vítima.[2]

Com o devido respeito ao autor citado, não se pode concordar com tal diferenciação, justamente porque a natureza de ambas teorias é a mesma, isto é, pune-se o autor do dano para que ele mesmo não venha mais a cometer ato semelhante, e para que outros vejam a punição e também se sintam desestimulados a agir de tal forma. A camuflagem do nome da teoria original é, na verdade, uma tentativa encontrada para abrandar sua má reputação, sua notória incompatibilidade com o instituto da proibição do enriquecimento sem causa e forçar sua entrada pela via do Judiciário e não pela via correta que seria o Legislativo.

O que na verdade Rogério Donnini propõe é uma teoria do punitive damages restrita, já que o fator ou valor de desestímulo não pode exceder o valor compensatório. Para exemplificar o que ele diz, divide-se o valor total da indenização por danos morais em duas partes. A primeira é referente à compensação. A segunda é referente ao valor de desestímulo. Para a teoria do valor do desestímulo o valor arbitrado para punir o agente deve ser no máximo igual ao valor a título de compensação. Exemplo: se o juiz entende que a justa compensação para um soco no rosto é de R$ 10.000,00 (dez mil reais), o valor que poderá arbitrar a título de valor de desestímulo é no máximo de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Isso significa dizer que o valor total referente ao dano moral poderá ser no máximo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e não de 30, 40, 100, R$ 200.000,00 (duzentos mil), como se dá na teoria do punitive damages. De fato, as teorias possuem a mesma natureza e afrontam aos mesmos princípios, como o da legalidade e da proibição ao enriquecimento sem causa, como será visto adiante.

Desse modo, ambas as teorias serão alvo das mesmas críticas.

Voltando ao acórdão analisado, verificou-se que em momento algum foi utilizado qualquer parâmetro legal para a utilização da teoria do valor do desestímulo. Isso já dá indícios da inconsistência do acórdão proferido. É importante destacar que o nosso sistema jurídico se inspira na supremacia do direito legislado. Não é possível relativizar o princípio constitucional da legalidade estabelecido no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal. O preceito legal é enfático ao prescrever que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Além disso, o inciso XXXIX do mesmo artigo prescreve que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Por essa razão é que se questiona qual o fundamento utilizado pelo julgador para punir os réus. É cediço que não há qualquer embasamento legal para se utilizar a teoria do valor do desestímulo. O que há é a expressa previsão do art. 944 que diz que “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Isso quer dizer que para danos pequenos, indenizações pequenas; para danos grandes, indenizações grandes. Deve haver correlação entre o dano e a indenização. É como se o dano fosse um buraco e a indenização fosse um punhado de terra suficiente para preencher o buraco, nada mais, nada menos.

Justamente por se estar sob a égide do direito legislado, é vedado ao julgador, membro do poder judiciário, legislar. Cabe ao poder legislativo, que é o verdadeiro representante do povo para fazer leis, definir quais serão as condutas reprováveis e como merecem ser punidas, e não ao julgador e ao seu próprio senso de justiça.

Outro ponto que merece destaque é que a teoria do punitive damages e a do valor do desestímulo afrontam ao princípio adotado por todo sistema brasileiro de proibição ao enriquecimento sem causa.

Esse princípio, em linhas básicas, prega a existência de uma justa causa para o aumento e a diminuição patrimonial. Isso quer dizer que o enriquecimento, por exemplo, pode derivar da lei ou de uma obrigação assumida pela parte. No caso da responsabilidade civil extracontratual é notória a verificação da justa causa, porquanto a lei autoriza que a vítima receba do responsável indenização correspondente aos danos suportados por ela.

Sobre a amplitude do enriquecimento sem causa no sistema brasileiro, ensina Giovanni Ettore Nanni que

possui um caráter dúplice, como fonte obrigacional, quando dá ensejo à interposição da ação de enriquecimento, e como princípio corretivo, para purgar os desequilíbrios e as desproporcionalidades, de forma ilimitada, desde que não contrarie a lei, nas situações em que não se apresente como fonte obrigacional, haja vista que consiste em uma cláusula geral.[3]

Como princípio corretivo, afirma ainda o mesmo autor que

Sendo o enriquecimento sem causa um princípio informador de todo o direito brasileiro, ele espraia os seus efeitos a qualquer relação obrigacional. Por ser uma cláusula geral, atua mesmo que a hipóteses sob apreciação não permita o exercício da ação de enriquecimento, consubstanciando-se em ferramenta muito útil para corrigir situações de desproporção patrimonial que evidencie a violação ao espírito emanado do preceito.[4]

Pode-se dizer que esse princípio norteia todo o sistema jurídico brasileiro, impedindo que alguém tenha seu patrimônio aumentado sem justa causa.

No caso em análise, como ficou patente que o valor arbitrado era para compensar a vítima e punir os agressores, pode-se dizer que o valor de punição não possui justa causa. Não há previsão normativa para que haja penas pecuniárias para aqueles que agem dessa forma. Só o valor compensatório possui justa causa, que é a dano moral sofrido e seu dever de reparação. O que torna a decisão ainda mais inconsistente é o fato de o julgador não especificar quantos reais foram para compensar e quanto foram para desestimular. Não teria direito o réu de saber os detalhes e critérios de seu julgamento? Se houve força do tribunal para aplicar a teoria do valor de desestímulo, que haja também para dizer o que é compensação e o que é punição. Portanto, é claro que isso fere o direito a ampla defesa e ao contraditório. Como se recorrer de decisão se não está especificado em que foi condenado?

Outro ponto que merece destaque é que no julgado afirma-se que a teoria do valor do desestímulo não fere o princípio da proibição do enriquecimento sem causa. Alega-se que o critério utilizado pela Corte considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito.

Ora, considerando a determinação do artigo 944 do Código Civil que estabelece que a indenização mede-se pela extensão do dano, qualquer quantia que exceda a isso, deve ser considerada como enriquecimento sem causa. É o mesmo que considerar o dano um buraco e considerar a terra suficiente para fechá-lo indenização (ou compensação). Toda terra usada que não cair dentro do buraco é sobra. Não tem porque estar ali. Ninguém faz do buraco um morro. O mesmo acontece com a indenização. Todo valor pago que não servir para indenizar o dano não tem razão de existir, a lei não autoriza. Não há causa, ou melhor, justa causa. É por isso que a teoria do valor do desestímulo é semelhante à teoria do punite damages. Todo valor excedente, seja um real ou, na ilustração, uma colher de terra, está fora da previsão legal e deve ser considerado enriquecimento seu causa.

Portanto, o órgão julgador não utiliza melhor técnica. É óbvio que um sentimento impulsiona os cidadãos de bem a exigir que os agressores paguem muito por esse tipo de dano causado. A crueldade praticada faz com que o ser humano deseje o pior castigo para os agentes, de modo que se eles fossem condenados em R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais) cada toda sociedade estaria plenamente feliz. Ocorre que a vingança não se confunde com a justiça. A justiça, neste caso, é a punição estabelecida anteriormente em lei, aplicada a todos os infratores independentemente de situação financeira ou outro fator.

Para finalizar, questiona-se a discriminação para com os réus. Afirmou o relator levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido. O juiz de primeiro grau foi mais além. Afirmou que “existem nos autos, afirmativas de que os Réus são pessoas de alta renda, donos de fazenda e comércio, que nos levam a considerá-los em boa situação econômica financeira.”

Ora, está-se diante de acepção de pessoas. Trata-se de prejulgamento praticado por membro do judiciário dentro de decisão judicial encampado pelo Superior Tribunal de Justiça. Será que o mesmo juiz diria: existem nos autos, afirmativas de que a vítima é morador de rua, dono de carroça de papelão, que nos levam a considerá-lo miserável, e que, por isso, diminuo drasticamente o valor dos danos morais porque qualquer valor para ele já seria muito? Seria absurdo, certamente. Agora, diferenciar o cidadão porque ele é rico é válido?

Houve violação ao princípio da igualdade no presente acórdão. Arbitrou-se valor levando em consideração a situação econômica do agente, isto é, se fosse pobre a condenação seria menor. Chega-se ao absurdo de se pensar: quanto mais rico for mais punido serei, será que vale a pena acumular bens em vez de gastá-los?

Argumenta-se que se apenas fosse arbitrado o valor compensatório, o agente, que agiu com dolo e crueldade, voltaria a cometer o mesmo tipo de dano, justamente porque nem sentiria no bolso o peso da condenação. Esquece-se que, para isso, existe o direito penal. Lá estão previstas as condutas que merecem punição por parte do Estado. Se é injusto que uma surra como a do caso concreto seja enquadrada como lesão corporal leve e tenha pena de detenção de três meses a um ano, que, como se sabe, não é grande coisa, é sinal de que o povo brasileiro está satisfeito com a pena aplicada (em tese). Significa que agressões desse tipo merecem penas brandas e não penas de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) ou R$ 197.000,00 (cento e noventa e sete mil reais) como quis o juiz de primeiro grau. E mais: transferir do direito penal, que tem o seu sistema punitivo igualitário, para o Direito Civil a responsabilidade de aplicar penas pecuniárias de acordo com a condição econômica do agressor é permitir que o indivíduo que nada possui tenha o direito de causar qualquer tipo de dano. Exemplo: que punição haveria para aquele que cospe no rosto de seu adversário se pessoalmente não possui nenhum bem? E mais: se um homem que possuiu patrimônio de 20 bilhões de reais resolvesse espancar toda pessoa que batesse no seu carro, em quanto deveria o juiz arbitrar a condenação? Com certeza R$ 50.000 (cinqüenta mil reais) não faria a mínima diferença para ele. Se o indivíduo não teme o direito penal, quanto mais o direito civil.

Percebe-se que a diferenciação de pessoas, como neste tipo de caso, só gera injustiça, porque desacredita totalmente o princípio da igualdade, pilar da justiça. A luta do direito deveria ser no sentido de dar tratamento igual a todos e não promover a classificação em níveis dos cidadãos de acordo com suas contas bancárias.

Deste modo, conclui-se que o acórdão não utilizou a melhor técnica, baseando-se em teoria incompatível com todo o sistema jurídico brasileiro. Se for para desestimular as práticas de ilícitos, que se estabeleça penas maiores aos fatos tidos como graves pela sociedade. Manter-se-ia, certamente, a coerência, unindo a garantia legal à justiça.

3. REFERÊNCIAS

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere. In: DONNINI, Rogério; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.). Responsabilidade civil, Estudos em homenagem ao Professor Rui Geraldo Camargo Viana, São Paulo: Saraiva, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

JOÃO, Mayana Barros Jorge. Punitive damages ou teoria do valor do desestímulo – análise crítica da sua aplicação no direito brasileiro. In:Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 115, ago 2013. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13550>. Acesso em jun 2015.

LOPES, Gabriel Grubba. Incompatibilidade dos punitives damages com o atual sistema de responsabilidade civil brasileiro. In: Revista de Direito Privado, vol. 59/2014, p. 77, jul/2014. DTR\2014\9653.

NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento Sem Causa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.



[1] Doutorando em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Bolsista CAPES.

[2] DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere. In: DONNINI, Rogério; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.). Responsabilidade civil, Estudos em homenagem ao Professor Rui Geraldo Camargo Viana, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 499.

[3] NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento Sem Causa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 439.

[4] NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento Sem Causa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 440.

Como citar e referenciar este artigo:
SOUSA, Alexandre Castro. Comentário a Acórdão – Tema: Valor de desestímulo e enriquecimento sem causa – REsp 839.923/MG – STJ. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/comentario-a-acordao-tema-valor-de-desestimulo-e-enriquecimento-sem-causa-resp-839923mg-stj/ Acesso em: 29 mar. 2024