Direito Civil

Análise da (in)constitucionalidade do tratamento legal distinto ao companheiro e ao cônjuge quanto aos direitos sucessórios no Brasil

CÉLIA CRISTINA MENDES SANTOS

RESUMO

O presente trabalho objetiva expor a possível inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002. A norma de tal artigo tem suscitado controvérsias em sua redação mal elaborada, da qual tem gerado muitas discussões acerca do tratamento dispensado ao companheiro advindo da união estável, não o reconhecendo como herdeiro necessário. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha igualado a união estável ao matrimônio, o preceito constitucional não fora observado, pois deságua em uma injusta diferenciação entre o companheiro e o cônjuge, violando dispositivos da Carta Magna, e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana. A pesquisa   pretende mostrar que há uma incompatibilidade no referido artigo, deste modo, surge no âmbito jurídico discussões atinentes ao assunto, e este artigo volta-se em prol do companheiro, buscando uma posição que assegure os seus direitos, pois a união estável foi elevada a entidade familiar e tem garantida a proteção do Estado. Por fim, será analisado o Recurso Extraordinário n. 878.694/MG, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, que trata especificamente deste tema, tendo sido reconhecido a repercussão geral do caso.  

Palavras Chaves: Sucessão, regime de bens, cônjuge, concorrência.

ABSTRACT

The present paper aims at exposing the possible unconstitutionality of article 1,790 of the Civil Code of 2002. The rule of this article has raised controversies in its poorly prepared essay, which has generated many discussions about the treatment of the companion coming from the stable union, not the Recognizing as necessary heir. Although the Federal Constitution of 1988 equated stable marriage with marriage, the constitutional precept was not observed, for it breaks up into an unfair differentiation between the companion and the spouse, violating provisions of the Constitution, and therefore the dignity of the human person. The research intends to show that there is an incompatibility in the mentioned article, in this way, it arises in the juridical scope discussions related to the subject, and this article turns in favor of the companion, seeking a position that assures its rights, because the stable union was elevated The family entity and is guaranteed the protection of the State. Lastly, the Extraordinary Appeal n. 878.694 / MG, which is being processed by the Federal Supreme Court, which deals specifically with this issue, and the general repercussion of the case has been acknowledged.

Key words: Succession, property regime, spouse, competition.

INTRODUÇÃO

O Direito de Família é um dos ramos da ciência jurídica que mais avança, dado seu caráter eminentemente dinâmico. Seu objeto são as relações e situações oriundas de afetos e desafetos inerentes às vivências, ao pluralismo de formas, assumido pela família e às novas modalidades de construção da mesma.

A família não é criação de Estado ou religião, nem sequer invenção do Direito, pois sendo a primeira e principal forma de agrupamento humano, ela é, sobretudo, a base da sociedade.

A Carta Magna deu um novo rumo ao Direito de Família, reconhecendo a união estável entre homem e mulher, como entidade familiar, estabelecendo a igualdade dos mesmos, no exercício dos direitos e deveres oriundos da sociedade conjugal.

Pretende-se neste trabalho, ilustrar a evolução da união estável a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, passando pelas Leis: nº 8.971/94 e nº 9.278/96, fazendo um parâmetro com o casamento.

A presente pesquisa versará sobre a hipótese de que, o artigo 1.725 do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002) dispõe que para efeitos das relações patrimoniais aplica-se o regime de comunhão parcial de bens à união estável, já o artigo nº 1.790 diz que os companheiros participarão da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente. Sendo assim, verifica-se que existe um paradoxo entre esses artigos, já que em um, a união estável regerá pelo regime de comunhão parcial de bens e no outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente, há um tratamento diferenciado dado a cônjuge e a companheiro(a), para fins de sucessão. Em contrapartida, a Constituição Federal de 1988, não faz diferenciação quanto à união estável e o casamento. Faz-se necessário abordar que o princípio da isonomia, também conhecido como o princípio da igualdade, representa o símbolo da democracia, pois indica um tratamento justo para todos os cidadãos, e será nele que nos apoiaremos a fim de argumentar sobre este tratamento desigual.

Em um primeiro momento, serão abordadas disposições acerca do casamento e também a união estável, privilegiando os aspectos conceituais e jurídicos.

Posteriormente, analisar-se-á as divergências entre casamento e união estável, à luz da Constituição Federal de 1988, do Novo Código Civil e ainda, o princípio da isonomia.

Em seguida, serão discutidas questões ligadas aos direitos hereditários dos companheiros(as) da união estável, face à Lei Federal nº 10.406, que instituiu o Código Civil Brasileiro de 2002, com destaque para o artigo 1.970 e ainda o Recurso Extraordinário nº 878.694.

O CASAMENTO

O casamento é considerado, desde tempos mais remotos, como fundamento principal da família e, consequentemente, da sociedade.

A literatura sobre o tema demonstra que, provavelmente, antes do casamento romano, outras formas de constituição de família se encontravam presentes na Antiguidade.

O Código Civil de 1916 (CC-1916), não ofereceu um conceito de casamento; da mesma forma o Novo Código Civil Brasileiro (CC-2002) também não definiu o instituto do matrimônio, mas dedicou um capítulo para tratar das suas disposições gerais. Neste capítulo específico, verificou-se a confirmação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), reconhecendo a igualdade entre os cônjuges, o casamento civil, sua celebração, dentre outros aspectos.

Várias são as definições de casamento, instituto que permite divagações históricas. Consequentemente se pode dizer que não há uniformidade nas legislações e/ou na doutrina.

No Brasil, legalmente o casamento é a união entre um homem e uma mulher, com o objetivo de constituírem família. Em outras palavras, casamento é a união entre homem e mulher em conformidade com a lei, a fim de prestarem mútua assistência e cuidarem dos filhos em igualdade de direitos e obrigações.

Maria Helena Diniz define casamento como “o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo, material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família” (2002, p. 39).

Para o jurista José Lopes de Oliveira (1980, p. 9):

O casamento é o ato solene pelo qual se unem, estabelecendo íntima comunhão de vida material e espiritual e comprometendo-se a criar e educar a prole que de ambos nascer, sob determinado regime de bens.

De acordo com Sá Pereira (2001, p. 22) “o casamento é a sociedade solenemente contratada por um homem e uma mulher para colocar sob a sanção da lei a sua união sexual e a prole dela resultante”.

NOÇÕES HISTÓRICAS DA FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO

A família é considerada pela maioria dos juristas como a base da sociedade. Regulamentar as relações familiares é assunto de grande preocupação do Estado, desde a antiguidade. Vê-se nesse instituto o sustentáculo para uma civilização próspera e duradoura.

A família é o segmento social de origem mais antiga entre os povos. A primeira ideia que se tem é de total ausência de exclusividade entre homens e mulheres, surgindo daí as figuras da poligamia (relação entre um homem com várias mulheres) e poliandria (relação de uma mulher com vários homens).

A priori, a ideia que se tem de família é a segurança proporcionada pelo grupo organizado, ainda que de forma primitiva aos seus membros, sendo mais relevante até que a própria consanguinidade.

Vários fatores contribuíram de forma decisiva para as mudanças apresentadas nas famílias, principalmente na segunda metade do século XX, a queda do patriarcalismo, a globalização dos povos, a divisão sexual do trabalho e a entrada da mulher no mercado de trabalho, com a consequente independência das mulheres, tudo isso provocando uma grande transformação desse instituto, tão importante para a sociedade e para o Estado.

Segundo Arnoldo Wald (2000, p.10) “a evolução da família caminhou para a restrição dessa autoridade de forma paulatina, apresentando-se de forma cautelosa, mas notória, a figura da mulher e dos filhos”.

DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS ENTIDADES FAMILIARES

Atualmente, a família é formada pelo casamento e pela comunidade formada por qualquer dos pais e os filhos, denominada família monoparental, além da decorrente de situações de fato, uniões entre pessoas de sexo diferentes ou iguais, acompanhadas de filhos de um ou outro parceiro, baseadas em vínculos afetivos.

A doutrina não é unânime quanto ao reconhecimento de várias espécies de entidade familiar, sendo, contudo, uma tendência no ordenamento jurídico brasileiro o pensamento de que a CF/88 trouxe como fundamento de validade uma nova visão de entidade familiar.

Hoje, o que se vê é o distanciamento do paradigma da família tradicional, que nascia precipuamente das relações originadas pelo casamento. O que o legislador moderno vem fazendo é, certamente, uma adaptação às novas realidades.

A partir da CF/88, passou a ser empregada no ordenamento jurídico pátrio a expressão entidade familiar, que decorre das diversas formas de representatividade de um núcleo familiar, não só originado pelo casamento ou pela consanguinidade. Nesse sentido, a família está cada vez mais centrada na relação de afeto entre seus membros.

HISTÓRICO DA UNIÃO ESTÁVEL

Far-se-á, no presente tópico, um breve histórico sobre a união estável, considerando os países que influenciaram diretamente a legislação brasileira.

Na Roma Antiga, a matéria não foi ignorada, mas colocada em grau de inferioridade em relação ao casamento. Patrícios e plebeus uniam-se apenas de fato e sem afeição matrimonial.

A França, como não poderia deixar de ser, já que recebia fortes influências do Direito Canônico, também não ignorou o assunto, mas negou-se a conceder efeitos jurídicos a prática. O Código de Napoleão permaneceu como antes e a França tendencionou-se a combater o instituto em questão.

O assunto das relações extramatrimoniais apresentava-se de forma bastante repressora, devido ao fato de o Brasil, assim como Portugal, adotar regras bastante rígidas em relação a essa questão.

Na época do Império, o Brasil seguia as Ordenações de Portugal (Ordenações Afonsinas, Ordenações Manuelinas, e Ordenações Filipinas), que por sua vez, eram contrárias ao concubinato, que era igualado à mancebia. Esse posicionamento decorria da Igreja Católica, que reconhecia como “família legítima”, apenas aquela advinda do casamento, abominando toda e qualquer outra forma de constituição familiar.

No Brasil Colônia, as uniões sem nenhum tipo de formalidade consistiam na forma mais comum de relacionamento, apesar de ser a Igreja Católica quem decidia as questões matrimoniais; e esta, como não poderia deixar de ser, posicionava-se no sentido de não permitir uniões que não adviessem do casamento formal. No entanto, havia uma certa tolerância com esse tipo de união, principalmente nas classes mais baixas, que adotavam como regra as uniões não sacramentadas pelo matrimônio.

Posteriormente, adveio o Código Civil de 1916, que em nada melhorou as condições dos companheiros. O legislador absteu-se de regular a matéria, e até mesmo conceituar referido instituto e ainda introduziu em seu texto normas repressoras ao concubinato. Seguiu, assim, o posicionamento da Constituição de 1891, que protegia somente a “família legítima”.

O Código Civil de 1916 não acompanhou as mudanças da sociedade, preferindo seguir dogmas morais de sua época, não tratando dos direitos do concubinos (como eram conhecidos, até então, os companheiros). Entretanto, a legislação estrangeira não adotou tal postura, apresentando indícios de preocupação com uma realidade que se iniciava no meio social, sobretudo, na segunda metade do século XIX.

Surgiu, então, a primeira lei a respeito, quando o Direito Francês dispôs que gera reconhecimento da “paternidade ilegítima”, o concubinato notório. A Lei data de 1912, sendo que a partir dessa lei, surgiram muitas outras, fazendo do direito Francês, muito importante, ao disseminar a regulamentação do concubinato em outros países.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA UNIÃO ESTÁVEL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Os fatos sociais políticos e culturais, que incitaram os movimentos marcantes do século XX, em muito contribuíram em influenciar o ordenamento jurídico brasileiro. A CF/88 assimilou esta influência, como um marco evolutivo na estruturação familiar, trazendo no parágrafo 3º, do artigo 226, a legalização de uma situação bastante frequente na sociedade brasileira, qual seja, a relação de fato, entre um homem e uma mulher, a qual era designada concubinato. Nos dias atuais, a Magna Carta nominou-a de união estável.

Ao absorver a união estável como legítima fonte geradora de famílias e, portanto, da merecedora proteção estatal, o legislador repudia a hipocrisia da legislação brasileira, que, outrora, não disciplinava, mas também não proibia a sua prática.

 

O relacionamento de fato entre homem e mulher sempre existiu como núcleo familiar na sociedade brasileira. No entanto, face aos ditames moralistas e patriarcais, que apenas admitiam a família advinda do casamento civil, obedecidos aos ditames legais, a legislação brasileira repugnava-o como verdadeira entidade familiar.

O CC-1916 não vedava expressamente o concubinato, mas disciplinava-o com intolerância, ao possibilitar, por exemplo, a anulação de doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice (Art. 117, 178 § 7º, VI e Art. 248, IV), de acordo com o artigo 1.474, não se permitia instituir como beneficiária pessoa que fosse legalmente inibida de receber doação do segurado e o artigo 1.719 vedava a nomeação em testamento da concubina de testador que fosse casado, como herdeira legatária.

É necessário ressaltar que, no Brasil, o termo concubinato significa o próprio relacionamento de fato, seja ele extraconjugal ou adulterino, mas com uma excessiva carga negativa, por serem proibidos. E, ainda, no nosso cotidiano, algo ligado à imoralidade, que explique talvez o fato da opção do legislador de designá-lo união estável. No entanto, muitos doutrinadores afirmavam que não existe nenhuma diferença entre os mesmos.

ASPECTOS CONCEITUAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Até a promulgação da CF/88, todo tipo de união entre homem e mulher, cuja constituição não fosse consolidada através do casamento civil, era considerada relação de concubinato. Com o advento da mesma, foi conferida proteção do Estado à união estável entre homem e mulher como entidade familiar.

São vários os conceitos dados a essa instituição, quão grande é a amplitude de seu significado. Para Maria Helena Diniz (2009, p. 373) “ao matrimônio contrapõe-se o companheirismo, consiste numa união livre e estável de pessoas de sexos diferentes, que não estão ligadas por casamento civil”.

O CC-2002 atualizou a terminologia utilizada na legislação anterior; distinguiu os conceitos de concubinato com a de união estável.

Nas palavras de Washington de Barros Monteiro (2004, p. 30) “a união estável, é uma relação lícita, ou seja, sob a guarda e proteção legal, entre homem e mulher, em constituição de família”.

Sílvio Rodrigues (2004, p. 259) esclarece que é fundamental para que se caracterize a união estável a “fidelidade recíproca entre os companheiros”. Isso porque é elemento que revela o propósito da vida em comum, um verdadeiro estado de casados.

Preceitua o artigo 1.723 do CC-2002, in verbis:

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Esses requisitos são os que constam no supracitado artigo 1.723 do Código Civil, em outras palavras, é necessária que a união seja duradoura, contínua, pública e estabelecida com o objetivo de constituir família.

O período entre o CC-2002 até a CF/88, o Direito de família vivenciou transformações que ocorreram de maneira paulatina e sensível.

Sobre aspectos da atual família, assevera Luiz Edson Fachin (2003, p. 29):

O ente familiar não é mais uma única definição. A família se torna plural. Da superação do antigo modelo da grande família, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado da família, uma unidade centrada no casamento, nasce a família constitucional, com a progressiva eliminação da hierarquia, emergindo uma restrita liberdade de escolher, o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos.

Assim, a união estável apresenta-se hoje com muito mais valor que no passado, reconhecidamente como instituto social da realidade brasileira, mas ainda suporta pensamentos retrógrados e legislações injustas, que certamente serão modificadas, pois, apesar de novo, quanto ao seu tempo de vigência, o Código Civil de 2002 já surgiu de maneira inadequada, frente a uma sociedade que a cada dia se modifica. O legislador de 2002 teve a oportunidade de sanar as dúvidas e  as arestas, porém não o fez.

A união estável apresenta-se com uma mescla de direito obrigacional no tocante às questões patrimoniais e institucional em matéria afetiva. A nova concepção de família centra-se na ideia do bem-estar dos indivíduos que a compõem, entretanto, o patrimônio não pode ser esquecido, pois geraria desigualdades, o que não é permitido pelo Estado.

As questões patrimoniais foram abordadas de maneiras diferentes no decorrer dos tempos, começando pelas Súmulas 380 e 382 do Supremo Tribunal Federal (STF), que dispunham sobre a divisão dos bens daqueles que não eram casados, mas mantinham uma relação duradoura. Em seguida, a CF/88 cuidou da referida matéria em seu artigo 226, § 3º, igualando a união estável ao matrimônio, mas é justamente nesse ponto que se encontra a polêmica, objeto da atual pesquisa, pois os direitos dos companheiros não se encontram respeitados como deveriam ser, conforme disposição constitucional.

Vale destacar que o casamento é o modelo básico ideal, mantendo sua posição inalterável em relação à união estável, apesar da evolução social do reconhecimento das diversas formas de família pela CF/88. A família oriunda da união estável, apesar de reconhecida pelo texto constitucional e inserido no direito de família, não deixou, de certa forma, de sofrer exclusão pela sociedade em geral.

A coexistência entre as famílias resultantes da união estável e do matrimônio não demonstra a equiparação entre ambas, desaguando em uma suposta antinomia.

DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA OU DA IGUALDADE

O anseio humano pela igualdade é uma aspiração tão antiga quanto a própria ideia de civilização e, por ser uma criação do homem, é o reflexo dos valores da sociedade na qual está inserida. Entretanto, o conceito de isonomia evolui no tempo, no espaço e nas condições da sociedade correspondente. Sendo assim, o que se entende por igualdade hoje, de modo geral, pode não corresponder ao conceito de igualdade de épocas passadas.

O princípio da isonomia, no seu aspecto material, reveste-se de singular importância social na medida em que procura diminuir ou mesmo eliminar diferenças econômicas, sociais, culturais e políticas, suprimindo dessa forma situações injustas.

Quanto a esta classificação da isonomia formal e material, tem-se na CF/88, a adoção clara, destes dois conceitos de igualdade. Assim o caput do artigo 5º ao dispor que “todos são iguais perante a lei”, prescreve a igualdade formal.

Por outro lado, vários artigos da Carta Magna, fazem alusões ao princípio da igualdade material, criando uma série de garantias do princípio.

A preocupação com a isonomia material também será encontrada no artigo 3º da CF/88, ao se instituir como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos sem preconceitos de quaisquer espécies.

Exemplo claro desta diferenciação de iguais ocorre quando o CC-2002  perfez uma significativa alteração nas regras do direito sucessório, deixando preocupantes lacunas sobre determinados aspectos, questão de maior relevo refere-se à suposta inconstitucionalidade do artigo 1.970 do mesmo código, denotando uma situação visível de desequilíbrio tanto doutrinária quanto jurisprudencial.

Analisando a CF/88, como norma fundamental que é, tem-se que ela não foi promulgada para sugerir, mas para determinar, não foi criada para reflexão, mas sim para se impor. Sendo assim, o princípio da isonomia deve ser cumprido em todas as determinações legais e estas devem zelar pelo cumprimento deste princípio.

DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO, COM DESTAQUE PARA O ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Um dos dispositivos mais criticados e comentados da atual codificação privada é o relativo à sucessão do companheiro, merecendo destaque especial, para os devidos aprofundamentos:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

A interpretação do artigo 1.790 do CC-2002, tratou de forma inadequada o direito sucessório dos companheiros.

O primeiro tema a se enfrentar diz respeito ao conteúdo hereditário.

O artigo dispõe que o companheiro ou companheira receberá os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Há, portanto, que se definir, no caso concreto, quais os bens que foram adquiridos dessa forma, durante a união, e quais os bens que serão excluídos dessa divisão.

O jurista Zeno Veloso (2012, p. 2010) assevera que a restrição aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável:

Não tem nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher – se for pobre – literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse um testamento que a beneficiasse […].

Em segundo tema, o artigo 1.725 do CC-2002, permite que os companheiros regulem suas relações patrimoniais por contrato escrito. Na ausência desse documento, aplicar-se-á no que couber, como estampa a lei, o regime de comunhão parcial de bens, sendo assim, havendo contrato na união estável que adote outro sistema patrimonial, é de se perguntar se esse regime terá repercussão no direito sucessório. O legislador deveria ter previsto a hipótese, mas, perante sua omissão, a resposta deverá ser negativa.

O artigo 1.790 se refere apenas à comunicação dos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável.

A partir da análise do artigo 1.790 do CC-2002, percebe-se que há uma antinomia do dispositivo em exame.

Ocorre que, enquanto o artigo 1.725 do mesmo código salienta que “salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais no que couber, o regime parcial de bens”. Já o caput do artigo 1.790, em contrapartida adverte que: “o companheiro ou companheira participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”.

Por interpretação, percebe-se que os requisitos para a constituição do patrimônio comum, que são bens móveis ou imóveis adquiridos a título oneroso, que da aquisição se decorrer. Sendo a onerosidade da aquisição requisito indispensável para a comunicação dos bens, é intuitivo a incomunicabilidade das doações, da herança ou dos bens adquiridos por fato eventual, como o prêmio da loteria. Assim, o doador que deseje agraciar somente um dos conviventes, não precisará onerar o bem com a cláusula de incomunicabilidade para que o outro não tenha direitos sobre o bem doado.

O artigo 1.790 do CC-2002, ao disciplinar a forma pela qual se estabelece o direito hereditário do companheiro ou da companheira, revoga os dispositivos a esse respeito na Lei Federal nº 8.971/94.

Segundo artigo do professor Dimas Messias de Carvalho (2016, p. 07):

A Lei 8.971/94, além da meação dos bens adquiridos pelo esforço comum, conferiu ao companheiro sobrevivente a qualidade de herdeiro único na falta de descendentes e ascendentes, portanto, incluído na terceira classe de herdeiro, mesma posição ocupada pelo cônjuge. Existindo descendentes o companheiro possuía direito de usufruto de um quarto da herança e concorrendo com ascendentes o usufruto aumentava para a metade dos bens.

Em meio às injustiças e falhas do legislador, com relação à desigualdade conferida, no que diz respeito ao tratamento dispensado ao companheiro, Luiz Felipe Brasil Santos (2008) complementa: “merece profundo lamento o equivocado, injusto e discriminatório tratamento que o novo Código Civil confere ao direito sucessório dos companheiros”.

Ademais, o professor Inácio de Carvalho Neto (2004, p.112) comenta:

Assim como em relação ao cônjuge, também a sucessão do companheiro sofreu profundas alterações no novo Código. Algumas positivas, justamente as que seguiram a linha da sucessão do cônjuge; outras, todavia, extremamente negativas, verdadeiros retrocessos na sucessão do companheiro.

Para Zeno Veloso (2012, apud Hironaka, 2004):

Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4° grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no 3° milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4° grau do de cujus.

Tal limitação incidiu em grave injustiça, como bem explicitado por Luiz Felipe Brasil Santos (2008), nos termos que se seguem:

Basta imaginar a situação de um casal, que convivia há mais de 20 anos, residindo em imóvel de propriedade do varão, adquirido antes do início da relação, e não existindo descendentes nem ascendentes. Vindo a falecer o proprietário do bem, a companheira não terá direito à meação e nada herdará. Assim, não lhe sendo mais reconhecido o direito real de habitação nem o usufruto, restar-lhe-á o caminho do asilo, enquanto o imóvel ficará como herança jacente, tocando ao ente público.

Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2011, p. 420) em sua tese de titularidade, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, conforme citado por Tartuce (2015):

O art. 1.790 do CC/2002 restringiu a possibilidade de incidência do direito sucessório do companheiro à parcela patrimonial do monte partível que houvesse sido adquirido na constância da união estável, não se estendendo, portanto, àquela outra quota patrimonial relativa aos bens particulares do falecido, amealhados antes da evolução da vida em comum. A nova lei limitou e restringiu, assim, a incidência do direito a suceder do companheiro apenas àquela parcela de bens que houvessem sido adquiridos na constância da união estável a título oneroso. Que discriminação flagrante perpetuou o legislador diante da idêntica hipótese, se a relação entre o falecido e o sobrevivente fosse uma relação de casamento e não de união estável!

Da herança, em dispositivo de evidente equidade, na ausência de descendentes, ascendentes, colaterais, o convivente terá direito à totalidade da herança.

Nesse sentido Giselda Hironaka (2004, p.12) destaca:

Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovar o dispositivo, da forma como está, por recriar o privilégio dos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrer com o companheiro supérstite na 3ª classe da ordem de vocação hereditária. Assim, morto alguém que vivia em união estável, primeiros a herdar serão os descendentes em concorrência com o companheiro supérstite. Na falta de descendentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o companheiro sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o companheiro, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta destes será chamado o companheiro remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo. É flagrante a discrepância.

O reconhecimento da união estável como entidade familiar, pela CF/88, sem dúvida, provocou inúmeras mudanças para as situações fáticas da família brasileira, já que a Constituição só veio, na verdade, abraçar uma situação de fato já existente e que não era, todavia, reconhecida juridicamente.

O assunto promete evoluir no sentido de dar maior proteção ao companheiro.

Não obstante à crescente evolução dos direitos dos companheiros, na legislação brasileira, o CC-2002, trata do tema de uma maneira bastante obscura e, não raro, incoerente, gerando assim, incompatibilidade entre as normas vigentes.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 878.694

Diante da repercussão geral em torno da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC-2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a analisar e a julgar Recurso Extraordinário 876.684-MG, o preceito constitucional não fora observado no caso em questão, a companheira ganhara um tratamento diferenciado de forma incompatível com o cônjuge, no que diz respeito ao regime sucessório.

O acórdão que teve como relator o Ministro Luís Roberto Barroso, trata da possível inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC-2002.

Para o ministro, a ideia de que a relação oriunda do casamento tem peso diferente da relação havida da união estável é incompatível com a CF/88, por violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proteção da família. Além disso, o ministro salientou que a norma viola o princípio da vedação ao retrocesso. Desequiparar o que foi equiparado por efeito da Constituição é hipótese de retrocesso que a própria Carta veda, explicou Barroso, que entende que, neste particular, o Código Civil foi anacrônico e implementou retrocesso (Notícias Supremo Tribunal Federal, 2016).

 

 O ponto de partida em torno do tema foi a insatisfação de Maria de Fátima Ventura, que propôs ação declaratória de reconhecimento de união estável, após o falecimento do de cujus e requereu a totalidade da sua herança. Para ela o artigo 1.790 do Código Civil oferece um tratamento desigual à companheira em relação ao cônjuge. Ainda, segundo ela, há a violação da dignidade da pessoa humana.

Essas questões são o cerne do acórdão, que corroborou para dar início ao presente recurso extraordinário n. 878.694. Vejamos o inteiro teor do acórdão do Supremo Tribunal Federal:

REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 878.694 MINAS GERAIS RELATOR: MIN. ROBERTO BARROSO RECTE.(S): MARIA DE FATIMA VENTURA ADV.(A/S): MONIQUE DE LADEIRA E THOMAZINHO E OUTRO ( A / S ) RECDO.( A / S ): RUBENS COIMBRA PEREIRA E OUTRO ( A / S ) PROC.( A / S) (ES): DEFENSOR PÚBLICO -GERAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ementa: DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DISPOSITIVOS DO CÓDIGO CIVIL QUE PREVEEM DIREITOS DISTINTOS AO CÔNJUGE E AO COMPANHEIRO. ATRIBUIÇÃO DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.790 do Código Civil, que prevê ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles outorgados ao cônjuge pelo art. 1.829 do mesmo Código. 2. Questão de relevância social e jurídica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 3. Repercussão geral reconhecida. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (destaque nosso).

Trata-se de recurso extraordinário contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Em documento do Ministério Público Federal, consta que o pedido foi julgado procedente pelo juízo de primeiro grau reconhecendo a união estável dissolvida pela morte, atribuindo à autora totalidade da herança deixada pelo companheiro falecido, não aplicando, neste caso as disposições do artigo 1.790 do Código Civil.

Entretanto, este entendimento foi reformado pelo Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais, em acórdão que traz a seguinte ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. DIREITOS SUCESSÓRIOS DA COMPANHEIRA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE. RECONHECIMENTO PELO ÓRGÃO ESPECIAL DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DIREITO DE A COMPANHEIRA SOBREVIVENTE HERDAR TÃO SOMENTE OS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL, EM CONCORRÊNCIA COM OS PARENTES COLATERAIS DE SEGUNDO GRAU, EXCLUÍDOS, PORTANTO, OS BENS PARTICULARES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O Órgão Especial deste Tribunal reconheceu a constitucionalidade do art. 1.790, quando do julgamento do Incidente de nº 1.0512.06.0322313-2/002 , por entender que o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, visto que respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações. 2. A teor do inciso III do art. 1.790 do Código Civil, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro faz juz tão somente a um terço dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável a título de herança, pois concorre com os colaterais até quarto grau, devendo ser excluídos sua participação como herdeiro dos bens particulares do de cujus.

Para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro tem direito somente a um terço dos bens adquiridos durante a união estável a título de herança, pois concorre com os colaterais até quarto grau, excluindo-se assim, sua participação como herdeiro dos bens particulares do companheiro falecido.

É imperioso abordar que, embora a CF/88 tenha alargado o conceito de família, dando juridicidade ao vínculo afetivo entre um homem e uma mulher, batizando-o como união estável, há um verdadeiro retrocesso no tratamento dispensado aos companheiros, a eficácia jurídica e a aplicabilidade do texto constitucional, ensejaram a edição de normas protecionistas à família sem casamento.

Todavia, não obstante a nossa Carta Magna prever a união estável como forma de constituição de família, com uma gama de direitos assegurados, basta um olhar para a incompatibilidade das normas jurídicas e “a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente” assevera Zeno Veloso apud (IBDFAM, 2016).

O Recurso extraordinário em voga, tem levantado calorosos debates, de um lado a Procuradoria-Geral da República opinou pelo desprovimento do mesmo, argumentando que, embora a Constituição cidadã viesse a reconhecer, expressamente, a igualdade jurídica entre a união estável e o casamento, há distinções, ou seja, os mesmos não se equiparam.

Em contrapartida, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), que atua no feito como amicus curiae, defende o provimento do recurso, asseverando que “em virtude da normativa constitucional, a diferenciação sucessória entre cônjuge e companheiro afronta os princípios da não hierarquização das entidades familiares, da não discriminação, da igualdade e da vedação ao retrocesso”.

O juiz de primeiro grau entendeu que não justifica tratamento discriminatório em relação às famílias matrimonializadas, onde o cônjuge figura em terceiro lugar, na sucessão hereditária, não concorrendo com os colaterais do de cujus. O magistrado prestigiou o que recomenda a CF/88, que é a proteção jurídica à união estável.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), reformou a decisão, pois na sua concepção, o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro não é inconstitucional, ainda que a união estável receba proteção do Estado, não há equiparação entre ambas. Em trecho do acórdão consubstancia-se que “o ordenamento jurídico constitucional não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diferenciada, visto que respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações”.

Para sanar tais incompatibilidades, é de se entender, com isso, que as questões concernentes à união estável, ainda precisam de grandes mudanças para que estejam condizentes com a norma constitucional, no que se refere ao instituto.

Assim, atento a estas controvérsias, relativas ao CC-2002, nas palavras do Professor Mário Luiz Delgado (2016, p. 01), “O Supremo Tribunal Federal encontra-se prestes a afastar do panorama jurídico nacional a discussão que envolve a constitucionalidade de direitos sucessórios diferenciados para companheiros e cônjuge”, se referindo ao recurso extraordinário 878.694, que tem como relator o Ministro Luís Roberto Barroso, que, conforme visto, reconheceu a repercussão geral do caso.

Nesse contexto Sílvia Scocuglia (2016, p. 01) concatena:

O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a repercussão geral por levar em consideração, principalmente, o ponto de vista social e jurídico. Social, porque segundo ele o caso trata da proteção jurídica das relações de família num momento de “particular gravidade”, que é a perda do companheiro, o que pode resultar numa situação de desamparo não apenas emocional, como também financeiro. E jurídico, porque o Estado confere especial proteção à família.

O direito sucessório dos companheiros foi regulamentado pelo artigo 1.790 do Código Civil, na parte geral de sucessões, quando deveria ter sido inserido no artigo 1.829, no inciso III, ao lado do cônjuge. Percebe-se assim, uma nítida desigualdade entre os dois institutos, sendo considerada uma atitude inconstitucional perante o ordenamento jurídico brasileiro. Certamente, muitas alterações advirão, para que a CF/88, seja respeitada e os direitos de todos resguardados.

Para Luiz Orlando Carneiro (2016, p. 01):

No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios diferentes entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil. Assim, é inconstitucional o artigo 1.790 do mesmo código que discrimina a companheira ou companheiro em união estável, quando se trata de partilha de bens.

A questão atinente à união estável é uma realidade fática e que precisava ser regulamentada pelo ordenamento jurídico. O tratamento discriminatório dado ao instituto, pelo CC-2002, contradiz o preceito constitucional de que a união estável é uma entidade familiar e tem especial proteção do Estado.

Nesse sentido, no dia 31 de agosto de 2016, o STF começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da repercussão geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável (COSTA FILHO, 2016).

Ainda citando COSTA FILHO (2016): “aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil”.

Para o professor Mário Luiz Delgado (2016):

a intenção da lei talvez tenha sido guindar a união estável quase ao patamar do casamento civil, mas sem incorrer no equívoco da equiparação plena, sob pena de diluir por completo as diferenças existentes entre as duas entidades familiares.

E para finalizar, o professor Delgado (2016), ainda enfatiza:

Não se trata de hierarquizar o casamento em relação à união estável, mesmo porque está reconhecidamente superada a concepção monopolista do casamento como formatação legal de família e consensualmente admitido o caráter meramente exemplificativo do rol das entidades familiares posto no artigo 226 do texto constitucional, verdadeira lista aberta a comportar indefinidas formas de constituição de família, todas elas igualmente protegidas pelo Estado. Entretanto, a tutela estatal protetiva das entidades familiares típicas e atípicas não pode ficar reduzida a uma absoluta equiparação das molduras normativas, pois em sendo diversas as suas características e formas de constituição e dissolução, distintos podem ser os regimes legais. Não existem famílias mais ou menos importantes, mais ou menos reconhecidas, mas famílias diferentes, cada qual a seu modo e, por isso mesmo, mais ou menos reguladas.

Sete dos 11 ministros do STF votaram neste sentido, na sessão plenária do dia 31 de agosto de 2016 (quarta-feira), no início do julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral (RE 878.694) (CARNEIRO, 2016).

Neste sentido, apreciemos a pesquisa do STF, de acordo com a Ata nº 25, de 31/08/2016, DJE nº 194, divulgado em 09/09/2016:

Decisão: Após o voto do Ministro Roberto Barroso (Relator), que dava provimento ao recurso, nos termos do seu voto, no que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Carmen Lúcia, pediu vista dos autos o Ministro Dias Tóffoli. Ausentes, justificadamente, o Ministro Gilmar Mendes, e, nesta assentada, o Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Falaram, pelos amici curiae Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a Dra. Ana Luiza Maia Nevares, e, pelo amicus curiae Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, a Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidência da Ministra Carmen Lúcia (Vice-Presidente). Plenário, 31.08.2016.

O ministro-relator concluiu:

A Constituição contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta em casamento, incluindo-se as famílias decorrentes de união estável; não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, ou seja, a família formada pelo casamento e a família formada pela união estável; “no ordenamento constitucional vigente é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002” (CARNEIRO, 2016, p. 02).

O ministro Barroso ainda salientou:

por fim, a discussão é passível de repetição em inúmeros feitos, impondo-se o julgamento por esta corte a fim de orientar a atuação do judiciário em casos semelhantes. A decisão, assim, ultrapassa os interesses subjetivos da causa (CARNEIRO, 2016, p. 02).

Embora o ministro Dias Tóffoli tenha pedido vista dos autos Recurso Extraordinário (RE) 879.694 e o julgamento tenha sido suspenso, evidentemente que muito há de ser feito, principalmente por nossos tribunais. Eles terão a árdua missão de bem interpretar a nova legislação, porém, compete também aos juristas, formularem novas questões e promoverem debates para aclarar as questões dúbias no universo da consolidação da união estável e, assim, contribuírem para a construção de soluções mais justas e equânimes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia central deste trabalho esteve em torno da análise de incompatibilidades que emergiram frente aos direitos sucessórios do companheiro advindo da união estável, face ao Código Civil de 2002.

Ocorre que, com a Constituição Federal de 1988, a união estável entre homem e mulher foi considerada como entidade familiar tendo adquirido com isso a proteção do Estado.

Com o advento do CC-2002, entretanto, o preceito constitucional não fora observado, no que refere à sucessão, posto que o cônjuge foi elevado à categoria de herdeiro necessário e, em contrapartida, o companheiro só participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, devendo concorrer com parentes até o quarto grau.

Outrossim, percebe-se que o companheiro ganhara um tratamento diferenciado, de forma incompatível com o dispensado ao cônjuge. Ora, se ambos são considerados agentes de uma entidade familiar como reza o dispositivo constitucional vigente, não haveria justificativa para tal restrição.

Embora a norma esteja dentro do ordenamento jurídico, positivada em uma Lei Federal, observa-se, entretanto, que a mesma não é condizente a vontade do constituinte. As discrepâncias são grandes no que tange à sucessão hereditária dos companheiros, que ficaram em posição inferior aos cônjuges, sendo claramente discriminados indevidamente, não recebendo o mesmo tratamento, contrariando a CF/88.

Ademais, é importante mencionar que a regulamentação veio de forma tímida por duas leis anteriores, uma de 1994 (Lei Federal n° 8.971) e outra em 1996 (Lei nº 9.278). Nesse sentido, percebe-se que as leis arrastam-se em passos lentos, em disposições esparsas, não obstante o companheiro da união estável tenha assegurado uma gama de direitos frente a Carta Magna, percebe-se um flagrante desrespeito à legislação vigente.

Não se pode negar que avanços fantásticos foram registrados na questão da regulamentação da união estável, sobretudo no campo doutrinário e jurisprudencial. Portanto, uma revisão da lei hodiernamente seria um progresso necessário para trazendo à baila o reconhecimento adequado da união estável quanto aos direitos sucessórios.

Em sintonia com a repercussão da questão, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou através do Recurso Extraordinário n. 878.694, embora de forma tardia, pois muitas foram as injustiças perpetradas, concernentes ao companheiro. O nosso ordenamento jurídico, de forma retrógrada, se recusava a reconhecer essa união de fato.

Importante mencionar que, o assunto promete evoluir no sentido de dar maior proteção aos companheiros. Espera-se desse pronunciamento um tratamento igualitário, justo e livre de preconceitos.

É indiscutível que essa possível alteração na Lei, seria um avanço colossal, referente ao Direito de Família, enquadrando os companheiros aos cônjuges, disciplinando o assunto, com aplicabilidade imediata, para que as injustiças não mais se repitam. Que a doutrina e a jurisprudência sejam pacificadas, as desigualdades amenizadas, e que a proteção estatal se sobreponha sobre a vontade de uma sociedade individualista.

Esse trabalho, de certa forma, teve o intuito de analisar o texto legal de acordo com os dizeres e princípios basilares da CF/88, ressaltando a importância da união estável, no atual sistema legal, bem como sua regulamentação.

Contudo, as questões concernentes à união estável ainda precisam de grandes mudanças para que estejam condizentes com a norma constitucional no que se refere ao instituto, pois sendo uma entidade familiar como qualquer outra e tendo a proteção do Estado, qualquer tratamento discriminatório, é inconstitucional.

Resta então, aguardar o resultado do julgamento pela Suprema Corte, pertinente ao direito sucessório na harmonização dos dispositivos, podendo ser pacificado através de uma súmula vinculante, com eficácia erga omnes, corrigindo possíveis falhas e aniquilando uma flagrante injustiça dispensada aos companheiros. Por fim, registra-se que no decorrer dessa pesquisa, o julgamento estava suspenso, para vista dos autos.

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Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Célia Cristina Mendes. Análise da (in)constitucionalidade do tratamento legal distinto ao companheiro e ao cônjuge quanto aos direitos sucessórios no Brasil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/analise-da-inconstitucionalidade-do-tratamento-legal-distinto-ao-companheiro-e-ao-conjuge-quanto-aos-direitos-sucessorios-no-brasil/ Acesso em: 29 mar. 2024