Direito Tributário

Natureza ex lege do tributo. Aspectos práticos

Natureza ex lege do tributo. Aspectos práticos

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

     Às vezes, as noções mais óbvias são ignoradas. O princípio da obviedade nem sempre funciona

 

 

     Quem visualizar o título do artigo, certamente, perderá interesse na leitura do texto respectivo, partindo do pressuposto de que o seu autor está pretendendo fazer uma proclamação acaciana.

 

     Entretanto, aqueles que me conhecem de perto insistirão na leitura do artigo, apesar do título nada animador em termos de divulgação de conhecimentos novos.

     O propósito deste artigo é o de demonstrar que não basta definir a natureza jurídica do tributo. É preciso que, a partir da definição consolidada em torno dele, o leitor saiba extrair todas as conseqüências daí advindas, abandonando posições doutrinárias e jurisprudenciais com ela incompatíveis.

 

     São unânimes a doutrina e a jurisprudência quanto à natureza ex lege da obrigação tributária contrapondo-se à natureza ex voluntate da obrigação de direito comum. A obrigação tributária só pode resultar de lei, lei em sentido estrito, por força do princípio da legalidade tributária que remonta à Carta Magna de 1215 e que está cristalizado em todas as Constituições de Estados Democráticos. A nossa Carta Política de 1988 inscreveu-o no art. 150, I, nos seguintes termos:

 

    Art. 150 – sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

    I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.

 

     Eis aí a matriz constitucional que levou a doutrina e a jurisprudência proclamar a natureza ex lege do tributo. Enquanto o tributo só pode nascer da lei, a obrigação de direito comum pode tanto nascer da lei como de decorrer de contrato.

 

     Resta claro, portanto, que só a lei pode ser fonte formal de tributo. Até aqui, nada de novo; parece proclamação do óbvio! Mas, na prática, não é bem assim, como veremos a seguir.

 

     Toda legislação que dispõe sobre o pedido de parcelamento de débito tributário, nas três esferas políticas, contém disposição versando sobre a ‘confissão irretratável do débito’ e desistência de eventuais recursos administrativos e de procedimentos judiciais acerca do débito objeto de parcelamento, como condição para seu deferimento.

 

     Interessante notar que basta a leitura ocular dessas disposições legais sobre a ‘confissão irretratável do débito’ para obstar definitivamente qualquer possibilidade de discussão do ‘débito confessado’ na esfera judicial, inclusive, impossibilitando o exercício da ação de repetição de indébito.

 

     Ora, esse posicionamento, além de vulnerar o princípio da inafastabilidade da jurisdição, inscrito no art. 5º, XXXV da CF, implica ignorar a natureza ex lege do tributo, que todos costumam proclamar em alto e bom som.

 

     Se a lei não criou o tributo (lei válida), uma confissão daquele que seria o sujeito passivo da obrigação tributária não poderia jamais implicar o surgimento da obrigação tributária. Não há, nem pode haver tributo, sem lei válida definindo seu fato gerador, da mesma forma que não há, nem pode haver crime, sem prévia definição legal. Uma confissão de crime, inexistente no mundo jurídico, não tem o condão de fazer do acusado um criminoso. Neste particular, o direito tributário e o direito penal têm um ponto em comum, qual seja, a tipicidade cerrada que não permite o emprego de analogia para deduzir um resultado jurídico.

 

     O que deveria ser óbvio, na prática, não o é. Parcela ponderável da jurisprudência pátria vem elegendo a ‘confissão espontânea do débito’, que decorre do pedido de parcelamento, como fonte de obrigação tributária, impedindo a discussão judicial do débito confessado.

 

     Aliás, esclareça-se que, na verdade, não existe a ‘confissão espontânea do débito’, porque a lei tributária, viciada ou não, enquanto não expurgada do mundo jurídico, carrega consigo a sanção coativa, que retira a espontaneidade do suposto devedor. De fato, este poderá sofrer, desde sanções pecuniárias elevadas, até embaraços no exercício regular de sua atividade (sonegação da certidão negativa de tributos, execução fiscal, inscrição no Cadin etc).

 

     Examinemos um caso concreto em que foi conferido ao ‘termo de parcelamento’ a força criadora do tributo.

 

     Tratava-se de um caso de importação de um hilicoptero, sob o regime de arrendamento mercantil, livre do ICMS, conforme expressamente consignado no inciso III, do art. 3º da LC nº 87/96. Ante a exigência do imposto, pelo fisco estadual, como condição para liberação do equipamento no cais alfandegário, a importadora ante a imediata necessidade de utilização daquele aparelho, procedeu ao parcelamento com que acenou o fisco obtendo sua liberação. Depois de pagas várias parcelas resolveu questionar a exigência fiscal com amparo na lei e na jurisrprudência.

 

     Ingressou então com a ação anulatória do débito tributário, cumulada com a de repetição de indébito, requerendo a tutela antecipada para o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário sob discussão, afim de que não fosse obstado o fornecimento de certidão positiva com efeito de negativa, na pendência da lide. Denegada a tutela antecipatória seguiu-se o agravo de instrumento com pedido de efeito ativo. Seguiu-se a negativa do efeito ativo e foi, afinal, negado provimento ao agravo, cuja ementa vai abaixo transcrita:

 

    ‘Tendo o contribuinte efetuado acordo para parcelamento do débito, fica afastada, pelo menos em termos de cognição incompleta, a verossimilhança do direito alegado, o que indica a irrelevância da fundamentação do recurso. Recurso improvido.’ (Agravo de Instrumento nº 381.861-5/7, Rel. Des. Laerte Sampaio).

 

     Após transcrever ementas de vários acórdãos do STJ, no sentido da não incidência do ICMS sobre a importação sob o regime de arrendamento mercantil, o ínclito Relator do agravo afirmou que ‘no mesmo sentido são os julgados nos REsp 239.331/SP, REsp 439.884/SP, REsp 58.376/SP, REsp 22.299/SP, REsp 24.756/SP, REsp 39.397, EDREsp 39.397, REsp 24.756, REsp 57.525, REsp 30.573, REsp 58.376, REsp 253.882, MC 2.741, REsp 299.674, REsp 341.423, REsp 351.772, REsp 439.884, REsp 239.331, AGA 343.438, ADREsp 475.154, REsp 542.379, REsp 523.528, AGREsp 413.656, MC 6.242 e AGA 385.174′.

     Depois de citar toda a jurisprudência no sentido da inexigibilidade do ICMS na espécie, o douto Relator afirmou:

 

    ‘Havendo, pois, fundamento relevante no sentido da inocorrência de hipótese de incidência na entrada em território nacional das aeronaves arrendadas, a questão se restringe aos efeitos do ato de acordo de parcelamento’.

 

     Ora, reconhecida a inocorrência do fato gerador, por força de expressa exclusão legal do ICMS, no caso de arrendamento mercantil, nada mais haveria para analisar, posto que, o tributo não poderia resultar de acordo ou confissão, tanto quanto o crime. Neste particular, a tipicidade tributária e a tipicidade penal têm um ponto em comum.

 

     Contudo, o V. acórdão alegando necessidade de comprovar que o ato praticado é nulo total ou parcialmente, por um dos vícios previsto nos artigos 145 e 147 do CC, negou-se provimento ao agravo amparando essa decisão, também, na orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que ‘no momento em que o contribuinte prefere parcelar a dívida, aceita o que lhe é exigido pelo Fisco, não há mais lugar para a discussão sobre o principal e os acréscimos (REsp 147.697 e AGREsp 278.268)’.

 

     Com todas as vênias, tanto o V. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como a jurisprudência do STJ que direcionou o julgamento do referido agrafo estão equivocados.

 

     Evidente que a questão deveria ter sido decidida à luz da natureza ex lege do tributo já que, proclamado e reconhecido, com base na lei e na jurisprudência, de que o imposto seria indevido , por não ter ocorrido o fato gerador da obrigação tributária.

 

     Ora, se o tributo pago por confissão, via parcelamento, não pode ser repetido, apesar de inexistente legalmente, há de convir que afastada restará a natureza ex lege da obrigação tributária. Logo, o tributo poderia nascer da convenção das partes, da mesma forma que poderia ser aumentando, diminuído ou remido por vontade das partes.

 

     Logo, o princípio da estrita legalidade tributária, previsto no art. 150, I da CF, não teria aplicação, o que seria um absurdo, porque integra a garantia fundamental, insusceptível de supressão por via de emendas constitucionais (art. 60, § 4º, IV da CF).

 

     Se o tributo confessado não pode ser repetido, a ação de repetição simplesmente dera desaparecer do mundo jurídico, pois todo tributo pago, devido ou indevido, importa na prévia confissão do tributo. Implica prévia consciência de que se não pagar terá que arcar com as conseqüências da ação fiscal. Por isso, em direito tributário, ao contrário do que ocorre no direito comum, não se exige a prova do erro na repetição. A norma tributária, válida ou inválida, até que seja declarada nula pelo Judiciário tem o condão de coagir o sujeito passivo porque o agente público competente, sob pena de prevaricação, não pode deixar de exigir o pagamento do tributo por ele entender inconstitucional sua cobrança.

 

     Na prática, como vimos, as noções mais óbvias são ignoradas, o que justifica a abordagem do tema enfocado: a natureza ‘ex lege’ do tributo.

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças.  Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Natureza ex lege do tributo. Aspectos práticos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/natureza-ex-lege-do-tributo-aspectos-praticos/ Acesso em: 28 mar. 2024