Direito Civil

A Meia-Passagem dos Estudantes

A Meia-Passagem dos Estudantes

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

02.08.2003

 

Nos termos do art. 134 da Constituição Federal de 1988, cabem à Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa dos necessitados. O Estado é obrigado a prestar assistência jurídica integral e gratuita a quem comprovar insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV). A Lei Complementar nº 80/94 organizou a Defensoria Pública da União e estabeleceu as normas gerais para a sua organização nos Estados, exigindo o concurso público de provas e títulos para o preenchimento dos cargos e proibindo o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. Além disso, essa Lei Complementar fixou o prazo de seis meses para que os Estados organizassem as suas Defensorias.

 

         No entanto, até hoje, o Estado de São Paulo não tem Defensoria Pública, porque o Governo estadual, através da Procuradoria Geral do Estado, firmou um convênio milionário com a Seccional da OAB, que desde 1997 seleciona advogados para a prestação da assistência judiciária, mediante remuneração pelos cofres públicos. Ressalte-se que a própria Constituição do Estado de São Paulo, de 05.10.1989, fixou um prazo de 180 dias para que o Poder Executivo encaminhasse à Assembléia Legislativa o projeto de Lei Orgânica da Defensoria Pública, e permitiu apenas provisoriamente o exercício das atribuições da Defensoria pela Procuradoria Geral do Estado, ou por advogados contratados ou conveniados.

 

         Mais recentemente, em novembro de 2.002, a OAB de São Paulo assinou um convênio inédito com a Prefeitura de São Paulo, também para a prestação de assistência judiciária remunerada pelos cofres públicos. Qualquer informação sobre esses convênios pode ser obtida pela internet, nas páginas da PGE do Estado de São Paulo e do Conselho Federal da OAB. Pode ser obtida, também, a informação de que o Governador paulista afirmou que, mesmo sendo implantada a Defensoria Pública, ainda será necessária a manutenção do Convênio com a OAB, por dez anos, no mínimo, para que os carentes não fiquem sem a assistência judiciária gratuita!!

 

         Na minha opinião, para não se afastar de sua missão constitucional, em vez de assinar esses convênios, caberia à OAB ter exigido o cumprimento da Constituição, para que fosse imediatamente organizada a Defensoria em São Paulo. De acordo com o art. 44 de nosso Estatuto, compete à Ordem: I) defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, etc., e II) promover, com exclusividade, a representação e a defesa dos advogados, etc., mas tudo indica que a Ordem paulista se preocupou, exclusivamente, com a defesa dos advogados contra o desemprego. Dos 170.000 advogados paulistas, pelo menos 36.000 já estão sendo remunerados pelo Estado, através do Convênio de Assistência Judiciária.

 

         Também se omitiu o Ministério Público de São Paulo, a quem caberia ajuizar uma ação civil pública, para exigir a instalação da Defensoria e a realização dos concursos públicos.

 

         Mas a pacífica manutenção desses convênios, durante muitos anos, sem maiores oposições, serve para comprovar a absoluta necessidade de controle do poder. A própria OAB, que costuma exigir a criação de um controle externo para o Judiciário, e o próprio Executivo, que pretende abrir a sua famosa “caixa preta”, também precisam ser controlados, para que se evitem os abusos. E, por favor, não se trata de “garrotear a OAB”, como já afirmou um ilustre jurista. Trata-se, apenas, de evitar o eventual abuso de poder por parte de alguns de seus dirigentes, para que a Ordem possa desempenhar a contento a sua missão constitucional. O controle é absolutamente necessário, para limitar o poder dos dirigentes que acaso dele pretendam se aproveitar, com finalidades pessoais ou corporativas. Para esses, o garrote é indispensável.

 

         O controle do poder é absolutamente essencial em um Estado Democrático de Direito. O Judiciário precisa ser controlado, assim como o Ministério Público, as Procuradorias, a Ordem dos Advogados, os Tribunais de Contas, os órgãos legislativos, as autoridades executivas, e até mesmo as grandes corporações, que se tornam às vezes mais poderosas do que o próprio Estado. Quem quer que exerça uma parcela de poder precisa ser controlado. A OAB exerce enormes parcelas do poder estatal e desempenha importantíssimas atribuições constitucionais. Precisa, portanto, com absoluta certeza, ser controlada.

 

Sem o efetivo controle, poderão prevalecer o corporativismo e os interesses particulares, fazendo com que o poder, que teoricamente pertence ao povo, seja exercido em benefício de determinados interesses, bem distintos do interesse público. As preocupações salariais serão sempre colocadas em primeiro lugar, e o corporativismo jurídico se desenvolverá sem freios, ensejando os “acordos” entre o Judiciário, o Ministério Público, os políticos, os empresários e os advogados, para que a Constituição e as leis não sejam cumpridas, ou para que sejam interpretadas exatamente de acordo com os seus interesses.

 

Enfim: os interesses individuais e corporativos não devem prevalecer sobre o interesse público e sobre a moralidade. Não é possível que os verdadeiros detentores do poder continuem isentos de qualquer controle, porque é muito mais importante exigir o funcionamento democrático das instituições, do que nos contentarmos com o simples processo eleitoral, democrático, de fachada, de investidura dos governantes 26.06.2003

 

         O DIÁRIO DO PARÁ noticiou, no último dia 25, que o prazo para a solicitação ou para o recadastramento da carteira de meia-passagem, na Ctbel, terminará no próximo dia 30. Dos 448 mil alunos, apenas 150 mil já conseguiram cumprir as exigências burocráticas desse Órgão municipal. Os outros 298 mil deverão enfrentar enormes filas, ou desistir de seu direito à meia-passagem. Em outra notícia recente, de 23.04.2003, a Ctbel era acusada de atrasar a emissão das carteiras para os universitários da UFPA e da Unama, como forma de beneficiar os empresários do setor de transportes.

 

         A questão não é nova, mas a verdade é que, até esta data, não vêm sendo cumpridas as normas estaduais e municipais existentes. De acordo com o art. 284 da Constituição Estadual, “É assegurado aos estudantes de qualquer nível o benefício da tarifa reduzida à metade, nos transportes urbanos, terrestres ou aquaviários, na forma da lei”.

 

Não haveria qualquer razão jurídica para que os estudantes fossem obrigados a se submeter a esse cadastramento, na Ctbel, porque a Lei Complementar estadual nº 8/91 é muito clara, quando determina, em seu art. 2º, que “A aquisição do benefício da meia-passagem de que trata o art. 284 da Constituição Estadual, a estudantes de qualquer nível da rede pública e privada, será concedida com a simples apresentação da carteira de identidade estudantil no momento do pagamento da passagem, prescindindo de qualquer outro comprovante ou controle.” Ou seja: o cadastramento que está sendo imposto aos estudantes fere frontalmente essa norma, porque impõe outro comprovante ou controle. Provavelmente, a Ctbel entende que essa norma é inconstitucional, porque o Estado não poderia invadir a competência do Município, estabelecendo essa redução tarifária nos transportes urbanos.

 

         No entanto, a invasão da competência do Município não poderia ser a verdadeira razão, porque existe uma norma idêntica, do próprio Município de Belém, que impediria também esse cadastramento da Ctbel, exatamente o art. 146, inciso VII, de nossa Lei Orgânica, que determina a redução à metade do valor das tarifas, nos transportes urbanos, “mediante a simples apresentação, para estudantes, da carteira de identidade estudantil.” Quer dizer: bastaria que o estudante apresentasse, ao cobrador, a sua identidade estudantil, no momento do pagamento da passagem. Ou será que isso não está suficientemente claro, no art. 146 da Lei Orgânica? Será que esse artigo é também inconstitucional?

 

         Verifica-se, portanto, que a Ctbel está deliberadamente descumprindo as normas estaduais, mas está descumprindo, também, uma norma constante da própria Lei Orgânica do Município de Belém. Qual poderia ser a razão, para esse descumprimento?

 

         Aliás, existe ainda a lei estadual nº 6.151/98, que estendeu o benefício da meia-passagem aos estudantes de cursos preparatórios para vestibulares. No entanto, a Ctbel nega esse direito aos estudantes dos Cursinhos, alegando que essa Lei é inconstitucional.

 

         Não custa nada lembrar que existe um princípio fundamental, chamado princípio da legalidade. Somente as leis podem nos obrigar a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Todas elas, uma vez publicadas no Diário Oficial, são obrigatórias. Se eu descumprir uma norma do Código de Trânsito, por exemplo, o guarda da Ctbel vai apitar e eu serei obrigado a pagar uma multa, de 180 Ufir. No entanto, a própria Ctbel acredita que pode descumprir as citadas leis estaduais e municipais, durante anos, prejudicando 450 mil estudantes, porque não existe nenhuma autoridade que a possa ou queira punir por essas infrações, muito mais graves do que a simples falta de um cinto de segurança. Não basta, evidentemente, que a autoridade administrativa diga que a lei é inconstitucional, para que impunemente a descumpra, porque somente o Poder Judiciário poderia decidir a esse respeito, e declarar a inconstitucionalidade de uma lei.

 

O que parece existir é uma preocupação com os prejuízos sofridos pelos proprietários das empresas de transporte. Na verdade, o concessionário não tem o dever de arcar com os custos dessas isenções e reduções de tarifas, assim como não é possível, também, que esses custos continuem sendo repassados para as tarifas pagas integralmente pelos demais usuários. A solução seria a transferência desses custos para toda a comunidade.

 

Deve ser dito, ainda, que tramitam em nossa Assembléia Legislativa um projeto de Emenda Constitucional, de nº 01/2003, e um projeto de lei ordinária, de nº 28/2003, ambos de autoria da Deputada Sandra Batista, para estender o benefício da meia-passagem aos transportes intermunicipais, o que parece ser muito justo, porque garante e amplia o acesso à educação.  Resta, porém, uma dúvida: se forem aprovados esses projetos, qual será o seu destino? Serão também ignorados e descumpridos pelo Município de Belém?

 

A verdade é que o abuso do poder e a inexistência, na prática, das autoridades que seriam competentes para evitar que isso acontecesse, e que são regiamente remuneradas com os nossos impostos, nos deixam bastante pessimistas, e com muita raiva. Felizmente, ainda podemos contar até dez. Não estamos na mesma situação do nosso Presidente, que já afirmou que só pode contar até nove, porque perdeu o seu dedo mindinho..

                                                                                        

 

* Professor de Direito Constitucional

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. A Meia-Passagem dos Estudantes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-meia-passagem-dos-estudantes/ Acesso em: 28 mar. 2024