Direito Civil

Alimentos desde a concepção

Alimentos desde a concepção

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Há verdades que ninguém ousa questionar, independentemente de se estar no mundo oriental ou ocidental, cristão ou fundamentalista, democrático ou monárquico. O respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana é uma imposição de todos os povos e de todas as gentes. Dar efetividade a este princípio deve ser a preocupação maior da humanidade.

 

A Constituição Federal, ao elencar os direitos das crianças e dos adolescentes, tenta sintetizar o que se compreende na idéia de direito à dignidade. É assegurado, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, devendo as crianças e os adolescentes ser colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF, art. 227). Ainda que estas sejam obrigações do Estado, tais encargos são repassados à família e à sociedade, colocando-se o Poder Público em confortável terceiro lugar, ao dizer que o dever é da família, da sociedade e do Estado.

 

 O direito primeiro é à vida, e não há como garanti-lo sem assegurar direito à sobrevivência. Neste conceito mister reconhecer que está inserida a obrigação alimentar. Aliás, uma das raras exceções de possibilidade de prisão civil por dívida é exatamente a dívida alimentar (CF, art. 5º, LXVII).

 

 Para assegurar tutela diferenciada a direito que diz com a subsistência e que necessita de adimplemento imediato, a ação de alimentos dispõe de lei própria, dotada de rito especial e de procedimentos abreviados (LA, 5.578-68). A ação pode ser intentada não só pelo credor, que sequer precisa estar representado por advogado, mas também pelo Ministério Público, que tem legitimidade para propor a ação (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 201, III).

 

Mediante a prova do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar (LA, art. 2º), o juiz estipula, desde logo, alimentos provisórios. Não há sequer a necessidade de ser provada a obrigação do réu ou o vínculo familiar. Trazendo o autor indícios que comprovem a existência da obrigação, são deferidos alimentos provisórios, como acontece na ação investigatória de paternidade cumulada com pretensão alimentar.  Aliás, mesmo se não requeridos, os alimentos devem ser fixados, a não ser que o credor expressamente declare que deles não necessita (LA, art. 4º).

 

Os alimentos são devidos desde a data em que são fixados, ou seja, mesmo antes de ser o réu citado para a ação. Não há como sujeitar o pagamento ao ato citatório. Mantendo o devedor vínculo empregatício, ao fixar os alimentos, o juiz oficia ao empregador para que ele, desde logo, dê início ao desconto da pensão no salário do alimentante. Os descontos passam a acontecer mesmo antes da citação do réu. Não mantendo o devedor vínculo laboral, não há como admitir que a obrigação só se constitua depois de ser ele citado, pois é descabido tratamento diferenciado. Além de deixar o credor desassistido, estar-se-ia incentivando o devedor a esquivar-se da citação, a esconder-se do Oficial de Justiça.

 

Na hipótese de não terem sido fixados alimentos provisórios ou de serem os alimentos estipulados na sentença em valor superior ao montante estabelecido em sede liminar, a decisão dispõe de efeito retroativo. A partir do trânsito em julgado da sentença, quando os alimentos se tornam definitivos, são devidos desde a data da citação (LA, art. 13, § 2º). O réu deve pagar o montante das diferenças acumuladas durante este período.

 

Esta sempre foi a posição pacífica da jurisprudência respaldada na doutrina amplamente majoritária. Porém, nada justifica limitar a obrigação alimentar ao ato citatório. Os encargos decorrentes do poder familiar surgem quando da concepção do filho (Código Civil, art. 4º): a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro. Na hipótese de negar-se o genitor a prestar auxílio à gestante, dispõe esta de legitimidade para propor ação de alimentos em nome do filho que ainda não nasceu. Ele necessita de cuidados especiais mesmo durante a vida intra-uterina. A mãe tem que se submeter a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas. O sistema estatal de saúde é gratuito, mas deficitário. Durante a gravidez, a mãe precisa de roupas especiais e alimentação adequada, sem olvidar que tem sua capacidade laboral reduzida durante a gestação e depois do nascimento do filho. Também seus ganhos são limitados durante o período da licença-maternidade.

 

Desde a ciência da concepção, antes do nascimento, mesmo antes do momento em que o pai procede ao registro do filho, está por demais consciente de todos os deveres inerentes ao dever parental, entre os quais o de assegurar o sustento e a educação da prole. Enquanto os pais mantêm vida em comum, e o genitor tem o filho sob sua guarda, cumprir os deveres decorrentes do poder familiar constitui obrigação de fazer. Cessada a convivência dos genitores, não se modificam os direitos e deveres com a relação aos filhos (Código Civil, arts. 1.579 e 1.632). Restando a guarda do filho com somente um dos pais, a obrigação decorrente do poder familiar resolve-se em obrigação de dar, consubstanciada no pagamento de pensão alimentícia.

 

Assim, o genitor que deixa de conviver com o filho deve imediatamente passar a alcançar-lhe alimentos, ou espontaneamente, mediante pagamento de alimentos, ou por meio da ação de oferta de alimentos. Como os alimentos se destinam a garantir a subsistência, precisam ser pagos antecipadamente. Assim, no dia em que o genitor sai de casa, deve depositar alimentos em favor do filho. O que não pode é, comodamente, ficar aguardando que o filho proponha a ação alimentar e, enquanto isso, quedar-se omisso, só adimplindo a obrigação depois da propositura da ação. Ou pior, só pagar depois de citado.

 

Cabe lembrar que, na ação de alimentos, há inversão dos encargos probatórios. Ao autor cabe tão-só comprovar o vínculo de parentesco ou a obrigação alimentar do réu. Não há como lhe impor que comprove os ganhos do demandado, pois são informações sigilosas que integram o direito à privacidade. É do réu o ônus de provar seus ganhos para que o juiz possa fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade. Também quanto à cessação do convívio e ao não-pagamento dos alimentos, compete ao autor indicar as circunstâncias em que ocorreu a mora, sendo do réu o encargo de demonstrar que continuou exercendo os deveres inerentes do poder familiar.

 

Em se tratando de obrigação decorrente do poder familiar, é inequívoca a ciência do réu do direito reclamado pelo autor. Não há por que invocar a regra do Direito Processual que constituiu o devedor em mora pela citação (Código de Processo Civil, art. 219), para impor-lhe o adimplemento da obrigação alimentar. A mora se dá quando deixa o genitor de prover o sustento do filho. Este é o marco inicial da obrigação alimentar. Assim, proposta a ação, além da prova do parentesco, faz-se mister também que venha comprovado o momento em que deixou o devedor de adimplir o dever de sustento. Neste momento, o juiz fixa os alimentos provisórios. Por ocasião da sentença, deve estabelecer o termo inicial dos alimentos aquém da data da citação e aquém da data da propositura da ação. O dies a quo será o momento em que houve a cessação do adimplemento dos deveres de sustento decorrente do poder familiar.

 

Nas ações de alimentos, separação, anulatória de casamento, existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional de natureza alimentar. Daí a possibilidade de uso da lei especial (Lei 5.478-68), que dispõe de rito diferenciado e admite a concessão de tutela antecipada por meio dos alimentos provisórios.

 

O certo é que admite a lei a cumulação da ação de alimentos com outras demandas, ao determinar sua aplicação às ações de separação, de anulação de casamento e às ações revisionais de alimentos (LA, art. 13). Porém, ao invés de seguir-se a regra geral, que é a adoção do rito ordinário quando são cumulados pedidos com tipos diversos de procedimento (CPC, 292, § 2º), é imposto o rito especial da ação de alimentos. Assim, ao ser cumulado pedido de alimentos a ações outras, o procedimento será o especial, com a imposição de alimentos provisórios, audiência conciliatória, etc.

 

Na ação de investigação de paternidade, inexiste o vínculo constituído da relação de parentesco. Aliás, este é o objeto da ação. Ainda assim, por salutar construção jurisprudencial, passou-se a admitir o pedido de alimentos, que é concedido a título de alimentos provisórios. Havendo indícios de prova da paternidade, são fixados alimentos initio litis. Também são deferidos alimentos provisórios de modo incidental: ou quando do resultado positivo do exame de DNA, ou quando da recusa do réu em se submeter à perícia.

 

Depois de algumas vacilações, a jurisprudência, ao atentar à natureza declaratória da demanda investigatória de paternidade, deu mais um significativo passo, e o Superior Tribunal de Justiça veio a editar a Súmula 227: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação. Acabou por invocar-se dispositivo da Lei de Alimentos (art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. A referência legal “em qualquer caso” diz com a determinação constante no caput do artigo de sua aplicação às ações de separação, de anulação de casamento e às ações revisionais de alimentos. Em todas essas demandas, existe a prova do vínculo obrigacional. Na demanda investigatória, essa prova não existe, mas a solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta às posturas procrastinatórias do réu que usava todos os expedientes protelatórios e um sem-número de recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação, pois a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente na sentença. Com isso, livrava-se o réu durante anos, ou décadas, do encargo alimentar.

 

Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem todos os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. O simples fato de não assumir a responsabilidade parental não o desonera. No entanto, é isso que se vê acontecer todos os dias. Ao saber que a namorada ou companheira está grávida, o homem tenta induzi-la ao aborto, nega ser o pai, a abandona. Ameaça comprometer sua reputação argüindo a malsinada exceptio plurium concubentium e que levará vários amigos como testemunhas para afirmarem que mantiveram contato sexual com ela. A genitora fragilizada, normalmente abandonada pela família, acaba tendo o filho sozinha. Tem enorme dificuldade de procurar um advogado, de amealhar provas de um relacionamento íntimo que lhe causou tanto sofrimento e que, muitas vezes, por imposição do varão, se manteve na clandestinidade.

 

O filho tem direito à identidade, à proteção integral, merece viver com dignidade, precisa de alimentos, quer ter alguém para chamar de pai… mas acaba, durante muitos anos, no mais completo abandono. Quando, depois de vários anos, consegue obter o reconhecimento da paternidade, surpreendentemente, os alimentos são fixados a partir da citação do genitor. Parece que o filho nasceu naquele dia. Diante dessa orientação consolidada da jurisprudência, não há falar em responsabilidade parental. Quem é o pai que irá acompanhar a mãe, registrar o filho e pagar alimentos sabendo que, se ficar inerte e lograr safar-se da citação, poderá ficar anos sem arcar com nada? 

 

É necessário dar efetividade ao princípio da paternidade responsável que a Constituição (CF, art. 227) procurou realçar quando elegeu, como prioridade absoluta, a proteção integral a crianças e a adolescentes, delegando tal compromisso não só à família, mas também à sociedade e ao próprio Estado. Esse compromisso é também do Poder Judiciário, que não pode simplesmente desonerar o genitor de todos os encargos decorrentes do poder familiar e, na ação investigatória de paternidade, responsabilizá-lo, exclusivamente, a partir da citação.

 

Mas há outro princípio constitucional que necessita ser invocado: o que impõe tratamento isonômico aos filhos, vedando tratamento discriminatório (CF, art. 227, § 6º). O pai precisa acompanhar o filho desde sua concepção, assistir ao parto, registrá-lo, embalá-lo no colo. Quando assim não age com relação a todos eles, deixando de assumir, por exemplo, os filhos havidos fora do casamento, deve a Justiça procurar suavizar essas desigualdades e não as acentuar ainda mais.

 

Claro que a alegação do demandado sempre será de que desconhecia a gravidez, não sabia do nascimento do filho e sequer tomara conhecimento da sua existência, só vindo a saber de tais fatos quando citado para a ação de investigação. Assim, cabe ao autor demonstrar as circunstâncias em que o pai tomou conhecimento de sua concepção, do seu nascimento ou da sua existência. Não logrando o réu comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser-lhe imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que tomou ciência da paternidade. 

 

Outro fundamento a ser utilizado pelo réu para livrar-se do pagamento dos alimentos com efeito retroativo é o de que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. No entanto, desde o surgimento do exame do DNA, que dispõe de índice de certeza quase absoluto, ninguém mais pode se alegar dúvida sobre a verdade biológica. Nem o seu elevado custo nem a negativa da genitora em deixar o filho submeter-se ao exame servem de justificativa para o genitor não buscar a verdade. Basta ingressar com ação declaratória ou negatória de paternidade. Também é possível ajuizar cautelar de produção antecipada de prova. Em todas as hipóteses, o acesso ao exame genético é gratuito, a quem não tem condições para pagar.

 

Assim nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. Esta é a orientação que já vem insinuando-se na doutrina brasileira[1] e despontando na jurisprudência.[2]

 

É muito bonito falar em paternidade responsável, em proteção integral às crianças, porém é preciso dar efetividade a todos esses princípios. Certamente a responsabilidade é da Justiça. Para isso, não é necessário aguardar o legislador. Basta o Poder Judiciário continuar desempenhando o seu papel com coragem e responsabilidade, para garantir a todos o direito à  dignidade humana, principalmente ao cidadão de amanhã.

 

 

 

 

[1] FERNANDES, Thycho Barhe. Do Termo Inicial dos Alimentos na Ação de Investigação de Paternidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 694, p. 268-70, 1993; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Termo Inicial dos Alimentos e a Ação de Investigação de Paternidade, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, n. 6, p. 50-60, 2000; BORGHEZAN, Miguel. O Termo Inicial dos Alimentos e A Concreta Defesa da Vida na Ação de Investigação de Paternidade, Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, 3/18048, 2001.

 

[2] INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECUSA EM SUBMETER AO EXAME DE DNA. ALIMENTOS. FIXAÇÃO E TERMO INICIAL À DATA DA CONCEPÇÃO. A recusa em se submeter ao exame de paternidade gera presunção da paternidade. O fato de inexistir pedido expresso de alimentos não impede o magistrado de fixá-los, não sendo extra petita a sentença.

 

O termo inicial da obrigação alimentar deve ser o da data da concepção, quando o genitor tinha ciência da gravidez e recusou-se a reconhecer o filho. REJEITADA A PRELIMINAR. APELO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).

 

 

* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Alimentos desde a concepção. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/alimentos-desde-a-concepcao/ Acesso em: 29 mar. 2024