Direito Civil

Os alimentos após o Estatuto do Idoso

Os alimentos após o Estatuto do Idoso

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Sumário: 1. Nova lei, novos direitos 2. Pólos opostos, direitos compostos 3. A quem se socorrer 4. A lacuna preenchida pela solidariedade 5. Divisibilidade e proporcionalidade versus solidariedade 6. A obrigação alimentar estatal 7. Alimentos e o princípio da proteção integral 8. Legitimidade passiva 9. A convocação dos devedores a juízo 10. Litisconsórcio passivo alternativo sucessivo 11. Como executar 12. Executividade da transação e meios executórios 13. Referências bibliográficas

 

 

 

1. Nova lei, novos direitos

 

Sempre foi valorada a experiência das pessoas mais velhas como fonte de sabedoria, tanto que os conselhos dos idosos são recebidos até com certa reverência, pois, afinal, a vida tem muito a ensinar.

 

Imperioso é emprestar a mesma respeitabilidade ao Estatuto do Idoso (EI), verdadeiro monumento legal que, de forma exaustiva e com acentuada finalidade protetiva, veio atender à parcela da população cuja vivência e maturidade serve de norte seguro à própria sociedade. Trata-se de lei nova que acabou incorporando uma série de direitos e garantias que de há muito vinham sendo reclamados por importante parcela da população que vem não só aumentando numericamente, mas também se impondo como merecedora de visibilidade e de respeito cada vez maior.

 

Atendendo ao comando constitucional, que veda discriminação em razão da idade (CF, art. 3º, III) e assegura especial proteção ao idoso (CF, art. 230) e lhe garante assistência social e alimentos (CF, 203, V) a Lei 10.741/2003, o Chamado Estatuto do Idoso, empresta maior efetividade à proteção dos maiores de 60 anos, concedendo-lhes o mesmo tratamento cuidadoso que é dispensado aos jovens. Agora, também o ancião goza, com absoluta prioridade, de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana que a Constituição Federal (art. 227) e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) garantem aos cidadãos de amanhã.

 

 

 

2. Pólos opostos, direitos compostos

 

O direito a assistência social a ser prestada a quem necessitar consta do mesmo dispositivo constitucional, e ali de forma expressa há referência à proteção à infância, à adolescência e à velhice (CF, 203).

 

Quer atentando ao princípio da igualdade, que não permite tratamento desigual a quem faz jus a proteção diferenciada, quer em respeito à dignidade da pessoa humana, dogma maior do sistema jurídico, não há como deixar de reconhecer que, com o Estatuto do Idoso, houve a equiparação de direitos e garantias aos dois pólos da existência humana. O que era assegurado aos jovens foi estendido aos idosos. Os direitos e garantias concedidos às crianças e adolescentes serviram de modelo para os chamados “adultos maiores”. Assim, as prerrogativas deferidas nos respectivos estatutos devem contemplar ambos os segmentos, que, em razão da idade, não dispõem de meios de prover a própria subsistência. Via de conseqüência, o que foi outorgado aos maiores de 60 anos deve ser alcançado também aos menores de idade.

 

Não é por outro motivo que ambas as leis dispõem de vários dispositivos idênticos. É igual o elenco dos direitos, bem como a identificação dos responsáveis a garanti-los. As situações de risco a que estão submetidos crianças, adolescentes e idosos são as mesmas. Em princípio, a reunião de dois pólos opostos da vida – no que se refere à cronologia – pode causar certa estranheza. Entretanto, pela fragilidade dos dois “personagens” e por estarem ausentes do cenário produtivo (economicamente falando), têm muito em comum, principalmente quanto à forma de proteção jurídica.[1] Assim, o que era assegurado aos jovens foi deferido também aos idosos. Conseqüentemente, o que é concedido aos maiores de 60 anos deve ser estendido aos menores de 18 anos. Para chegar a esta conclusão, sequer é necessário invocar o princípio da simetria.

 

 

 

3. A quem se socorrer

 

Talvez no tema alimentos é que se enxergue, de forma mais saliente, as mudanças levadas a efeito pelo Estatuto do Idoso e que acabaram se espraiando a institutos outros. As alterações não se cingiram ao direito a alimentos, refletem-se na ação e na própria execução da obrigação alimentar.

 

Ratifica o estatuto o direito a alimentos ao idoso na forma da lei civil (EI, art. 11). Tal direito repousa no princípio da solidariedade familiar. Pressupondo a presença de vínculos afetivos entre os parentes, impõe-lhes a lei recíproca obrigação alimentar (CC, art. 1.694). Sendo o credor casado ou vivendo ele em união estável, o dever de fornecer alimentos é imposto inicialmente ao cônjuge ou companheiro[2].

 

Não havendo cônjuge ou companheiro a quem se socorrer, cabe conclamar os parentes. Parentes (CC, art. 1.591) são os ascendentes e os descendentes. Os chamados parentes em linha reta têm vinculação infinita. Pais, filhos, avós, netos, bisavós, etc. todos são parentes. Também são parentes irmãos, tios, sobrinhos, primos, sobrinhos-netos e tios-avós. Estes são parentes em linha colateral ou transversal. Mas, quanto a eles, há uma limitação: ao menos para efeitos jurídicos são reconhecidos como parentes somente até o quarto grau (CC, art. 1.592).

 

A exata identificação dos vínculos de parentalidade é fundamental pelas seqüelas jurídicas que geram. É no direito sucessório que mais se atenta à identificação do parentesco, pois os parentes integram a ordem de vocação hereditária (CC, art. 1.829, IV). Ou seja, parentes têm direito à herança, mas só é assegurada herança a quem a lei reconhece como parente: descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau. Assim, na ausência de filhos e netos, de pais ou avós, são chamados os irmãos, tios, sobrinhos e primos, bem como tios-avós e sobrinhos-netos.

 

Mas o vínculo de parentesco não gera somente bônus: há ônus também. Os parentes têm direitos, mas também têm deveres: têm direito sucessório e têm obrigação alimentar. Quem faz jus à herança deve alimentos. No parentesco em linha reta, nem o vínculo parental (CC, art. 1.591), nem a obrigação alimentar (CC, art. 1.696), nem o direito sucessório (CC, art. 1.829, I e II) tem limite. Na linha colateral, o parentesco está limitado ao quarto grau (CC, art. 1.592) tanto para efeitos alimentícios como para efeitos sucessórios (CC, art. 1.829, IV). Assim, quando inexistirem descendentes, ascendentes ou cônjuge tem obrigação alimentar e também fazem jus à herança os parentes até o quarto grau: irmãos, tios, sobrinhos e primos.

 

A obrigação alimentar é recíproca, e a lei estabelece uma ordem de preferência, ou melhor, de responsabilidade. Os primeiros obrigados a prestar alimentos são os pais. Esta obrigação estende-se a todos os ascendentes. Na falta do pai, a obrigação alimentar transmite-se ao avô. Na falta deste, a obrigação é do bisavô e assim sucessivamente (CC, art. 1.696). Também não existe limite na obrigação alimentar dos descendentes, ou seja: filhos, netos, bisnetos, tataranetos devem alimentos a pais, avós, bisavós, tataravôs e assim por diante.

 

O simples fato de a lei trazer algumas explicitações quanto à obrigação entre os parentes ascendentes e descendentes, bem como detalhar a obrigação dos irmãos, não permite afirmar que tenha sido excluída a obrigação alimentar dos demais parentes. O Código Civil, no capítulo que trata dos alimentos, em três oportunidades, afirma a responsabilidade alimentar dos parentes: art. 1.694 – “podem os parentes…”;  art. 1.698 – “Se o parente…”;  art. 1.704, parágrafo único – “… e não tiver parentes…”.

 

Simplesmente não viu o legislador necessidade de qualquer detalhamento sobre a obrigação dos parentes de terceiro e quarto graus, o que, às claras, não significa que os tenha dispensado do dever alimentar. Os encargos alimentares seguem os preceitos gerais. Na falta dos parentes mais próximos, são chamados os mais remotos, começando pelos descendentes, seguidos dos ascendentes. Portanto, na falta de filhos, netos, pais, avós e irmãos, a obrigação passa aos tios, tios-avós, depois aos sobrinhos, sobrinhos-netos e, finalmente, aos primos.

 

Não há como reconhecer direitos aos parentes e não lhes atribuir deveres. Se esta não fosse a intenção do legislador, o art. 1.694 simplesmente diria: “Podem os parentes, até o segundo grau […] pedir alimentos uns aos outros”.

 

 

 

4. A lacuna preenchida pela solidariedade

 

Nunca declinou a lei a natureza da obrigação alimentar. O silêncio do legislador sempre ensejou acirrada controvérsia.[3] Como a solidariedade não se presume (CC, art. 265), pacificaram-se a doutrina e a jurisprudência entendendo que o dever de prestar alimentos não é solidário, mas subsidiário e de caráter complementar. No entanto, veio o Estatuto do Idoso, de modo expresso, reconhecer como solidária a obrigação alimentar, assegurando ao idoso o direito de optar entre os prestadores (EI, art. 12). Apesar de entendimentos contrários,[4] diante da clareza da norma legal, não há mais como negar que o legislador definiu a natureza do encargo alimentar, ao menos em prol de quem merece especial atenção do Estado. Ainda que se trate de dispositivo inserido na lei protetiva ao idoso, é imperioso reconhecer que a solidariedade também se estende em favor de outro segmento que igualmente é alvo da proteção integral e não tem meios de prover a própria subsistência: crianças e adolescentes.

 

 

 

5. Divisibilidade e proporcionalidade versus solidariedade

 

A divisibilidade do dever de alimentos não desconfigura a natureza solidária da obrigação, que tem o intuito de não deixar desatendido quem não dispõe de condições de prover o próprio sustento. O fato de o Código Civil reconhecer a subsidiariedade da obrigação concorrente (CC, art. 1.696 e 1.697) não exclui a solidariedade, tanto que é possível chamar a juízo os demais obrigados (CC, art. 1.698). Por isso, são obrigados cônjuges, companheiros, pais, filhos, parentes e, agora, o próprio Estado.

 

Mesmo que se tenha tornado solidária a obrigação alimentar – ao menos para idosos, crianças e adolescentes –, não há como invocar todos os dispositivos da lei civil que regem a solidariedade passiva (CC, art. 275 a 285). Tal fato, no entanto, não afasta o princípio da solidariedade, eleito pelo legislador como forma de reafirmar a exigibilidade dos alimentos em face de todos os obrigados.

 

            O dever alimentar não tem todas as características do instituto da solidariedade nem com referência à obrigação que decorre do poder familiar. Os cônjuges são obrigados a concorrer na proporção de seus bens e dos rendimentos do seu trabalho para o sustento e educação dos filhos (CC, art. 1.568). Portanto, mesmo sendo concorrente a obrigação dos pais, a quantificação de tal dever está condicionada ao princípio da proporcionalidade.

 

            No que diz com o dever alimentar dos parentes em linha reta e colateral para com crianças e idosos, a solidariedade também não se instala com todas as suas características, pois não se trata de obrigação concorrente. O dever é antes dos cônjuges e companheiros do que dos parentes. Quer quando são chamados a contribuir os ascendentes e descendentes, ou os parentes colaterais, a obrigação respeita a proximidade do vínculo. Primeiro devem os ascendentes que os descendentes. Entre os parentes são convocados prioritariamente os mais próximos em grau, obedecida a ordem de vocação hereditária (CC, art. 1.696 e 1.697). Os primeiros obrigados são os pais e, na sua falta, seus ascendentes. Na falta desses, a obrigação passa aos descendentes do credor. Na inexistência dos pais, avós e netos, são convocados os irmãos (uni ou bilaterais), os tios, os sobrinhos e os primos, de forma sucessiva. Tais nuanças, no entanto, não desconfiguram a natureza do encargo alimentar consagrado na lei: a solidariedade.

 

Diante da faculdade assegurada ao credor de acionar qualquer um dos obrigados, ainda assim não foram derrogados os princípios da proporcionalidade (CC, art. 1.694, § 1º) e da sucessividade na escolha do alimentante (CC, arts. 1.696 e 1.697). Assim, em sede de alimentos, a sentença que reconhece a obrigação de mais de um devedor deve individualizar o encargo de cada um deles, quantificando o valor dos alimentos segundo a possibilidade de cada um dos obrigados. Ainda que haja mais de um devedor, cada um deles não pode ser obrigado a responder pela dívida toda (CC, art. 264). No entanto, como o credor pode dirigir a ação de alimentos contra qualquer dos obrigados, dispõe o réu da faculdade de convocar para a demanda os outros obrigados (CC, art. 1.698).  Ainda assim, quando da execução, não dispõe o credor da faculdade de exigir o pagamento da totalidade da dívida de somente um dos devedores, não se podendo falar em dívida comum.

 

 

 

6. A obrigação alimentar estatal

 

Com o advento do Estatuto do Idoso, parece que ninguém percebeu que passou a existir, de modo explícito, a obrigação alimentar do Estado. A Constituição consagra como fundamento do estado democrático de direito a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), o que, às claras, tem por pressuposto o direito à vida e à sobrevivência. Reafirma o estatuto o direito a alimentos ao idoso (EI, art. 11), obrigação que tem por fundamento a solidariedade familiar (CC, art. 1.694). Mas estas não são as únicas formas pelas quais a lei civil assegura direito alimentar aos idosos. O estatuto vai além e regulamenta a norma constitucional (CF, 203, V). Na ausência de parentes em condições econômicas de prover o sustento de quem tiver mais de 60 anos, a obrigação passa a ser do Poder Público, no âmbito da assistência social (EI, art. 14). Quem chega aos 65 anos de idade sem condições de prover sua subsistência, não tendo nem sua família meios de assegurar-lhe o sustento, faz jus a um benefício mensal no valor de um salário mínimo (EI, art. 34). Claramente tal encargo tem caráter alimentar: ou seja, o Estado possui o dever de prestar alimentos ao idoso que não tenha como se sustentar nem algum parente a quem possa recorrer.

 

Proposta a ação por menor de 14 anos ou maior de 65 anos, a obrigação nem sequer necessita ser alvo de quantificação, pois já dispõe de valor prefixado na lei: um salário mínimo.

 

Como o valor do encargo já está definido, o objeto da demanda é tão-só a prova da ausência de condições dos obrigados de atender ao dever de sustento. Frente a esta comprovação, é de ser condenado o Estado a pagar os alimentos.

 

Em relação a quem tem capacidade laborativa, desonera-se o Poder Público de tal dever fomentando o desenvolvimento social e o crescimento econômico, de forma a garantir trabalho a todos. Por meio do trabalho é que as pessoas conseguem manter a si e a sua família, com o que se desonera o Estado de diretamente alcançar-lhes alimentos. A quem não tem capacidade laborativa – idosos, crianças e adolescentes – este encargo deve ser assumido pelo Estado, que tem, como dever maior, assegurar a dignidade da pessoa humana.

 

 

 

7. Alimentos e o princípio da proteção integral

 

O Estado tem o dever de prestar alimentos ao idoso quando não tem ele meios de sustento nem algum parente a quem recorrer. Ora, se o Estado deve pagar alimentos ao idoso, com muito mais razão é de se reconhecer que tem a mesma obrigação com relação a quem assegura, com absoluta prioridade, proteção integral: crianças e adolescentes. Para chegar-se a essa conclusão, basta invocar o princípio constitucional da igualdade.

 

Não se pode olvidar que a Constituição (art. 227) assegura a crianças e adolescentes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, itens todos que integram o conceito de alimentos. Tais encargos são atribuídos primeiramente à família, por meio do poder familiar e da solidariedade familiar. Apesar de o Estado colocar-se em confortável terceiro lugar, não tem como se desonerar quando não houver quem garanta os direitos dos cidadãos de amanhã.

 

Define o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), como criança, a pessoa de até 12 anos incompletos e, como adolescente, quem tem menos de 18 anos (ECA, art. 2º). Como a Constituição (arts. 5º, XXXIII, e 227, § 3º, I) veda o trabalho até os 16 anos de idade, só o admitindo, como aprendiz, depois dos 14 anos, claramente não dispõem crianças e adolescentes, ao menos até essa idade, de condições de prover a própria subsistência. Não possuindo os pais meios de atender ao dever imposto pelo poder familiar (CC, art. 1.568, e ECA, art. 22) nem os demais parentes que, em decorrência dos vínculos de consangüinidade, têm obrigação alimentar (CC, arts. 1.591, 1592 e 1.694), mister reconhecer a obrigação do Estado de assegurar o sustento dos jovens carentes no âmbito da assistência social.

 

Aliás, dessa obrigação já se vem desincumbindo o Estado, ao menos parcialmente, ao alcançar medicamentos, realizar procedimentos cirúrgicos e providenciar internações hospitalares. Também a educação vem sendo garantida. Basta ver a enxurrada de ações civis públicas em que a Justiça impõe sejam disponibilizadas vagas nos estabelecimentos públicos de ensino, bem como seja assegurado o transporte até a escola.

 

Porém, isso não basta. É necessário garantir a vida, a sobrevivência. Este encargo é atribuído aos pais. Mas a ausência de condições de prover o sustento dos filhos não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar (ECA, art. 23). Toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família, sendo-lhe assegurada a convivência familiar (ECA, art. 19). Assim, flagrada a absoluta ausência de condições não só dos pais, mas dos parentes que têm a obrigação de garantir a sua sobrevivência em decorrência dos vínculos familiares, crianças e adolescentes têm o direito de buscar alimentos do Poder Público. Ao menos os menores de 14 anos fazem jus valor assegurado aos idosos de mais de 65 anos: um salário mínimo mensal. A quem tiver entre 14 e 18 anos de idade, a forma de o Estado safar-se do pagamento dos alimentos é garantir-lhes trabalho como aprendiz.

 

 

 

8. Legitimdiade passiva

 

Reconhecida, modo expresso, a obrigação do Estado em prestar alimentos, cabe identificar qual dos entes federados dispõe de legitimidade para figurar no pólo passivo da ação de alimentos.

 

É dever comum das entidades federativas garantir os direitos sociais, como o direito à saúde, moradia, lazer, assegurando proteção à infância e aos desamparados (CF, art. 6º). Todos esses itens integram o conceito de alimentos. Dita norma constitucional impõe aos entes públicos o dever de perpetrarem ações concretas, as quais visam a preservar, em última análise, o direito à vida. Essa é a posição já solidificada no âmbito do STF,[5] ao decidir sobre o direito a medicamentos. No entanto, não há qualquer justificativa para não invocar a mesma linha de argumentação para garantir também o direito a alimentos que, em última análise, assegura a vida.

 

Havendo obrigação solidária da União, Estado e Município, a responsabilidade é concorrente. Não é outro o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[6] A auto-aplicabilidade dos direitos sociais está bem sedimentada na Justiça Gaúcha.[7] Assim, em se tratando de uma responsabilidade solidária, é de todos os entes, podendo a ação de alimentos ser proposta contra qualquer um deles, que não podem nem alegar sua ilegitimidade passiva descabendo chamar ao processo os demais entes públicos para responder à ação.

 

A solidariedade do Estado esculpida no estatuto não desonera a obrigação decorrente quer dos vínculos de parentesco, quer da solidariedade familiar. Como a responsabilidade estatal é subsidiária, intentada a ação contra o Estado, tem ele legitimidade para chamar os parentes do alimentante para responderem pela obrigação conforme faculta a lei (CC, art. 1.698). Nada obsta que o ente público, mesmo depois de ter sido condenado, e ainda que já esteja cumprindo com a obrigação, ao descobrir a existência de algum parente em condições de atender o encargo alimentar, invoque o facultativo legal e se desonere do encargo.

 

 

 

9. A convocação dos devedores a juízo

 

Quando o dever de alimentos compete a mais de uma pessoa, dirigida a ação contra somente um dos obrigados, admite a lei que os demais obrigados sejam chamados a integrar a lide (CC, art. 1.698). Esta forma intervencional introduzida no Código Civil vem sendo arduamente criticada pela doutrina. Não foi feliz o legislador. Aliás, desastrosa a inovação.[8] Trata-se de indevida incursão do legislador civil na seara processual. Olvidou-se o legislador de que a ação de alimentos dispõe de rito especial, cujas características emprestam maior celeridade à ação. A possibilidade de serem citados outros obrigados só retarda o deslinde da ação, que dispõe de rito sumário.[9]

 

Jamais as formas de intervenção de terceiro consagradas no estatuto processual foram invocadas nas ações de alimentos, por mais de uma razão: a ação de alimentos dispõe de rito próprio previsto em lei especial, com a marca da celeridade, enquanto as possibilidades intervencionais se encontram  no processo de conhecimento. Ao depois, dilatar o pólo passivo da demanda só retarda o seu desfecho, o que desatende à natureza do direito que lhe serve de objeto.

 

A jurisprudência recebeu com reserva a novidade e tem dificuldade em deferir a convocação de outros devedores.[10] De qualquer forma, acionado somente um dos parentes, é possível convocar os demais a integrar a lide. Contudo, quem pretende chamar outros ao processo deve demonstrar a possibilidade de eles atenderem ao encargo além de comprovar – prova, aliás, bastante difícil – que não estão a prestar algum tipo de auxílio, nem que seja in natura, aos necessitados.

 

Mas agora, em face da natureza solidária que foi conferida pelo Estatuto do Idoso à obrigação alimentar, mister admitir o chamamento ao processo, mas não nos moldes postos na lei processual (CPC, arts. 77 a 80). Como é estabelecida uma ordem de prioridade entre os obrigados, a faculdade de um chamar outro para a demanda de alimentos só existe entre os parentes de mesmo grau, descabendo a convocação dos devedores subsidiários em grau subseqüente. Ou seja, a solidariedade jurídica existe, sim, mas no âmbito de cada grau de parentesco.[11] Desse modo, proposta a ação contra o pai, este não pode convocar à ação o seu pai, ou seja, o avô do alimentado. Acionado o avô, esse não pode querer trazer à demanda os netos do autor, ou mesmo os tios, sobrinhos ou primos do alimentado. No máximo, poderá pretender que venha integrar a ação os avós de outra linhagem. Para ficar com o exemplo mais recorrente: proposta a ação pelo neto contra o avô paterno, este só pode chamar à demanda os avós maternos. No entanto, mister que comprove que têm eles possibilidade de atender aos alimentos, bem como que não estão a auxiliar o neto.

 

Da mesma forma, intentada a ação contra um irmão, este não poderá chamar ao processo os tios, sobrinhos e primos do credor. Somente pode pretender dividir o encargo com outros irmãos porventura existentes. Prosseguindo com os exemplos: proposta a ação contra o tio, este não tem como chamar os primos do alimentado para a ação. Porém, tanto os tios como os sobrinhos e os primos podem pleitear que venham a responder pela obrigação os outros parentes do mesmo grau ou os de grau antecedente. Qualquer um dos réus poderá pretender que sejam convocados outros obrigados, mas somente os parentes do mesmo grau ou de grau antecedente. Contudo, o réu originário – que chamou outrem ao processo – continuará sendo parte passiva na ação, em face da instalação de um litisconsórcio passivo sucessivo.

 

           

 

10. Litisconsórcio passivo alternativo sucessivo

 

Diante da regra da solidariedade instalada em sede de alimentos pelo Estatuto do Idoso, o credor pode acionar qualquer dos obrigados ou mais de um deles. Pode, por exemplo, dirigir a ação de alimentos contra o cônjuge, o genitor, o filho e também contra os avós e até contra os irmãos, tios e primos. Ao trazer para o pólo passivo mais de um obrigado, forma-se um litisconsórcio passivo. Como existe uma ordem de preferência entre os obrigados, o litisconsórcio que se instala é alternativo de caráter sucessivo. Também em face da ordem de prioridades, intentada a ação contra mais de um obrigado, poderão ser fixados encargos em valores diferenciados, a depender dos recursos de cada um dos obrigados. Abre-se um leque de possibilidades. Movida a ação simultaneamente contra o pai e o avô, comprovada a impossibilidade de o pai pagar os alimentos, é condenado o avô a atender ao encargo. Pode a sentença fixar a obrigação alimentar do pai e, sendo o valor insuficiente para prover o sustento do filho, a sentença condena o avô a pagar alimentos complementares, definindo o valor do encargo de cada um dos obrigados.

 

           

 

11. Como executar

 

Condenado o Estado a pagar alimentos, proposta a execução contra a Fazenda Pública, incabível a expedição de precatório por se tratar de crédito de natureza alimentícia (CF, art. 100). 

 

A sentença também não comporta execução por quaisquer dos meios executórios disponibilizados no estatuto processual. Isso porque os bens públicos são inalienáveis (CC, art. 100), não havendo como executar o crédito pelo rito da expropriação (CPC, art. 732).

 

De outro lado, incabível o uso da execução sob ameaça de coação pessoal (CPC, art. 733), ainda que se trate de descumprimento de obrigação de fazer, ou seja, de pagar mensalmente, e na data aprazada, os alimentos (CPC, art. 632). De qualquer modo, não há como deixar de reconhecer que se trata de conduta que atenta contra a própria dignidade da Justiça (CPC, art. 600, III), ficando o agente público submetido às sanções contidas no artigo 601 do CPC, sem prejuízo da ação penal por crime de desobediência.

 

Ainda que haja a possibilidade de fixação de multa, traduzida nas conhecidas astreintes (CPC, art. 461, §§ 4º, 5º e 6º), quando o obrigado é o Estado, de todo desaconselhável a utilização dessa modalidade coercitiva, pois onera o Erário, e não o agente político ou o servidor que tem o dever de pessoalmente adimplir a obrigação. Como a função da técnica de coerção patrimonial, sobretudo no caso de prestação alimentícia, é pressionar psicologicamente quem deve para cumprir a ordem judicial, ameaçando-o com sanção pecuniária, o objetivo das astreintes é frustrado pela impossibilidade de atingir a pessoa do devedor. Ao depois, há o risco de o ônus imposto ao Poder Público ser de valor superior à prestação devida, gravame demasiadamente elevado às finanças públicas e, portanto, à sociedade como um todo.

 

A solução mais realista e que garante a realização dos alimentos de forma mais efetiva é a adoção de instrumentos jurídicos capazes de solver prontamente o débito, atentando-se sempre para a razoabilidade no uso dos meios coercitivos contra a Administração Pública. Assim, desponta como mais justo o bloqueio judicial de valores nas contas bancárias da Fazenda Pública, a fim de tornar indisponível o crédito do ente público no valor da obrigação. Trata-se de medida acautelatória menos gravosa e com resultado mais efetivo. Tal prática, aliás, vem sendo reiteradamente adotada pela justiça gaúcha como forma de assegurar a realização das disposições constitucionais atinentes ao direito à saúde às pessoas que não dispõem de recursos materiais para custear o seu tratamento médico, em especial quando se trata de crianças e adolescentes.

 

 

 

12. Executividade da transação e meios executórios

 

Na tentativa de evidenciar a executividade do acordo de alimentos, giza o Estatuto do Idoso que a transação chancelada pelo Ministério Público constitui título executivo extrajudicial. Tal lembrete seria até desnecessário, pois consagra o estatuto processual a natureza executiva do instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pelos advogados dos transatores (CPC, art. 585, II). Ainda assim, a reiteração é salutar. Quem sabe consiga convencer os juízes de que a obrigação assim constituída dá ensejo ao uso de quaisquer dos meios executórios disponibilizados em lei para assegurar o pagamento de alimentos.

 

Não dispõe de qualquer fundamento aceitável a jurisprudência que só admite o uso da execução por quantia certa contra devedor solvente em relação ao acordo homologado em juízo. Ora, se o referendo é suficiente para a constituição do título executivo, de todo dispensável, e até impertinente, a busca da chancela judicial. 

 

A simples referência, constante do art. 733 do CPC, à “sentença ou decisão” não limita o uso de tal modalidade executória aos títulos executivos judiciais, até porque a estrita obediência à expressão legal só possibilitaria a execução, com ameaça de prisão, em relação aos alimentos provisórios ou provisionais. Os alimentos definitivos não poderiam ser cobrados por essa via, uma vez que o artigo 732 do CPC, que concede o rito expropriatório, somente faz menção à sentença que condena ao pagamento de prestação alimentícia. Quem sabe agora, com a explicitação levada a efeito, se passe a valorar mais a sobrevivência do credor que a liberdade do devedor inadimplente.

 

O olhar diferenciado do legislador, na busca da preservação da dignidade humana, precisa ser reconhecido como um bem maior. O direito à vida sobrepõe-se a tudo, sendo um compromisso não só da família, mas também do próprio Estado. Daí a necessidade de os operadores do Direito atentarem à natureza protetiva da legislação que busca formas de inserção social dos segmentos mais fragilizados. O intérprete precisa dar-se conta de que devem prevalecer os princípios que regem a edição de leis especiais, as quais estabelecem diretrizes a serem harmonizadas com a dogmática da legislação ordinária.

 

 

 

13. Referências bibliográficas

 

CAHALI, Francisco José. Dos alimentos. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 225-237.

 

CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.

 

CARVALHO JÚNIOR, Pedro Lino de. Da solidariedade da obrigação alimentar em favor do idoso. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 25, p. 42-57, ago./set. 2004, p. 51.

 

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

 

TEIXEIRA, Maria Carolina Brochado; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Fundamentos principiológicos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 26, p. 18-34, out./nov. 2004, p. 21.

 

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2004, p. 684.

 

 

 

 

 

[1] Maria Carolina Brochado Teixeira e Maria de Fátima Freire de Sá. Fundamentos principiológicos …, 21.

 

[2] Arnaldo Rizzardo. Direito de família, 684.

 

[3] Yussef Cahali. Dos alimentos, 141.

 

[4] INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 12 DO ESTATUTO DO IDOSO. A Lei 10.741, de 01 de outubro de 2003, prevê, em seu artigo 12, que “a obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores”. Trata-se, à evidência, de regra que, ao conferir à obrigação alimentar a característica da solidariedade, contraria a própria essência da obrigação, que, consoante dispõe o artigo 1.694, parágrafo primeiro, do Código Civil, deve ser fixada na proporção da necessidade de quem pede e da possibilidade de quem é chamado a prestar. Logo, por natureza, trata-se de obrigação divisível e, por conseqüência, não-solidária, mostrando-se totalmente equivocada e à parte do sistema jurídico nacional a dicção da novel regra estatutária. Negaram provimento. Unânime. (TJRGS – AC 70006634414 – 7ª C.Cív. – Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos – j. 22/10/2003).

 

[5] RE 271286 Agr-RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 12-9-2000, DJU 24-11-2000.

 

[6] .REsp nº 507205-PR, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJU 17-11-2003, p. 213.

 

[7] AC 70010681671, 70010577484, 7000949218, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos; AC 700009991704, 70010031045, 70010408870, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis.

 

[8] Francisco Cahali. Dos alimentos, 230.

 

[9] Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias, 479.

 

[10] ALIMENTOS. Obrigação avoenga. Demonstrada a impossibilidade de compelir o genitor a arcar com pensionamento, em face de estar ele em local incerto e não sabido, cabível a busca de alimentos junto ao avô paterno. Litisconsórcio. Ainda que reconhecida a obrigação alimentar dos avós, movida a ação contra um deles, para que o outro ascendente seja chamado a juízo, imperativa a existência de prova de sua possibilidade de alcançar alimentos e da ausência de sua participação no sustento do alimentado. Apelo provido em parte. (TJRGS – AC 70006825558 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 10/09/2003).

 

[11] Pedro Lino de Carvalho Júnior. Da solidariedade da obrigação alimentar em favor do idoso, 51.

 

 

* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Os alimentos após o Estatuto do Idoso. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/os-alimentos-apos-o-estatuto-do-idoso/ Acesso em: 19 abr. 2024